quarta-feira, janeiro 31, 2024

Passinho a passinho...

 

E, portanto, lá fui de novo. 

Ao dirigir-me para o dito balcão fui interceptada: Tem senha? 

E eu, já começando a temer algum novo contratempo: Ontem disseram-me que, para aquele balcão, não era precisa.

E a funcionária, depois de eu lhe dizer que ia para os registos: Mas tem marcação?

E eu, já a perceber que tinha razão para estar assustada: Marcação? Não... Mas marcação como? Ontem disseram-me que primeiro tinha que ir às Finanças mas nas Finanças disseram-me que não, que primeiro era mesmo nos Registos. Estou a vir...

Ela, a olhar para mim como se eu fosse um caso perdido: Mas não pode vir sem marcação...

E eu, quase com vontade de implorar: Mas marco como? Onde? Tiro alguma senha...?

Ela, olhando-me de alto a baixo, tentando avaliar a dimensão da minha ignorância, e concluindo que mais valia ser empática: Olhe, venha comigo...

Lá fui. Chegando à zona dos Registos, disse-me: Espere aqui que vou ver se peço a uma colega para vir ajudá-la.

Agradeci. E ali fiquei de pé, nem sentada ao balcão como os que estavam a ser atendidos nem sentada na sala de espera como os que estavam a aguardar a sua vez. A que tinha ido comigo desapareceu lá para dentro. Depois vi uma outra a uma porta, a espreitar, e a que me tinha escoltado a apontar para mim. Eu a ver-me, indigente, sem saber bem ao que ia, sem saber bem o que fazer.

A primeira despediu-se amavelmente de mim, deixando-me ao cuidado da que veio de lá de dentro.

Esta olhou-me com ar circunspecto. Depois disparou à queima-roupa: Quem é que morreu?

Eu, ar certamente muito infeliz: A minha mãe.

E ela: Qual era o estado civil dela?

E eu, obediente embora sem atingir a pertinência da pergunta: Viúva...

E ela, séria, profissional da cabeça aos pés, como se a querer medir a dimensão do meu desconhecimento: E, na altura, ela tratou da habilitação de herdeiros?

Eu, já aflita: Não sei ao certo. 

Ela, categórica: Não sabe? É que faz toda a diferença. Se não fez, primeiro terá que fazer a habilitação de herdeiros do seu pai. Depois é que pode fazer a da sua mãe.

Vi a vida a andar para trás. Tentei reconstituir: Foi na altura Covid, eu tratei nas Finanças online e a minha mãe fez qualquer coisa que tinha que ser ela a fazer e que tinha que ser presencial. Seria isso?

Ela, como quem começava a perceber que tinha que falar comigo como com uma criança de cinco anos: O que se faz nas Finanças não tem nada a ver com a habilitação de herdeiros.

Puxei pela cabeça mas sem me lembrar de ter visto nenhum documento com esse nome. 

Ela, com ar de quem estava disponível para vir em meu socorro: E a certidão de óbito tem aí consigo?

Eu: Tenho.

Ela: Então dê-me cá que eu vou ver se descubro.

E lá foi para dentro com o papel na mão.

Passado um bocado, apareceu, ar satisfeito: Fez, sim senhora.

Respirei de alívio. 

Ela, diligente: Tem aí o seu Cartão de Cidadão?

Eu, satisfeita por conseguir responder sem hesitação: Claro.

E ela, com ar de quem me põe à prova: E o da sua mãe....? Também tem?

Eu, aliviada por estar a sair-me bem: Também tenho.

Ela, toda executiva: Dê cá.

Nem questionei, dei logo. 

Fotocopiou e veio ter comigo: Diga-me a sua morada. E o seu telemóvel.

Obedeci, sentindo-me agradecida por ela ser tão prestável e por eu ir ficar despachada. Pensei que ela ia fazer a dita habilitação.

Mas eis que ela me pergunta se num dado dia a uma determinada hora estou disponível. Percebi, então, que não estávamos a tratar da dita habilitação mas do seu agendamento.

Confirmei a minha disponibilidade. 

Ela, demonstrando que achava que a minha cabeça é mais pequenina que a de um pombo: Mas não aponta...?

Eu: Não é preciso, eu não me esqueço.

Ela, cheia de dúvidas: Tem a certeza? Não é melhor escrever aí num sítio qualquer?

Eu: Não, não me esqueço.

Agradeci. Quando estava a dar meia volta, regredi: Mas e a certidão de óbito? Fica cá?

Ela: Sim, querida. Depois dou-lhe.

Eu, imaginando o documento perdido no meio daquela miríade de papelada que por ali circula: Mas não se perde...? Não tenho cópia...

Ela: Não, querida, não se perde, vá descansada.

E eu, parecendo que não, vim de lá contente. Parece que o primeiro passo está a caminho de ser dado. Pode parecer absurdo da minha parte mas, como expliquei antes, este mundo burocrático assusta-me, receio não ser capaz de arranjar tudo o que me pedem ou não conseguir arranjar a tempo de cumprir todos os prazos. Portanto, pelo menos já consegui fazer um agendamento.

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E estou a ler um livro extraordinário, daqueles livros que a gente, quando os lê, percebe que quase tudo o resto que anda a ler é coisa pouca, volátil. Este é literatura, é memória, é carne viva, é inteligência, é sensibilidade.

O próprio prefácio é uma preciosidade. Assina-o Eduardo Prado Coelho. 

A ver se avanço mais na leitura para falar dele, talvez transcrever algumas passagens. O que é bom é para ser partilhado.

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Um dia bom

Saúde. Coragem. Paz.

terça-feira, janeiro 30, 2024

Um dia em que andei, andei... para não fazer nada

 

Um amigo contava-me que a mulher, sempre que tinha que tratar de assuntos burocráticos oficiais, enchia-se de tal camada de nervos que lhe acontecia chorar de impotência e incapacidade, convencida de que jamais conseguiria ultrapassar todas as barreiras que, à partida, antevia e que, depois, na verdade, enfrentava. Lembro-me de ele exemplificar com os assuntos relacionados com o falecimento dos pais em que o pai, sendo professor universitário, descontava para a CGA, e a mãe, exercendo uma profissão numa empresa, descontava para a Segurança Social. E tinham uma casa e tinham um carro e tinham uma ou mais contas bancárias. Sendo ela a mais velha face à irmã, era a cabeça-de-casal  da herança. Ou seja, competia-lhe a ela tratar de tudo. Ora ela, de certa forma um pouco despistada por natureza, digamos assim, e, ainda por cima, vivendo num mundo que aliava a criatividade à técnica, tudo o que era burocrático lhe era alheio. Quando eu sugeria que ela se apoiasse na irmã, dizia-me o meu amigo que a irmã da mulher ainda era pior.

Portanto, eu ouvia esse meu amigo ao telefone com ela, tentando acalmá-la ou a dar-lhe pistas enquanto, do outro lado, ela desatinava com os documentos necessários, desatinava com a precedência das tarefas, não sabia se tinha que ir primeiro ao Notário ou à Conservatório ou às Finanças, não sabia onde arranjar os documentos que lhe pediam, dizia que ia desistir, que não conseguia coragem para superar tanto obstáculo.

Eu não serei tão desesperada assim mas sinto que ando por lá perto. Também me sinto, à partida, vítima de um sistema feito para pessoas que percebem dos meandros destas coisas, não para gente meio aluada como eu. Acresce que, quando tenho alguma coisa para fazer, embora tenha tempo, não descanso enquanto não o faço. Quando trabalhava também era assim. Procrastinar não é comigo. Pelo contrário, tentando antecipar possíveis contratempos, quero sempre despachar tudo antes de tempo. Assim, se me surgirem impedimentos ou se houver atrasos inesperados, tenho folga para acomodar esses imprevistos.

Agora, nas actuais circunstâncias, tenho que comunicar isto e aquilo, tratar disto e daquilo. E tenho tempo, três meses mais concretamente. Mas prefiro tratar já de tudo. Apesar de serem coisas em que preferia não ter que tocar, não descanso enquanto não me livrar delas. 

