Mostrar mensagens com a etiqueta Hélène Grimaud. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Hélène Grimaud. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, outubro 14, 2019

Duncan, o grande amor da vida de Keynes e de Nessa Bell



Por vezes tenho pena de não ter pena para aprofundar os assuntos que me interessam. Guardo para o blog apenas o fim dos dias, quando a minha vida externa me liberta. E, quando chego ao fim dos dias, já tenho o fim da noite à vista e, geralmente, já estou cansada, incapaz de estudos e profundidades. Acresce a estas limitações o paradoxo de me deixar interessar por inúmeros assuntos e de, quando o interesse aparece, ter uma grande curiosidade em desvendá-lo. E, então, é como com os livros: vou juntando coisas para fazer, para estudar, para descobrir.

Talvez um dia. Talvez a maior parte nunca.

Isto para dizer que há um grupo de pessoas, uma época e um modo de vida que sempre despertaram a minha atenção. Ao revisitar imagens desse tempo e desse modo de vida no filme Vita & Virginia voltei a sentir vontade de ir conhecer um pouco melhor alguns dos personagens menos mediáticos (se é que assim me posso pronunciar).

Vanessa Bell, a irmã de Virginia, a Nessa, tão amiga, tão próxima, foi pintora e casada com Clive Bell. Clive Bell era um dos membros do grupo de amigos que gostavam de literatura, de pintura, de arte em geral, de conversar, de polemizar. 

Contudo, no filme, quem se vê em cumplicidade, a partilhar o estúdio, como se fosse o companheiro de Nessa é Duncan. Ora Duncan é homossexual. Fui confirmar. De facto, Vanessa, casada com Clive, tinha um amor profundo com Duncan Grant, homossexual assumido. Conseguiu, contudo, seduzi-lo a ponto de terem uma filha. Duncan tinha também um afecto profundo por ela.

Sobre Vanessa Bell, transcrevo da wikipedia:
(...) Após as mortes da sua mãe em, 1895, e do seu pai, em 1904, Vanessa vendeu o 22 Hyde Park Gate e se mudou para Bloomsbury com Virginia e os seus irmãos Thoby (1880-1906) e Adrian (1883-1948), onde eles conheceram e começaram a se socializar com artistas, escritores e intelectuais que viriam a formar o Grupo de Bloomsbury.
Casou-se com Clive Bell em 1907 e tiveram dois filhos, Julian (que morreu em 1937 durante a Guerra Civil Espanhola aos 29 anos) e Quentin. O casal tinha um casamento aberto, ambos tendo diversos amantes durante a vida. Vanessa Bell manteve relações extraconjugais com o crítico de arte Roger Fry e com o pintor Duncan Grant, com quem teve uma filha, Angelica, em 1918, que Clive Bell criou como sua filha.
Vanessa, Clive, Duncan Grant e o amante de Duncan, David Garnett, mudaram-se para o campo de Sussex antes do estopim da Primeira Guerra Mundial, e estabeleceram-se na Charleston Farmhouse, perto de Firle, East Sussex, onde ela e Grant pintaram e trabalharam em encomendas para o Omega Workshops, atelier fundado por Roger Fry. A sua primeira exposição ocorreu no Omega Workshops em 1916. (...)
Sobre Duncan Grant, transcrevo:
(...) Vanessa queria muito ter um filho de Duncan e ficou grávida na primavera de 1918. Embora se suponha que as relações sexuais de Duncan com Vanessa terminaram meses antes de Angelica nascer (Natal, 1918), os dois continuaram a viver juntos por mais 40 anos.
Viver com Vanessa não era impedimento para as relações de Duncan com outros homens, antes ou depois de Angelica nascer. 