Assim, hoje, seguindo as indicações da senhora da agência funerária que me entregou um papelinho com o que eu teria que fazer e tendo eu também pesquisado, fui a uma Loja do Cidadão tratar do que me parecia ser o primeiro passo. Antes, cuidadosamente, tinha preparado um envelope com todos os papéis que eventualmente poderiam ser necessários.

Depois de ter estado à espera, ao chegar à minha vez, a funcionária disse-me que esse não era o primeiro passo, antes tinha que tratar nas Finanças.

Aborrecida mas a tentar conformar-me, desloquei-me para a zona das Finanças. Aí já não havia senhas. Portanto, vencida, regressei a casa.

Tentei lembrar-me de como tinha sido com o meu pai, do que tinha feito na altura. Mas, quando o meu pai morreu, sendo a minha mãe a cabeça-de-casal de herança (chama-se assim), teve que ser ela a tratar de algumas coisas. Portanto, nem sei bem como é que foi e, do que fui eu que fiz, também já mal me lembro.

Voltei ao google, pesquisei e repesquisei. Tentei, então, fazer online para não ter que ir para a Loja do Cidadão, e segui os passos, um a um, com todo o cuidado. Mas, logo ao entrar, apareceu-me um formulário para preencher. Mas era em PDF, não dava para eu lhe escrever em cima. Depois vi que, mesmo que conseguisse, tinha que anexar o documento que a funcionária da Loja de Cidadão me disse que era a segunda coisa a fazer, não a primeira.

Já baralhada de todo, liguei então para o número de apoio ao contribuinte. Atendeu-me uma senhora simpatiquíssima que me disse que a colega da Loja do Cidadão não sabia do que falava e que o primeiro passo a dar seria justamente o que eu queria ter dado. 

Com isto já eram quase seis da tarde. E, na prática, estava no ponto de parida, ou seja, sem ter tratado de nada.

Lembrei-me da mulher do meu amigo e pensei que percebia bem o desespero dela e a vontade de chorar que estas coisas lhe davam.

Lembrei-me também de um colaborador meu que, quando a mãe lhe morreu, ao fim de algum tempo meteu uns dias de férias para tratar das coisas, incluindo esvaziar a casa da falecida. Era para ter tirado salvo erro uma semana. Mas acabou por ter tirado salvo erro três, aparecendo, depois, mais magro, mal encarado e, dizia ele, à beira de uma depressão. Diz que não atinava com nada da papelada, não descobria papéis que eram essenciais, desorientava-se lá nos serviços, dizia que tinha que se conter para não ser violento (embora reconhecesse que os funcionários das repartições não tinham culpa de nada). Mas, dizia ele, o pior tinha sido esvaziar a casa. Eu tinha conhecido a senhora. Era uma senhora fantástica, da burguesia nortenha, uma senhora muito distinta, ligada a associações de beneficência, presidente de uma delas, uma senhora sempre altamente produzida. Morava num grande apartamento numa das melhores zonas do Porto. Dizia esse meu colaborador que a mãe tinha roupas infinitas, infinitos sapatos, infinitos colares, infinitas pulseiras e anéis, infinitos álbuns de fotografias, infinitos álbuns de recortes de tudo e mais alguma coisa feitos pelo pai, falecido anos antes, infinitas prateleiras e gavetas de moedas pois o pai tinha sido coleccionador, tudo muito bem acondicionado, tudo catalogado, que era tudo infinito, lençóis, colchas, cobertores, toalhas, serviços de louça, de copos, faqueiros, tudo infinito. Ele não sabia o que fazer àquilo tudo, não tinha onde guardar nada daquilo. Pôs a hipótese de se mudar para casa da mãe e vender a dele. Mas a mulher recusou-se a ir morar para o museu que era a casa da mãe. Diz que por pouco não se divorciou da mulher tal a crise que se gerou com tudo aquilo. Voltou ao trabalho não porque tivesse acabado a tarefa mas porque a interrompeu. 'Cheguei a um ponto em que já não sabia o que fazer à minha vida. Olhe, em bom português, caguei. Daqui por algum tempo, a ver se me encho de coragem... e se as coisas entre mim e a minha mulher se aliviam', dizia ele, derrotado, sem saber quando conseguiria energia para voltar a casa da mãe e sem saber o que fazer a tudo o que lá estava dentro.

E eu, pensando nisso, também já me encolho toda. Vai ser muito difícil por todos os motivos. Nem quero pensar. Mas, por isso mesmo, também quero atirar-me a isso o mais depressa possível. Sinto que não sentirei descanso enquanto não ultrapassar essa terrível tarefa.

Mas, por enquanto, ainda estou no capítulo da burocracia.

Enfim....

(Quanto ao resto, vou tentando assimilar, vou tentando superar aqueles momentos de tristeza que teimam em aparecer. Mas a vida continua.)

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Um dia bom

Saúde. Força. Paz.


segunda-feira, janeiro 29, 2024

Paulo Portas, um comentador cada vez menos isento, vai continuar a fazer campanha contra o PS e a favor da AD até às eleições?
- pergunta o meu marido

 

Ouvi hoje, como é mais ou menos habitual, o comentário do Paulo Portas na TVI. Quando o comentário é sobre a politica internacional e os acontecimentos se referem a países estrangeiros a análise é, em regra, inteligente e devidamente fundamentada. O problema é quando fala sobre temas nacionais. Neste caso a análise é enviesada e a fundamentação parcial. 

Já esperava que com o aproximar das eleições o antes chamado Paulinho das feiras e dos submarinos viesse defender os interesses da AD pela qual tanto pugnou mas julguei que mantivesse um certo decoro no seu comentário semanal. Mas não, hoje  a coisa extravasou para o indecente com  a conivência habitual da partenaire/jornalista que o acompanha na emissão. Não ouvi o comentário até ao fim mas o que ouvi bastou.

O Paulo Portas, que em tempos andou nas bocas do mundo pelos piores motivos, veio, qual virgem impoluta, falar do PRR e, para além disso, comparou a investigação ao António Costa com o processo da Madeira. Foi despudorado e mentiroso.

  • Relativamente ao PRR afirmar que as 10 organizações que receberam mais dinheiro do PRR são do Estado omitindo que, obviamente, o dinheiro recebido vai ser gasto e portanto vai contribuir para o crescimento da economia e o desenvolvimento de empresas privadas, nomeadamente as que vão executar os trabalhos, é capcioso e diz bem dos objetivos do Paulo Portas.  

  • A comparação que fez entre o processo da Madeira e a investigação ao António Costa não tem sustentação e tem como propósito enfiar no mesmo saco situações diametralmente opostas. A semelhança entre as notícias que foram passadas para os jornais relativamente às duas situações é zero. 

Depois, a forma como tentou justificar que não são necessárias eleições na Madeira é ultrajante para  a inteligência de um telespectador com dois dedos de testa. Dizer que o Marcelo não pode decidir até 24 de Março é pura manipulação. O Marcelo pode decidir e anunciar como sempre fez noutras situações o que vai fazer relativamente às eleições na Madeira. O que o Marcelo não pode fazer é formalizar já a decisão se esta for a dissolução. Haja decoro e não nos tome por parvos.

 A TVI vai continuar  a manter este tempo de antena da AD aos domingos até ás eleições? O Nuno Santos também deveria ter algum decoro! 

PS: No caso da Madeira também sou absolutamente contra todo espetáculo proporcionado pelo MP e a convocação antecipada dos jornalistas para o "evento". Basta!

domingo, janeiro 28, 2024

Falamos junto à luz


Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.

Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.

Será o mesmo brilho, a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.

Sophia de Mello Breyner Andresen, em ‘Dia do Mar’


De tarde, chamados pela luz suave e dourada, pelo prenúncio de primavera que nos trouxe temperaturas muito aprazíveis, e, sobretudo, pelo menos pela parte que me toca, pela necessidade de oxigénio, fomos para a beira do rio.

O prazer de andar e conversar num dos lugares bons da cidade, a diversidade de gentes com que nos cruzamos, o sol sobre o rio, a boa companhia, tudo isso é remédio certo para lavar a alma.