His lovers included his cousin, the writer Lytton Strachey, the future politician Arthur Hobhouse and the economist John Maynard Keynes, who at one time considered Grant the love of his life because of his good looks and the originality of his mind.
Angélica cresceu acreditando que Clive Bell era o seu pai, até porque tinha o seu apelido e o comportamento dele nunca lhe deu nenhuma indicação em contrário.  
Duncan e Vanessa tinham um relacionamento aberto, embora ela aparentemente, nunca tenha tido outras relações depois de passar a morar com ele e de ter o seu filho. Duncan, pelo contrário, teve diversas relações sexuais esporádicas e vários relacionamentos sérios com outros homens, sobretudo com David Garnett. No entanto, o seu amor e respeito por Vanessa manteve-se até à morte dela, em 1961. (...)
------------------------------------------------------------

Uma fonte inesgotável de motivos de interesse.
Agora já fui atrás do Keynes mas isso já não cabe aqui e, de resto, daria pano para muitas mangas.

-----------------------------------------------------------------------------

Já agora, Angelica Garnett, a filha de Vanessa e de Duncan


------------------------------

Vanessa Bell foi, nas pinturas acima, pintada por Duncan Grant. Mais abaixo pode ver-se Duncan com Keynes e, na última, com Ness. Lá em cima Hélène Grimaud toca Bach

......................................

segunda-feira, abril 03, 2017

Paula Rego e Maria Antónia Palla,
duas mulheres livres, duas portuguesas excelentíssimas.




Não sou pintora. Nunca julguei que era tal como sei que nunca serei. Não obstante, gosto de pintar. Gosto da liberdade de estar em frente a uma tela e, sem ter que provar nada a quem quer que seja, começar a desenhar, encher de cores o que antes era nada. Há nisso um prazer quase infantil, talvez até irracional.

Gosto de telas grandes e de não obedecer a nenhum programa, gosto de misturar sombras, restos de palavras, paredes gastas, silhuetas que deslizam, galos, freiras, cavalos. Outras vezes nada, só cores e só eu sei que ali está a sombra de uma escada que sobre rente a um muro ou a de uma mulher que se entrega ao calor da noite.

Pintar e não querer reproduzir a realidade é para mim um acto de liberdade sobre o qual não tenho que dar explicações e, por isso, melhor ainda.

Já contei muitas vezes: sendo eu amante de pintura, não aprecio a pintura realista. Gosto de pinturas imperfeitas, com ar mal acabado, gosto do imprevisto, do incompreensível. Para mim a pintura deve criar o objecto pintado e o objecto pintado pode ser coisa nenhuma. Pode até a pintura ser uma tela quase só cor, sem propósito, como as grandes telas de Rothko.

Há uns anos uma prima que é das Artes falou-me na Paula Rego. Eu conhecia-a vagamente mas apenas do período das colagens. Não me dizia muito. A minha prima respondeu que fosse eu ver de perto e que, indo e indo com disponibilidade para me deixar impressionar, perceberia que ali havia um outro mundo, que achava que eu ia gostar. Não me convenceu. Não gosto quando me dizem que vou gostar. Tenho para mim que só gosto do que é inesperado e que, portanto, sabe lá alguém do que eu vou gostar se nem eu sei.


Mas fui. E foi quase uma queda no abismo. 

Um mundo feito de mulheres pouco fotogénicas, mulheres façanhudas, de perna curta, entroncadas, mulheres do povo, gente de verdade. E bichos. E um mundo muito sob a superfície. 

Vim dessa exposição muito impressionada. Pintar ali era outra coisa, era um exercício não daquela liberdade insensata que a mim me sabe tão bem mas um exercício completo, um bocado de vida. Ali havia histórias, personagens, figurinos, décor, violência, carnalidade, animalidade, dores de mulher, desejo primário, sofrimentos ancestrais, vergonhas, loucuras, medos.

Depois um dia vi uma entrevista dela. Fiquei cativada.


Passei a comprar livros em que lhe era dada a palavra ou onde se falava dela. Uma mulher diferente das outras, uma mulher que falava como uma criança, marota, maliciosa, com o gosto inocente da provocação.

Quando num museu ou numa exposição vejo um quadro dela é como se alguém me puxasse por um braço, me fizesse ficar ali, como se eu me sentisse puxada para dentro do mundo de Paula, um mundo sem explicações. 

Li a entrevista neste Expresso e é o mesmo gosto de sempre, aquela vontade de ficar a ouvir histórias, Histórias da sua vida, angústias, depressões. 

Vê-la agora já com o peso da idade a fazer-se sentir mas com aquele mesmo riso de menina, aquela energia de criar bonecos, de os vestir, de se vestir com eles, de os pôr a fazer maldades, é tocante. 

Contou ao filho todas as suas histórias, e fala do aborto que fez, e fala de amantes e fala do marido e fala dos seus medos e é tudo muito tocante. O filme que o filho fez está quase disponível e eu irei vê-lo e, de certeza, irei divertir-me e emocionar-me.

No mesmo Expresso, Maria Antónia Palla. Outra mulher livre, sem tabus, com a sua própria história como testemunho. Há pessoas que se impõem pela franqueza, pela inteireza com que expõem as suas convicções e a sua vida. 


A entrevista que deu ao Expresso é exemplar. Como se não tivesse nada a esconder ou a temer, Maria Antónia fala com tristeza da filha que perdeu quando a menina tinha três anos e na qual pensa ainda todos os dias. O marido com quem não conseguiu continuar a viver depois daquela perda, apesar de, entretanto, ter nascido o menino que veio suprir tão dolorosa falta. O padrinho do filho por quem se apaixonou. O gostar de duas pessoas ao mesmo tempo. O aborto que fez porque na altura antes das eleições, tal a euforia, toda a gente ficava grávida -- mas que não era uma criança desejada. E o meio irmão de António, o Ricardo de quem gosta com afecto maternal. E o terceiro marido e o afecto do padrasto pelo enteado António que fazia massas tão boas de que ainda fala. E o casamento do filho, aos 26 anos, que a fez ir sozinha para casa, para chorar pelo caminho, por saber que ia sentir tanto a sua falta. 

E Sócrates que visitou na prisão e que espera que esteja inocente mas que, independentemente disso, ela acha que não está a ser bem tratado pelo PS e que não escreve ou não fala mais disso em público para não prejudicar o filho. 


E o filho, descontraído desde pequeno, que há coisas que o aborrecem muito mas não durante muito tempo. Um filho que ela admira quase tanto quanto o ama. 

Uma mulher livre, uma feminista, uma mulher de causas, uma mulher que sempre lutou pela dignidade e pela igualdade de oportunidade para as mulheres.

Um mulher que, com a segurança de uma vida inteira que fala por si, não tem pudor em se afirmar como é. Uma mulher muito bonita. E serena, forte, inteira.

_____________

Maria Antónia Palla nasceu em 1933 e Paula Rego nasceu em 1935. 


São duas portuguesas excelentíssimas.

_____________________

E agora queiram aceitar o meu convite e desçam, por favor, até ao post seguinte no qual falo de milagres.

___________________

sexta-feira, dezembro 30, 2016

Com uma maçã, ele surpreendeu Paris





Debaixo de anti-histamínicos e anti-piréticos mas, felizmente, sem dores de cabeça ou no corpo, apenas alguma tosse e dor de garganta, depois de um dia de trabalho e outras preocupações, aqui estou finalmente na minha sala. Envolvo-me em sono e calor, desligo do que me traz apreensiva e espreito as notícias. 

Não há uma única notícia que me motive. Ou melhor: haver até há. Não sei é escrever sobre ela. A ver se me informo melhor pois é tema que me acorda. Refiro-me a saber-se que há um rio de ferro que corre a uma velocidade crescente no interior do nosso planeta e que está a uma temperatura quase equivalente à do sol. Acho interessante e acho que é coisa não neutra. 

Mas não vou pôr-me, para aqui, a dissertar sobre assunto que requer conhecimento. Só se me pusesse a ficcionar mas, no estado em que estou, mal consigo reportar-me à realidade, quanto mais à ficção.

Em dias assim movo-me para outro comprimento de onda. Prefiro a companhia daqueles que são independentes do seu corpo, cujas ideias ou obras sobrevivem ao corpo. Por vezes, em vida, são pessoas atormentadas e custa-me pensar nisso ao apreciar o seu legado nem me ocorrendo o que pensava ou sentia o artista enquanto executava a obra.