Em tempos fotografava pessoas. Adorava. Sentia-me sempre uma observadora clandestina e, ao mesmo tempo, transparente. Já conseguia antecipar os movimentos das pessoas, as suas expressões. Estava de tocaia e, quando a ocasião se proporcionava, disparava. E, aparentemente, ninguém dava por nada.

Tenho muitas centenas ou, melhor, provavelmente, milhares de fotografias de pessoas. Mas depois temia sempre publicá-las pois receava que estivesse a pisar o risco da privacidade. É certo que há mesmo a modalidade de fotografia de rua e muito do que era a sociedade em tempos mal documentados se conhece através do trabalho de fotógrafos de rua. Mas, por via das dúvidas, encolhi-me. E, se não posso mostrar, para quê estar a fazer?

Portanto, agora tento evitar a presença de pessoas. Contudo, por vezes, é impossível deixá-las de fora. Mas, como sempre costumo dizer quando aparecem pessoas nas minhas fotografias, se alguém se reconhecer aqui e não quiser cá estar, bastará que mo diga.

Fomos lanchar ao CCB, depois fui lá tratar de um assunto e, de seguida, fomos passear para a beira do rio. 

O que abaixo partilho é parte da arte de rua que por aqui se pode ver. Escultura de homenagem ao pessoal clínico em tempos covid, a escultura Central Tejo, os big e engenhosos trabalhos da Joana Vasconcelos (se é arte ou gigantes trabalhos que incorporam design e montagem isso não sei), o mural em que vários artistas homenageiam o 25 de Abril, os belos murais de azulejos com poemas de Sophia, o próprio edifício do MAAT que é escultural.

A última fotografia não foi feita hoje nem é em Lisboa. É em Setúbal, no belo PUA, e é uma homenagem a José Afonso. A minha filha estava lá à frente mas, com o corrector, retirei-a. Não ficou perfeito mas como a escultura é algo 'incerta' a modos que disfarça.

Em dias como estes, é bom sair de casa, andar a passear, a laurear, a flanar, a desopilar, a vadiar, a turistar, a espairecer, a espanejar, a dar ar à pluma. Mas, para quem não possa fazê-lo, aqui fica um cheirinho.


























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E vi este vídeo de que gostei e que gostaria de partilhar. Já não é Green Renaissance mas Reflections of Life e são sempre tão tranquilos, transmitem serenidade, a vida a ser vivida com vagar, o contacto com a natureza, o prazer de existir de forma simples.

BELONGING - Finding Connection

Quando somos incompreendidos e sem apoio, é fácil sentir-nos sozinhos, como se não nos encaixássemos no mundo que nos rodeia. Mas algo lindo começa a acontecer quando entendemos que nossa singularidade não é uma falha, mas um motivo de comemoração.

À medida que aprendemos a valorizar e a partilhar os nossos dons individuais, reconhecendo a beleza das nossas diferenças, encontramos uma ligação renovada com o mundo - semelhante à harmonia encontrada na natureza, onde cada elemento contribui para a beleza geral da paisagem.

Inspirando-nos no mundo natural, entendemos que abraçar as nossas diferenças é um presente que podemos oferecer ao mundo, tornando-o um lugar mais bonito para todos que nos rodeiam.

A resposta reside em colmatar lacunas, cultivar a empatia e revelar a vibrante tapeçaria da nossa experiência humana partilhada através do reconhecimento e da celebração da diversidade.

Filmado em Singapura

Com Kathleen Yap


Desejo-vos um bom domingo
Saúde. Serenidade. Paz.

sábado, janeiro 27, 2024

A minha última tia e a outra autobiografia

 

Para além dos comentários aqui e dos mails de Leitores a quem muito agradeço, tenho recebido muitas mensagens de amigos, palavras de conforto e solidariedade.

Nos últimos tempos (na verdade, nos últimos dias -- foi tudo tão rápido que quase perco a noção do tempo), como a minha mãe quase não tinha voz nem coordenação motora suficiente para atender chamadas, pediu-me para eu trazer o seu telemóvel para casa. Aqui tem estado. Enervadíssima como andava, tirei-lhe logo o som pois sei que me faria impressão ouvir o seu telemóvel a tocar. Mas, de vez em quando, ao longo do dia, ia vendo se havia chamadas não atendidas ou mensagens. E ia respondendo ou devolvendo chamadas, tendo sempre o cuidado de dizer logo de início que não era a minha mãe mas a filha e explicando a razão de ser. Mas, por via disso, fui falando com várias das suas amigas. 

Hoje recebi, no meu telemóvel, uma chamada de um número que não faz parte dos meus contactos. Nada de mais pois não apenas o ano passado deixei de ter o telemóvel da empresa como tive que trocar o aparelho em si, por avaria, e, com estas mudanças, não sei como -- ou melhor, sei: certamente por nabice --, perdi inúmeros contactos. Quando atendi a chamada, do outro lado uma foz sumida, entrecortada, falta de rede, quase não se percebia. Deu apenas para entender que, muito ao longe, era uma voz de uma idosa e consegui distinguir o nome da minha mãe. Quando tentei perceber quem falava, a chamada foi entrecortada, posta em espera, e depois caiu. Quando contei isto aos meus filhos, ao chegar a este ponto, ambos me perguntaram se eu tinha pensado que estava a receber uma chamada do além. Não, não pensei. Pensei que poderia ser uma das suas amigas embora isso fosse pouco provável pois tinha-me comunicado com elas através do telemóvel da minha mãe e não do meu.

Devolvi a chamada e tive outra vez muita dificuldade em perceber. A pessoa estava num local com pouca rede ou não devia estar a pegar bem no telemóvel. Até que, ao fim de algum tempo, lá consegui perceber que era a minha tia cujo nome é o mesmo do da minha mãe. É casada com o irmão do meu pai. São os meus dois últimos tios vivos.

Esta minha tia está muito debilitada, com muitas dificuldades entre as quais a da fala. Não foi ao velório nem ao serviço fúnebre pois tem grandes limitações, entre as quais a nível locomotor. 

Aliás, na pequena cerimónia antes da cremação, um dos momentos em que quebrei foi quando chegou a minha prima com o meu tio pelo braço, já um pouco trôpego, muito abatido e muito triste. Não tinha ido ao velório na véspera porque estava frio e para a minha tia não ficar sozinha à noite. Veio ter comigo e abraçou-me, muito comovido, e vi-o a balbuciar, certamente queria dizer-me algumas palavras, mas não conseguiu dizer nada. Ele e a minha mãe conheciam-se desde sempre, sempre foram amigos e sempre cuidaram do jardim um do outro quando algum deles se ausentava. Tinha-me a minha prima dito que os pais nem queriam acreditar que a minha mãe tivesse morrido pois a minha mãe era, para eles, o exemplo a seguir, a pessoa cheia de dinamismo, com uma vida activa, a estudar, a caminhar, a conviver. Ver o meu tio, já tão velhinho, tão comovido, tão sem palavras, partiu-me o coração.

E a minha tia deve ter estado a ganhar coragem para me telefonar pois estava também muito emocionada, muito triste. É inevitável que pensem que, do grupo de familiares daquela idade, já só resistem eles. Custou-me muito falar com a minha tia, a voz muito apagada, estava a evitar chorar, muito triste. Às tantas, depois de falar das suas maleitas, disse-lhe que ela, se calhar, devia ir mais para o jardim, apanhar algum sol. Faz-me impressão que esteja o dia todo dentro de casa. Mas mal consegue andar e tem medo de cair. E eu percebo-a. A minha prima é incansável. Não sei como, dada a sua muito absorvente vida profissional, consegue ir a casa dos pais todos os dias. Mas, claro, só o consegue ao fim do dia. E os meus tios também só aceitam uma pessoa para ajudar na lida da casa três manhãs por semana, pois o meu tio sempre foi muito activo e quer manter alguma actividade e, além disso, querem manter a ideia da sua independência e a sua privacidade. Portanto, no resto do tempo, estão por sua conta. Ora, face a isso e consciente das suas fragilidades, tentam limitar os riscos. Mas é muito triste pois sentem-se diminuídos nas suas capacidades e, de certa forma, isso retira-lhes muita da sua alegria de viver. 