É o caso de Cézanne. Gosto de Paul Cézanne. Já vi obras suas ao vivo e é sempre aquela emoção de a gente ver uma celebridade ao vivo.
(Estou a gozar.)
Mas há um pouco de verdade nisto. Já se conhece e reconhece e depois está-se ali e vê-se ao vivo. Há um certo sentimento de déjà-vu mas, ao mesmo tempo, a satisfação por ver a obra tal como o pintor a deixou.
Abro um parêntesis para dizer que, de vez em quando, a sensação é mil vezes mais do que isto. Por exemplo, quando vi Caravaggio ao vivo fiquei quase aterrada, quase não conseguia fitar tamanha energia, tamanho frenesim telúrico. Outras vezes também uma emoção grande. Rothko, nos antípodas, também me deixou quase sem palavras, como se tivesse vontade de ser sugada para dentro daquele vazio, um vazio que, no entando, estava tingido de cores vibrantes. Ou o pano de boca de cena de Chagall, uma imensidão onírica.
Mas volto a Cézanne.


Vi um escrito sobre ele e entretive-me a ler e a ver mais umas coisas.

Transcrevo um pouco:
Cézanne sempre trabalhou sozinho, sem alunos. A sua pintura era sua maneira de existir. Sua vida fora marcada e envolvida por sua melancolia e cólera que permeava a sua vida inócua, instável, indecisa. Pinta na tarde em que sua mãe morre. Não é admirado por parte da família. Ao envelhecer acreditava que a sua pintura era fruto apenas dos distúrbios visuais que perseguiam seu corpo. Duvidava do seu talento e da genialidade que o transbordava, pois as circunstâncias e as reviravoltas da vida, não permitiam o reconhecimento de suas produções. A fraqueza e a baritimia o perseguiram no percurso de sua vida. Quando se mudou para Paris, decidindo ser pintor, escreve “Não faço mais do que mudar de lugar e o tédio me persegue”. Não conversava, pois não sabia argumentar. Preferia a solidão. Encontrar os amigos em Paris, quando via casualmente algumas vezes, apenas os cumprimentavam à distância evitando conversas prolongadas. “A vida assusta”, dizia Cézanne. 
(...)

Um dia, apanhado por uma tempestade, continuou a pintar à chuva durante duas horas. Dias depois morreu com uma pneumonia. Em 1906. 

E, no entanto, ao vermos as suas pinturas, que diferença faz o ano em que morreu, ou se tinha sessenta e sete anos quando isso aconteceu ou setenta ou oitenta ou se já se foi há mais de cem anos ou apenas há dez ou se ainda está vivo?

Divago, talvez. Mas penso isto, mesmo. 
..........................





¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
¨

"Avec une pomme, je veux étonner Paris!" 


Gustave Geffroy rapporte que Cézanne répétait souvent cette phrase. C'est dire la place qu'il attribuait à la pomme : à la fois insignifiante et essentielle.

Selon Meyer Schapiro (Style, artiste et société p 224, Ed Gallimard), ce calembour réunit toute sa carrière, depuis Paris-Pâris jusqu'au motif exemplaire qui fait de la pomme un équivalent de la figure humaine et de ses passions. Effrayé par les modèles féminins, il préférait ces objets détachés de leur fonction sociale, sur lesquels il pouvait projeter ses désirs. (...)

(Cézanne, Pommes sur une table, 1900)

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

segunda-feira, julho 04, 2016

Não siga a sua paixão
ou
Toda a gente morre mas nem toda a gente vive
?
Faites vos jeux




Pode pensar-se que todas as pessoas têm um sonho e que esse sonho é qualquer coisa de notável, de invejável. Contudo, a maior parte das pessoas que conheço não tem grandes sonhos. Eu própria não os tenho. Nunca desejei muito alcançar uma coisa pela qual tenha tido que lutar. Não. O meu sonho sempre foi pouco mais de que a minha curta passagem pela terra seja feliz para mim e para os que comigo convivem. Tenho também o pequeno sonho de deixar algumas provas de que por cá passei. Talvez daí os blogues, os tapetes de arraiolos, os muitos milhares de fotografias, os quadros, as árvores plantadas, o jardim desenhado. Mas nada disto tem sido difícil de alcançar pelo que não há sacrifício mas apenas prazer no acto de fazer aquilo de que gosto.

[Não incluo na lista dos sonhos o de ter filhos porque ser mãe é algo que está muito para lá do que aqui falo. Em mim, ser mãe sempre foi uma necessidade, uma coisa física, essencial, não um sonho.]

No trabalho nunca desejei ocupar este ou aquele lugar. Têm é aparecido situações para as quais sou requerida e que tenho aceitado. Mas já rejeitei outras que, a outros olhos, poderiam parecer irrecusáveis. Por exemplo, já aqui o devo ter contado, convidaram-me para ir para uma empresa para fazer o que quisesse nas condições que quisesse. Não quis. Pareceu-me fartura a mais, achei que, de certa forma, quase ficaria em dívida e se há coisa que odeio é sentir-me em dívida.

Quando me perguntam se eu não gostaria de ocupar algum lugar de muito maior responsabilidade do que os que agora ocupo digo que não: já me bastam as chatices que tenho. Passo bem sem grandes poderes mas não passo bem sem liberdade de movimentos ou tempo para a minha vida pessoal.

Também já me surpreendi ao convidar para alguns lugares pessoas que eu achava que fariam o lugar às mil maravilhas e pelos quais iriam receber melhores ordenados e maiores regalias e essas pessoas recusarem por acharem que iam ter muitas maçadas a chefiar outras pessoas ou a terem que assumir responsabilidades que lhes iriam causar preocupações. Compreendi.


Em contrapartida, tenho conhecido pessoas que orientam as suas vidas para trepar, trepar de qualquer maneira, para vir a ocupar algum lugar que fisgaram como se esse lugar fosse o grande sonho da sua vida. São, regra geral, pessoas ansiosas, impacientes e, frequentemente, más colegas, à volta de quem se gera um ambiente muitas vezes de cortar à faca. Tenho uma certa pena dessas pessoas pois nunca estão verdadeiramente felizes. Tudo, para elas, são obstáculos que arreliadoramente vão aparecendo no seu caminho e a vida transforma-se numa sucessão de revezes ou numa luta constante.

Conheço também outras que se acham ungidas de alguma superioridade e isso leva-as a nunca estarem bem, a acharem-se sempre deslocadas ou injustiçadas. Nunca nada as satisfaz: nem trabalho, nem amigos, nem amores. Nem se chega a perceber se têm algum sonho. Aparentemente não, são apenas descontentes militantes.

No extremo oposto outras há que, com pequenos nadas, se sentem as maiores. Tenho grande simpatia por pessoas assim. Uma, por exemplo, conta-me com orgulho a forma rápida como faz empadas que lhe saem sempre bem. Como reconhece o meu apreço, a seguir envia-me receitas. Outras vezes, conta-me que compra pratos de barro em bruto e que depois os pinta e leva a cozer num forno não sei onde. E mostra-me fotografias desses pratos onde pinta patos, flores, céus estrelados. O júbilo que eu vejo nela quando fala nisto é tocante.

Um outro tem uma colecção imensa de discos (antes eram discos e cd's, não sei se se mantém nessa onda ou se já se mudou para outras tecnologias) de música dita erudita e desencanta edições e edições sobre a mesma peça de música: diferentes maestros, diferentes intérpretes, ao vivo aqui, ali e acolá. E, ao mesmo tempo que tem essa imensa colecção, tem a equivalente base de dados - e um conhecimento brutal sobre a matéria. E tem, sobretudo, um prazer incrível em fazê-lo e em falar sobre isso. É o sonho da sua vida e, com tranquilidade, o sonho materializa-se a cada dia que passa.