Uma das minhas dúvidas, e sobre a qual não cheguei a falar com a psicóloga e ser-me-ia muito útil, tem a ver com eu não saber bem o que dizer para animar uma pessoa que está prestes a morrer, como era o caso da minha mãe, ou que, pela idade e pela sua condição física, já não tem esperança de recuperar a sua anterior mobilidade ou agilidade ou, por consequência, a sua independência. Acho que não se deve mentir mas também me parece cruel pedir à pessoa que aceite com naturalidade a sua condição ou a finitude da vida. Tenho que me informar, pedir conselho, pedir ajuda.

A minha tia ligou para me tentar confortar mas, na verdade, eu é que queria confortá-la a ela. Falei-lhe na filha, sempre tão dedicada e amiga, nos netos, na bebé bisneta, tão linda, disse para ela pensar nos momentos bons. Mas ela, já tão cheia de limitações, sentindo-se tão triste por já praticamente nada poder fazer em casa, naturalmente não se anima com conversas destas.

Por isso, fiquei bastante triste com este telefonema. Disse-lhe que quando agora for à casa da minha mãe, vou a casa dela dar-lhe um beijinho. Até lá tenho que resolver aquela minha dúvida pois agora que a minha mãe morreu, ainda mais desanimados e tristes eles estão.

Acontece que desde o dia da cremação fiquei aflita com dores, primeiro numa anca, depois num dos joelhos. Não sei se foi por estar muitas horas de pé, se foi do frio, se foi pelo stress, parece que fiquei tolhida. Ontem fomos buscar as coisas da minha mãe mas quem foi ao quarto buscar as malas foi o meu marido. Eu não saí do carro não apenas porque me custaria demais mas também porque estava quase sem conseguir dar passo. De noite tomei um comprimido para as dores. Dormi imenso. E acordei melhor. E hoje estive de repouso, nem fiz as caminhadas do costume nem nada. 

Portanto, aproveitei para ler. E fui ler o segundo livro da autobiografia da Rita Lee. Chama-se 'outra autobiografia'. Estava na dúvida dado que foi o que ela escreveu no período que decorreu entre o diagnóstico de cancro e a sua morte. Mas, por algum motivo, foi justamente esse o livro que quis ler. 

Acabei-o há pouco. Divertido como o anterior, leve, alto astral, uma escrita colorida, vibrante, bem temperada. 

Descreve como descobriu a doença, os exames, depois a a radioterapia, a quimioterapia, os efeitos secundários, a fragilidade, as metástases que iam aparecendo, o tumor externo que apareceu e a que apelidou de Jair e como queriam ver se acabavam com ele, os ataques de pânico, a casa transformada para a acolher, a enfermeira lá em casa, as idas e vindas ao hospital. Tudo descrito sem meias palavras, sem falsos pudores, sem tabus. Não me impressionou nada. Não é um livro triste, depressivo. Não. É apenas a descrição do que se passou, uma descrição que se lê com curiosidade e, por vezes, aliás, muitas vezes, com um sorriso. 

E fez-me muito bem. Ainda com mais certeza fiquei de que a minha mãe tomou a decisão correcta. 

Note-se que não estou a dizer que é a decisão correcta em geral. O cancro hoje não é a fatalidade que era há uns anos. Há cada vez mais casos de cura e há cada vez mais casos em que o cancro se torna uma doença crónica, algo com que se vive quase como se não existisse. Mas, no caso da minha mãe, com uma insuficiência cardíaca que afinal também já era terminal, já não suportaria tratamentos agressivos. Portanto, para quê a angústia de exames complicados, para quê a angústia de tratamentos que, mesmo que sobretudo de contenção, menos agressivos como a radioterapia, poderiam ter implicações que, se calhar, a deixariam  ainda mais debilitada? 

Assim, guardou o assunto apenas para si própria. E, desde que o corpo fraquejou até ao fim, foi rápido. Sofreu bastante, sobretudo, porque assistiu, em toda a sua lucidez, ao avançar galopante da doença, mas foi rápido, menos de dois meses.

No caso da Rita Lee é natural que tenha feito de tudo para tentar travar a doença pois tinha apenas setenta e cinco anos e há combinações terapêuticas cujas taxas de sucesso são encorajadoras. 

Mas o caso dela é daqueles casos em que, como diria o meu filho referindo-se a um familiar próximo, se pode dizer que se esforçou bastante para ter aquele cancro. Conta ela que sempre fumou muito, cerca de dois maços por dia, e que, durante a pandemia, já ia em três maços e meio por dia. Claro que o tabaco não é a única causa mas quando se fuma tanto como ela fumava as probabilidades aumentam. 

Eu, que fui fumadora, sei bem que a gente só pára quando tem mesmo vontade de parar, uma vontade nossa, que vem de dentro. Não é a conversa dos outros que nos leva a essa decisão. Toda a gente sabe que fumar faz mal. Mas quando vejo tanta gente que ainda fuma, em particular parece que agora até são mais as mulheres que fumam, fico com pena que não tenham vontade de deixar de fumar. 

Mas, enfim, não tenho espírito de missionária pelo que as missões antitabagistas têm que ficar para quem tenha vocação para tal.

Pela parte que me toca tenho agora que apanhar ar, apanhar sol, começar a ocupar a cabeça com pensamentos alegres. Claro que tenho pela frente tarefas que, por antecipação, me atormentam um bocado, ou melhor, muito: as papeladas, as malas que tenho na cave, a casa... Mas, enfim, uma coisa de cada vez. Para já tenho que respirar.

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Rita Lee - Ôrra meu

[Gravado em casa, com o marido e um dos filhos, durante a pandemia, antes de lhe ter sido diagnosticado o 'troço', como ela, por vezes, se refere ao cancro]


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Desejo-vos um bom sábado. 
Saúde. Alegria. Paz.

sexta-feira, janeiro 26, 2024

A minha mãe

 

Depois de anos a acompanhar o declínio do meu pai, com as suas recuperações intermédias e efémeras, com fisioterapia lá em casa e com o apoio de uma senhora que tratava da higiene e da mobilização dele de e para o cadeirão (isto quando tal era possível), com o desgaste e a ansiedade que tal situação acarreta, quando ele se foi pensámos que a minha mãe ia poder gozar a sua vida em liberdade.

De facto, foi para a universidade sénior, teve aulas de informática, voltou a refrescar o inglês, isto para além de frequentar psicologia, história e literatura, foi a passeios com amigas, a excursões e à revista, habituou-se a usar o iPad, fazíamos passeios na praia, juntava-se a nós cá em casa, foi de férias connosco para o Algarve. E tudo parecia estar bem e ela descontraída e feliz.

Até que, talvez há um ano e tal, quase de um dia para o outro, as coisas mudaram. Passou a ter pavor de doenças, evitava ajuntamentos, temia que os miúdos a contagiassem com viroses e afins, mas, estranhamente, ainda tinha mais pavor dos efeitos secundários dos medicamentos. Começou por se recusar a tomá-los até que, por duas vezes, ficou internada com a sua situação clínica descompensada. 

A partir da segunda vez, passei a acompanhá-la às consultas dessa especialidade pois percebi que poderia ser grave se não se tratasse. Era a única doença que eu lhe conhecia, doença essa que, sendo controlada, nem seria nada demais, coisa quase banal tendo em atenção a sua idade. 

Contudo, muitas vezes me interroguei se eu fazia bem em fazer aquela marcação cerrada, assistindo às suas consultas, insistindo para que cumprisse à risca todas as prescrições. O ter que tomar aqueles medicamentos era para ela uma doença, uma espécie de condenação. 

Queixava-se de todos os sintomas que via na bula e fazia de tudo para ver se suspendia a medicação. Sofria por se sentir obrigada a tomar os medicamentos. E, estou hoje em crer, muitas vezes não devia tomá-los.

Eu dizia-lhe frequentemente que ela padecia de uma variedade atípica de hipocondria pois receava as doenças mas receava ainda mais os medicamentos. Ela achava que eu não a levava a sério, e, de facto, não, não podia acreditar que todos os efeitos que constavam da bula, mesmo os improváveis, mesmo os muito raros, se manifestassem nela.