Mas, claro, refiro-me a pessoas ditas 'normais'. Há, é certo, os que se destacam da normalidade: os que têm dons raros e esses, num mundo vasto e competitivo, é natural que tenham que lutar para singrar até alcançarem o reconhecimento geral. No entanto, alguns, pela sua natureza, conseguem atingir feitos notáveis com a mesma serenidade com que, em casa, praticam culinária.

Estive há pouco a ler a entrevista a Elvira Fortunato, a cientista que diz que fazer transístores é como fazer bolos em casa. Diz que sempre gostou de trabalhos manuais, bordar, pintar, e que até ainda tem por acabar um tapete de Arraiolos.

Na entrevista ela refere coisas como estas:
Brincava muito com bonecas, com a Nancy. Brincava muito com tachinhos e tinha uma cozinha. Aquilo até era um bocado chato, porque era de folha metálica que às vezes cortava os dedos. Mas era uma cozinha com muitas panelas e tachos e essas coisas todas.
(Também eu passava horas a brincar aos cozinhados com tachinhos de alumínio que os meus pais e avós, sabendo desse meu gosto, me compravam na feira.)
Gosto muito de estar em casa. Fiz obras recentemente, tenho quase uma casa nova, e apetece-me estar muito mais tempo em casa. E gosto imenso de cozinhar. Gosto de ir à praia. Gosto de ir ao cinema, mas reconheço que ultimamente tenho ido pouco, porque o meu tempo, especialmente este ano, é pouco.
Elvira Fortunato diz ainda que isto da investigação, que faz de gosto, é coisa que foi acontecendo de forma natural -- e tudo o que diz revela que é uma pessoa de bem com a vida, que vai experimentando, fazendo, andando em frente.

Há pouco tempo, vi-a com o marido, filhos e creio que com o namorado da filha. Estavam no mesmo restaurante que nós, uma espécie de tasca onde o peixe impera. Vestidos com uma simplicidade extrema, bem dispostos, ela completamente na desportiva, sem maquilhagem, quem não a conhecesse dificilmente adivinharia que estava ali uma investigadora premiada, uma pessoa de mérito internacionalmente reconhecido.


Por tudo isto, eu não tenho ideias feitas sobre isto de 'seguir os sonhos', de lutar por ideais sacrificando a vida. Penso que importante mesmo é a pessoa estar bem, estar bem todos os dias, não chegar ao fim do dia sentindo que desperdiçou mais uma parcela da sua vida. Se a pessoa se sente infeliz, acho que deve lutar para ser feliz mas deve saber avaliar se nessa luta não vai exaurir-se, não conseguindo usufruir da alegria de estar vivo. Acho que bom é a pessoa saber equilibrar as suas expectativas e a capacidade de as superar. No entanto, admito que este meu raciocínio é bem capaz de ser coisa de quem, como eu, não tem grandes ambições.

A propósito, lembrei-me que, no outro dia, Leitor a quem agradeço me deixou o link para um vídeo onde o orador, Mike Rowe, diz que vai dizer algumas verdades sujas sobre isto de lutar apaixonadamente por sonhos, muitas vezes inviáveis. Partilho-o convosco.

Don't Follow Your Passion


Should you follow your passion, wherever it may take you? Should you do only what you love...or learn to love what you do? How can you identify which path to take? How about which paths to avoid? 


_____

No reverso, encontrei hoje um vídeo que se vê com bastante agrado e em que, de forma envolvente, Prince Ea puxa pela motivação de quem o ouve, incentivando a que se lute pelos sonhos. Partilho-o também.


EVERYBODY DIES, BUT NOT EVERYBODY LIVES


___

Moral da história

Cabe a cada um escolher os seus caminhos e a forma como atravessa a vida que recebeu de presente.

(O que é o mesmo que dizer que cada um sabe de si -- e o resto é conversa)

________

As fotografias foram feitas no Parque da Paz para onde hoje fui caminhar, procurando a sombra, já que estava impossível de se chegar à praia.

Lá em cima Hélène Grimaud interpreta Chaconne in D minor BWV 1004 - Bach, Busoni

____

Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa semana a começar já por esta segunda-feira.

....