No entanto, apesar disso, continuava bem, autónoma, independente, tratando da sua casa e, na prática, rejeitando apoio regular. Dizia-me: 'Mas, olha lá, tu não vês que dou bem conta de tudo...? Ter cá alguém para quê? Para estar aqui, sentada na sala, a olhar para mim?' ou 'Deixa-me cá estar, como eu quero, a fazer as coisas à minha maneira'.

Apesar de suspeitar que a sua recusa em ter companhia regular se devia a não querer tomar os medicamentos, respeitei a sua vontade. O que havia de fazer?

Aliás, quando julguei que a tinha convencido a ter lá uma pessoa todos os dias, logo constatei que, ao fim de uma semana, já tinha reduzido para uma manhã e, acto contínuo, já tinha passado de uma manhã para uma hora e, por fim, apenas a queria como dama de companhia, para ir de carro com ela às compras ou, por vezes, passear à beira-rio.

Contudo, queixava-se permanentemente de mil maleitas que a mim, e aos médicos que consultava, pareciam aleatórias e avulsas, de curta duração, e que não se encaixavam em nada. E ia a muitos médicos e fazia muitos exames. E, segundo ela (e do que eu via nos relatórios que ela me mostrava) não havia nada a reportar. Mas queria sempre encontrar algum outro médico que fosse competente pois, segundo ela, eram todos gaiatos ou distraídos ou 'a despachar'. E, de cada consulta que vinha, dizia que era mais um que não percebia nada daquilo e que achava que seria importante ouvir uma segunda opinião. Eu retorquia que já tinha ouvido dezenas de opiniões, que não fazia sentido estar sempre naquilo.

Em Novembro foi, toda animada, carregada com mil malas, um verdadeiro enxoval, para uma residência com enfermagem diária, com médico, e onde estavam colegas e amigas. Segundo me confessou, ia com esperança que o médico reconhecesse que se poderia suprimir ou reduzir a medicação para a sua maleita.

Mas o médico foi categórico, disse-lhe que nem pensar, que a medicação era a correcta e imprescindível. Isso foi um balde de água fria para ela, um verdadeiro desânimo. Tenho para mim que, se não fosse para manter algumas aparências, nesse mesmo dia tinha feito as malas a voltado para casa.

E, ao fim de pouco tempo, o seu estado começou a agravar-se inexplicavelmente. De forma acentuada, a sua debilidade era cada vez mais incapacitante. Pensou-se que era ansiedade, quiçá uma depressão. Eu achava que, se calhar, tinha perdido as esperanças de arranjar um médico que mandasse parar os medicamentos que, segundo ela, só lhe faziam mal e que isso estava a deixá-la deveras perturbada. Mas, ao mesmo tempo, percebia que alguma coisa estava realmente mal, que não podia ser só depressão, que qualquer outra coisa estava a minar diabolicamente a sua saúde. Andei todos aqueles dias com o coração apertado, apertado, numa grande angústia, intuindo que algo de grave estava a consumi-la.

Até que, num exame em meados de Dezembro, estava ela já muito fraca, descobrimos que tinha afinal uma doença já em fase terminal. E, por mero acaso, descobrimos também que ela já o sabia. Aliás, quase ao mesmo tempo, descobri exames de um ano antes em que já se falava da forte suspeição, em que já se descrevia o problema. Não sabemos porque o escondeu mas admito que por receio dos tratamentos e talvez contando que a progressão fosse lenta. A verdade é que encobriu a doença. E mesmo a outra situação que eu julgava que estava compensada, afinal também não estava bem, provavelmente por ter saltado, de quando em quando, se calhar mais vezes do que poderemos alguma vez comprovar, algumas tomas dos tais fatídicos medicamentos. 

Para nós foi um choque tremendo. Fiquei atordoada, senti-me derrotada, vencida, infeliz de todo. 

Foi internada em estado muito crítico. E o seu estado foi piorando de dia para dia. Os médicos explicavam que a situação era grave, terminal. Mas diziam também -- e isso para mim é um (estranho) consolo -- que, se calhar sem querer, a minha mãe tomou a atitude mais inteligente pois viveu bem, sem limitações, até há muito pouco tempo, poupando-se a exames e a tratamentos, se calhar dolorosos e, com certeza, dada a idade avançada e a conjunção de patologias, inviáveis ou inúteis.

Portanto, depois do choque que me trouxe em estado de incomensurável ansiedade 

primeiro por não perceber o que estava a passar-se e, depois, por termos descoberto a gravidade das suas doenças numa fase em que já nada havia a fazer, por me sentir impotente, incapaz de poder fazer ou decidir alguma coisa que pudesse ajudar a salvá-la ou ajudar a prolongar a sua vida, num estado de enorme abalo e tristeza por ver como o seu estado se agravava de dia para dia, sempre naquele limbo em que nunca sabíamos se, ao entrarmos no quarto, a iríamos ver melhor ou já sem respirar, numa angústia sem atenuante, uma angústia tão grande, tão profunda, por ver como a minha mãe, lúcida, sofria por não se sentir a melhorar, assistindo à triste perda, uma a uma, de todas as suas faculdades, 

quero agora começar a pensar que, vendo bem as coisas, a minha mãe viveu como quis, decidiu o que quis, conseguiu que, até há muito pouco tempo, não a olhássemos com a tristeza de a sabermos com uma doença incurável. Conseguiu viver normalmente quase até ao fim.

No outro dia, salvo erro neste sábado, quase sem voz, um fiozinho, um sopro quase inaudível, disse-me, com muita tristeza: 'Já viste bem o problema...? Querer falar e não ter voz...'. Eu pensei que o grande problema era outro, era a quase inevitabilidade da morte que avançava a passos largos. Mas esforcei-me, acho que não deixei transparecer, e disse-lhe num tom que tentei que fosse leve: 'Mas eu estou a ouvir o que diz, percebo tudo, nós percebemos o que diz...' e a minha filha, que também lá estava, confirmou: 'Ó vó, tu já estiveste pior, já estiveste mesmo sem falar, agora percebe-se tudo o que dizes, estás melhor...'. Tentámos animá-la e ela pareceu deixar-se animar, embora de uma forma quase indiferente, embora talvez estivesse apenas cansada, ou a fingir, não sei, pois sabia que o fim estava a aproximar-se.

Hoje, ao ver a sua carteira, vi o talão de uma loja de lingerie do último dia de Outubro. Estava bem, andou às compras, deve ter comprado camisolinhas interiores ou pijamas. Era muito ciosa da qualidade das peças de roupa que usava. Nesse dia comprou também pastéis de nata e ainda foi ao supermercado. Todos nós estávamos longe de supor o que se passava, longe de supor que, pouco tempo depois, estava como estava, prestes a soçobrar. Longe, muito longe de imaginar que dois meses e tal depois já cá não estaria.

E tinha sempre a preocupação de ter casaquinhos de malha para vestir por cima das blusinhas. Tinha-os de todas as cores mas havia sempre alguma cor que lhe faltava. Também no fim de Outubro foi, pois, comprar mais um, por sinal muito bonito em verde-dourado. Eu achava uma coqueteria dela, não percebia aquela vaidade de casaquinhos de todas as cores e feitios, mas, enfim, se ela ficava feliz com isso, dizer o quê? Acho que não chegou a estreá-lo e tenho pena pois ficar-lhe-ia bem. No verão fui com ela a uma loja que fez as suas delícias. Escolheu, apalpou a lã, inspeccionou os avessos. Dizia que era boa confecção, bons materiais, nada a ver com 'essas porcarias chinesas...'. Foi um presente meu: um casaquinho azul escuro com risquinhas brancas no cós do pescoço, no cós das mangas e em baixo, e um outro, que tive que insistir que o trouxesse pois achava garrido demais, em salmão, arrendado. Mas ficava-lhe mesmo bem. E uma tshirt com fundo claro, de manga curta, com manchas como folhas, como flores abstractas em vários tons de amarelo e laranja. 

Dias depois a minha filha andou a passear com ela à beira-rio, foram até ao MAAT, foram lanchar ao Sud, estar por lá. Estava super bem-encarada, calças claras, essa tshirt alegre e estival, ténis frescos e claros. 

A minha filha fotografou-a sentada na escada, corada, sorridente. Parecia cheia de saúde, via-se que estava feliz. 

Quando ela se queixava de que os medicamentos lhe faziam isto e aquilo tentávamos dissuadi-la, chamando a sua atenção para o bem que estava, parecendo ter vinte anos a menos. E parecia mesmo. Quase sem rugas, pele muito lisa e bem hidratada, olhos azuis, corpo elegante, a andar bem.

Foi essa fotografia que a minha filha lhe tirou nesse dia de verão que escolhemos para figurar no cartão fúnebre e que a senhora da agência colocou numa moldura sobre o manto que cobria a urna.

Todas as pessoas estavam chocadas, intrigadas com a sua morte. Dizíamos: 'a fotografia é deste verão'. O que se tinha passado para que, estando tão bem, tivesse morrido assim tão de repente? -- todos perguntavam. Ainda no início de Novembro, antes de ir para aquela residência, estava no jardim a apanhar ervas daninhas, a podar as roseiras, a regar. As vizinhas referiram-no. E toda a gente referia as suas caminhadas, a sua energia. A todos parecia impossível que, de forma tão abrupta, tivesse morrido.

E embora eu própria ainda esteja a tentar recompor-me do tremendo choque que sofri ao sabê-la numa fase terminal e a vê-la a apagar-se inexoravelmente, de dia para dia, e do enorme desgosto que sinto, 

tentando perceber como vou colmatar a sua perda, como vou passar sem os dois telefonemas por dia (em que, nos últimos tempos antes da terrível descoberta, já me enchiam de ansiedade e em que fazia enormes exercícios de criatividade para tentar provar-lhe que o que sentia não era nada de concreto e para tentar descobrir o argumento infalível que a convencesse a esquecer os efeitos secundários e tomar os comprimidos para a única doença que era do meu conhecimento -- mas, que, ainda assim, eram momentos integrantes da minha rotina diária), sem as visitas que lhe fazia, sem a sua existência física,

tento convencer-me que a minha mãe viveu bem até há pouco tempo, teve uma vida longa e preenchida, com netos e bisnetos que a enchiam de orgulho, sem que ninguém a olhasse com comiseração por ter uma doença numa fase terminal, sem que ela própria se visse a ter que enfrentar quimioterapias, radioterapias, entre médicos e hospitais. Poupou-se a isso e, se calhar, quem sabe?, também se sentiu contente e orgulhosa por ter poupado a família a isso.

Nesta quarta-feira, para me despedir da minha mãe, usei um casaquinho feito por ela em crochet supercolorido, uma réplica de um modelo Dolce & Gabbana. Naquela altura, ela andava a dizer que estava sem nada que fazer e eu, vendo aquele modelo tão bonito, disse-lhe que me candidatava a um assim. Ela agarrou o desafio. Foi muito trabalhoso e ela orgulhava-se muito daquele exigente trabalho, e eu também; sempre que o vestia, atraía as atenções e eu elucidava sempre: 'foi a minha mãe que o fez'. E contava-lhe isso, contava como as pessoas ficavam admiradas por ela ter feito um trabalho tão complexo e tão perfeito, e ela ficava contente. Usei, pois, esse casaquinho que ela me fez. Acho que ela teria gostado de saber. Foi como que uma homenagem. O seu trabalho, que fez com amorosas mãos, continua a ser muito estimado, continuarei a usá-lo com muito orgulho.

E usei também o fiozinho de ouro com um coração aberto, o contorno de um coração, que sempre lhe conheci junto ao pescoço. E usei os seus brincos inseparáveis, em ouro branco e dourado. O meu marido estranhou: 'Estás a usar essas coisas da tua mãe...?!'. A minha filha também me perguntou se não me fazia impressão usar o fio e os brincos dela, que ela usava sempre, em qualquer ocasião, que usou até ter entrado no hospital. Não. Não me fez impressão nenhuma. Senti que tinha que ser. Acho que foi uma forma de a ter ali comigo, bem junto a mim, naquele momento em que, na verdade, já não era ela que estava na urna. 

A minha filha também levou uma blusinha branca com umas florzinhas coloridas que a avó lhe fez no verão. Também quis honrar a sua memória. Lembrou-se certamente da avó a provar-lhe a blusinha, a ver se estava de bom tamanho e largura, a decidirem em conjunto em que posição, a que altura, se haveria de pregar as florzinhas. São momentos assim que não se esquecem. 

A minha filha é que falou com a senhora que vestiu a minha mãe, depois de ter morrido, porque eu estava incapaz disso. Antes combinámos entre nós e eu sugeri que vestisse, por cima, um casaco quentinho. A minha filha achou que não fazia sentido e que iria melhor só com as calças e a blusa bonita, no mesmo tom, que iria mais elegante, disse que a avó ligava muito a vestir-se com elegância e que um casaco, naquelas circunstâncias, não fazia sentido. Compreendi mas, inicialmente, antes de falar com ela, parecia-me que um casaco quentinho era indispensável. Mas aceitei que a minha filha tinha razão. Contudo, quando ela falou com a senhora, sugeriu que lhe fosse vestida uma camisola interior por baixo da blusinha bonita. Contou-me que a outra senhora estranhou, deve ter achado que não fazia falta ou que não fazia sentido, mas a minha filha achou melhor. E eu também achei bem. Pode não fazer sentido mas há um último reduto de irracionalidade para o qual nos movemos nestes momentos em que a emoção parece tomar conta de tudo.

Quando lá, na capela, num dado momento, eu disse 'a minha mãe está ali', o meu marido corrigiu-me, disse que já não era a minha mãe que estava ali. E sei que não. Ali já era apenas o corpo que tinha resistido até um dia e tal antes. Tal como não é ela que agora está transformada em cinzas que em breve serão enterradas.

A minha mãe está nas nossas memórias, no que recordamos dela. Está também no estojo de costura que hoje encontrei numa das suas malas, ela sempre tão ciosa das suas costuras imaculadas, as caixinhas da costura sempre tão bem arrumadas (ao contrário das minhas, sempre uma confusão), está no dedal de prata que usou toda a vida e que hoje guardei na minha mesa de cabeceira, está no espelhinho, tão bonito, que trazia sempre na sua carteira. E está no que irei descobrindo à medida que for mexendo nas suas coisas. E está nas fotografias em que estava sorridente e feliz entre nós.

Cada um reage à sua maneira. Umas pessoas mais racionalmente, outras mais emotivamente. Mas, de uma maneira ou de outra, é sempre uma perda, uma dor. Sei pela experiência da perda do meu pai que o tempo vai atenuando, vai adoçando, vai tornando os contornos mais suaves. 

E sei que, no fundo, o que ficará de todo este processo é a inteligência e sabedoria da minha mãe ao conseguir viver bem quase até ao fim, furtando-se ao máximo ao estatuto de doente e de coitadinha. Viveu quase até aos noventa e um anos e, com excepção do último mês e picos, viveu na plena posse das suas faculdades, a decidir sobre a sua vida, como uma pessoa livre e independente. E, quando me esquecer do último ano e tal (em que, talvez por saber o que tinha e por ter decidido seguir adiante sem se tratar e sem comunicar à família, parecia quase sempre um bocado preocupada, frequentemente como se tivesse medo de tudo e mais alguma coisa), lembrá-la-ei como lembro os seus momentos mais luminosos: bem disposta, sorridente, por vezes rindo até às lágrimas, sempre muito bem informada, com uma memória infinita e inacreditável, muito amiga de ler, com opiniões próprias, a gostar de contar histórias, imitando os personagens dessas histórias, desfiando recordações dos seus tempos de professora, a fazer arranjos nas roupas de todos, a fazer meias de lã, mantinhas, blusas e casaquinhos, a gostar de preparar grandes lanches em sua casa com bolos e crepes e tartes que fazia em doses duplas e que todos adoravam, a gostar de ter os miúdos a desarrumar-lhe a escrivaninha que mais parece uma arca do tesouro, a conversar animadamente com a minha filha, a querer que o meu filho lá fosse apanhar as laranjas, tão doces, e, não menos importante, a professora querida de que os alunos não se esquecem nunca. É assim que a minha mãe era, é assim que quero guardá-la dentro de mim, é assim que gostava que todos nós, na família e entre amigos, nos lembrássemos dela. 


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terça-feira, janeiro 23, 2024

AD em Convenção a ver se Chega
-- A palavra ao meu marido --

 

Não segui com demasiada atenção a Convenção da AD mas constatei que foram buscar ao baú um conjunto de personagens mais ou menos gastas de anteriores "aventuras" do PAF no Governo. Lá esteve o sempre presente Paulo Portas que aproveita o espaço semanal na TVI  para se autopromover e elogiar a AD, a Teresa Morais, o Aguiar Branco, o Nuno Melo, .... . Lançaram cartas a cheirar a bafio de tanto tempo que estiveram guardadas no armário. Então em oito anos não conseguiram arranjar ninguém menos gasto e mais jovem que se tenha conseguido impor? Diz bem do acerto das políticas e das  propostas da direita.

Noticiaram um almoço de notáveis do PSD no qual, "pasme-se", esteve o Carlos Alexandre. Então o Juiz almoçou com uma série de malta que está ser investigada pelo MP?  O Montenegro por causa da "casinha", o Passos Coelho por causa da campanha eleitoral, o Rui Rio não sei bem porquê (e se lá estiveram o Presidente e o Vice-Presidente da Câmara de Cascais também contam para esta lista). Então já nem as aparências é preciso salvar?

Ontem no programa do Ricardo Araújo Pereira ouvi as mentiras do Ventura e as confrangedoras declarações do Maló de Abreu, que de fato são trágicas porque se trata de um anterior vice Presidente do PSD  e de um deputado. 

O Ventura fala de 20 mil milhões de corrrupção e refere, até na mesma declaração, os valores de  20, 80 ou 90 mil milhões para a economia paralela. As proposta e os números do Ventura não têm ponta por onde se pegue,  ou são mentiras ou são impossíveis. Mas há um ponto em que sugiro que os potenciais eleitores do Chega meditem. Se bem os conheço, os potenciais eleitores do Chega são maltinha que foge aos impostos sempre que pode e utilizam todas as artimanhas para não os pagar. Senhores empresários, senhores canalizadores, senhores carpinteiros, senhores jardineiros, senhores eletricistas, senhores comerciantes, senhores que exercem profissões liberais... como acreditam que o Ventura não mente, não se esqueçam que, para recuperar  a enorme maquia que, segundo ele,  resulta dos impostos não cobrados, ele vai querer que passem fatura sempre que prestam algum serviço ou vendem algum bem. Se o Chega mandar alguma coisa e cumprir o que diz estão mais do que lixados! Eu por mim acharia bem.

segunda-feira, janeiro 22, 2024

Em dia de sol e família
acabo na companhia da Sharon Stone e de Rothko

 

A família tenta que eu não fique tão exclusivamente focada no problema que nos toca a todos. Não há quem não tente pôr-me racionalidade na cabeça. Compreendo-os mas há coisas que não resultam apenas da nossa vontade. O meu marido, para além disso, quase me empurra à força para a psicóloga. Mas eu, nesta fase, não tenho disponibilidade de qualquer espécie pelo que não vou já agendar nada; mas acredito que, mais tarde, talvez agende umas sessões.

Mas não estou passada de todo pelo que, pelos meus próprios meios, estou a tentar continuar a viver com a normalidade possível. 

[A minha filha disse que quando, no final do ano (ou no início deste?) fiz o balanço de 2023 só falei das coisas negativas, esquecendo-me de todos os bons momentos, do muito que escrevi, de todas as muitas vezes em que estivemos juntos, etc. Disse-me também que nem pareço eu pois eu, tal como era, não reagiria como estou a reagir. E o meu filho, no outro dia, disse-me que não posso esquecer-me que tenho filhos e netos. E disse-me que parece que envelheci trinta anos. E eu, ouvindo-os, reconheço que têm razão em tudo o que dizem.]

Então, fomos todos almoçar fora, passeámos à beira rio, os meninos estiveram e brincaram juntos e eu senti-me feliz. Claro que há sempre aquela sombra, aquela preocupação, aquela angústia que me aperta as entranhas. Mas vê-los contentes, conversadores, estando com eles e deixando-me contagiar pela alegria buliçosa das crianças, sinto-me melhor e, de vez em quando, consigo mesmo abstrair-me do que se passa.

É que, por muito que nos custe assistir, de perto, diria até que por dentro, a uma situação como aquela que atravessamos, a vida continua. 

E os meus netos são bem a prova viva disso. E são também, só por si, um motivo de felicidade absoluta, tal como o são os meus filhos.

Portanto, apesar dos pesares, este domingo foi um dia feliz, luminoso.

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E agora, para que não venham outra vez dizer que parece que não sou capaz de falar de outra coisa, deixem que partilhe convosco dois vídeos muito interessantes. Pode até parecer heresia juntar a Sharon Stone e o Rothko mas eu sou herege. Nada a fazer.

[Os textos abaixo são traduções google dos textos que acompanham os vídeos]

Sharon Stone, artista

Quando era estudante universitária, Sharon Stone viveu a vida de uma artista faminta, vendendo as suas pinturas por US$ 25 cada. Hoje, a atriz nomeada para um Oscar voltou ao seu amor pela pintura, com as suas obras a ser vendidas na casa das dezenas de milhares. Já teve duas exposições em galerias nos EUA, com uma terceira prestes a ser inaugurada em Berlim. O correspondente Lee Cowan visita Stone no seu estúdio em Los Angeles e observa-a a criar um novo trabalho.


Mark Rothko -- visita privada à exposição na Fundação Louis Vuitton

As obras abstratas… Sim, mas não só. Mark Rothko defendeu-se afirmando que a sua pintura estava viva. Demonstração aqui na Fondation Vuitton, com esta magistral exposição, a maior do mundo dedicada a ele. 115 obras-primas em formatos absolutamente monumentais que estão disponíveis nos 4 andares da instituição parisiense. Diante desta paleta XXL, é difícil não nos sentirmos absorvidos por essas cores difusas, quase hipnóticas, que exercem sobre nós esse misterioso poder de fascínio. À distância, massas perfeitamente equilibradas, com geometria difusa. De perto, um nevoeiro difuso que nos absorve. Dê um passo para trás. A obra não é mais o que você via no início. Nosso olhar muda, decifra, sente.
Exposição Mark Rothko  --  Fundação Louis Vuitton, Paris  -- Até 2 de abril de 2024
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As fotografias foram feitas no domingo no Parque das Nações

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Desejo-vos uma boa semana a começar já nesta segunda-feira
Saúde. Ânimo. Paz.

domingo, janeiro 21, 2024

Ondas, defesas, tostas, boa companhia, passeio ao arzinho frio, boas notícias e danças na rua

 

Face às circunstâncias da véspera, a noite passada dormi muito mal. Só adormeci de madrugada. Como tinha posto o despertador, acabei por dormir muito pouco. 

Mas a causa era boa e, quando a vontade é muita, o sono e o desgaste emocional passam para secundaríssimo plano. 

Fomos a um lugar onde já não íamos há algum tempo e que é daqueles lugares onde não me importava nada de ter uma casa. Aliás, há uns anos, foi coisa que foi equacionada. Muito bonito. Uma mistura de natureza e de vilarejo bem cuidado, um local simultaneamente de turismo e de tradições.

Um dos nossos intrépidos guarda-redes tinha lá um desafio de futebol e a família foi apoiá-lo. Para mim foi bom pois estou a precisar de me distrair, de espairecer. Gostei muito. Bons ares, boas ondas (metafórica e literalmente falando), boas tostas, e, ainda por cima, umas boas defesas.

Pelo meio, notícias que, de tão boas, soaram a inacreditáveis. 

De volta a Lisboa, fomos lá. Estava de facto melhor, felizmente, mas não como tinham descrito. Afinal tinham-se enganado. Está lá há uma semana e o enfermeiro baralhou-se. Mas, ainda assim, de facto, muito melhor do que de véspera.

É aquela velha máxima, para mim recente: um dia de cada vez. Um dia assim, outro assado, num dia as perspectivas são umas, no dia seguinte isso passou à história.

A minha prima, quando eu lhe disse que a minha mãe estava melhor, corrigiu: foi um dia melhor. A enfermeira depois disse a mesma coisa. É assim. Seja como for vim de lá mais contente. E, assim sendo, provavelmente vou conseguir dormir bem. Altos e baixos em roda livre, aleatoriamente.

Uma vez que o programa não era compatível, o cãobeludo teve que ficar em casa. Por isso, passou o dia sozinho, no jardim. Chegámos de noite e, como sempre, ao ver-nos, manteve-se encolhido, receoso. Fui ao pé dele: 'Tão bonito. Ficou a tomar conta da casa. Portou-se muito bem.' e ele, no chão, a dar ao rabinho, a pôr-se de lado, a abrir a perna, a querer festas na barriga. E eu a fazer-lhe festas: 'Foi muito lindo, sim senhor, a dona está contente.'. Então, vendo que não estava de castigo, levanta-se numa alegria, desata aos saltos, a correr, numa alegria desmedida. A seguir, fomos passear com ele, uma boa caminhada, sob o frio cortante da noite.

E, para o jantar, o resto da pizza familiar trazida ontem, acompanhada por salada. Bem bom.

Entretanto, como sempre faço quando me apetece descansar a mente, estive a ver vídeos e apareceu-me o que agora partilho em que, como sempre, me admiro com a espontaneidade de quem é apanhado, do nada, no meio da rua e se predispõe a fazer o que a Thoraya lhes propõe. Desta vez não é que contem segredos cabeludos ou outras coisas do além: desta vez é que dancem. E a malta dança. Espanto-me com a alegria, o ritmo, a espírito de festa com que a malta reage, apesar de estar a ser apanhada de surpresa

The most beautiful footage of strangers dancing in public


E que venha daí um belo dia deomingo
Saúde. Boa sorte. Paz.

sábado, janeiro 20, 2024

Lucy



Antes que pensem que pirei, digo já eu que talvez sim. Por isso, vou já dando a razão a quem se mostrar apreensivo com os meus últimos posts. 

Contudo, que não se retirem conclusões precipitadas. Não virei gata assanhada nem vovó matando cachorro a grito. Apenas pratiquei em mim mesma uma espécie de lobotomia. Imaginem que se consegue fazer um furinho, rearrumar os neurónios que estão ensarilhados, injectar um cheirinho de oxigénio, de preferência em versão perfumada, quiçá floral, e que, uma vez tapado o buraquinho, a pessoa está mais leve, menos assustada, menos triste. E, nesse estado, consegue fazer posts como os três últimos. É isso.

Mas agora apeteceu-me mostrar que ainda consigo tentar fazer posts menos azougados. E, assim sendo, permitam que aqui traga, uma vez mais, alguém que me deixa sempre comovida, estupefacta, rendida. 

Lucy is completely blind and has a chromosome 16 duplication, which is a rare condition affecting mental health with autism traits and affecting overall communication. Lucy is hypermobile and suffers with CVS. She is in remission from bi-lateral retina-blastoma and is globally developmentally delayed.

However, Lucy has an extraordinary talent and it is by using this natural talent, Lucy is able to communicate. (...)

O vídeo abaixo mostra uma pessoa extraordinária, a todos os títulos extraordinária. Lucy, a menina cega e autista.

Blind girl, Lucy, with neurodiversity stuns crowd with Chopin piano performance!

‘She’s a miracle!’ Viewers break down in tears over ‘beautiful’ Chopin performance by blind girl, 13, at Leed's train station.

Viewers were left in tears after watching a blind 13-year-old girl flawlessly perform Chopin on the piano at a train station in Birmingham.

Budding pianist Lucy took to the keys on an episode of Channel 4's The Piano, a talent show hosted by Claudia Winkleman and judged by pop star Mika and concert pianist Lang Lang. 

The show involves pianists performing at Birmingham New Street and London St Pancras stations in front of crowds while the judges watch in a secret room, before selecting one pianist at the end of each episode to perform on stage.


The Amber Trust - Lucy's story

This film is about teaching a blind child with severe autism and exceptional musical potential.

It features Lucy, who is 10 years old, blind, with autism and severe learning difficulties but exceptional musical potential, with her teacher Daniel, and Adam Ockelford, founder of The Amber Trust.

Lucy’s story is a part of ‘Amber Sound Touch’, The Amber Trust’s online resource for teaching music to blind and partially sighted children and young people, including those with additional disabilities. 

The Amber Trust was founded in 1995 to provide blind and partially sighted children, including those with additional disabilities, the best possible chance to meet their musical needs and aspirations and fulfil their potential. Amber aims to enhance the lives of as many of the 25,000 visually impaired children in the UK as possible through music, and to promote high quality music provision.


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Caso prefiram um outro tipo de música e de performance, queiram descer até onde se usam umas elegantes calças justas

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A moda das calças justas

 

Por mais que eu veja à venda ou em uso calças largas, é moda para cujo peditório já dei. Se é que dei. No outro dia, quando resolvi soltar a franga e me atirei aos saldos, provei umas. Não, decididamente não é a minha praia. Eu sou mais de calças justas. O que me vale é que a moda de verdade já não é a ortodoxia de há uns anos, agora a moda, a verdadeira moda é sobretudo estilo, o estilo a que cada um adere ou adopta como seu. Mas não me admirava nada que, a continuar a moda das calças largas, qualquer dia eu fosse a única a andar com calças justas na cidade.

"Tight Pants" with Matthew McConaughey | The Tonight Show Starring Jimmy Fallon


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[E a minha família que não venha dizer-me que não estou a esforçar-me, mas a esforçar-me mesmo, para não me deixar afogar em preocupação e perturbação....]

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sexta-feira, janeiro 19, 2024

Coisas e loisas

 

O meu marido de vez em quando vinha dizer-me que, na cave, ainda há sacos com coisas que vieram da outra casa e que ficaram para arrumar quando eu tivesse tempo. Era aquele tipo de coisas que, na altura, não sabia bem onde pôr talvez porque eram de utilização dúbia.

E o tempo foi passando e a vontade para abrir os sacos, ver o que lá está dentro, decidir o que fazer, não apareceu.

Primeiro era porque estava a trabalhar, tinha mais que fazer. Depois deixei de trabalhar e ainda tive menos tempo livre.

E o meu marido sempre a picar. Para ele parecia-lhe inconcebível que havendo aquilo por fazer eu não me importasse e fosse deixando estar. 

Então, resolveu ele deitar mãos à obra. Só que descobre coisas que ou não sabe o que são ou não sabe o que lhes fazer nem onde guardar. 

Eu sei o que são mas também não sei o que lhes fazer. 

Por exemplo, termos. Um para líquidos, outro para sólidos. Ou uma caixa tabuleiro em madeira com uma grelha também de madeira que acho que é para cortar o pão, se calhar para as migalhas caírem para o tabuleiro. Ou um rechaud. Coisas assim. Coisas que na altura devem ter tido uma justificação mas que depois caíram em desuso. Por acaso o rechaud até teria dado jeito no outro dia. Puxei pela cabeça para tentar perceber onde estaria até que deduzi que lhe tinha perdido o rumo. Afinal apareceu. 

Poderia guardar na cozinha se os armários não estivessem cheios ou se a despensa não estivesse identicamente repleta. E pior que isso. Nesta cozinha, num dos lados, o armário de cima vai até ao tecto. Mesmo que me ponha em cima daquele banquinho desdobrável do ikea, não chego lá. Ou seja, não faço ideia de que é que o meu marido para lá encafuou. 

Trouxe as coisas para cima e depois deixei de vê-las. Devem ter ido fazer companhia às coisas lá de cima.

Veio também dizer que havia uma coisa que não sabia o que era e que estava toda cheia de bolor. Fui ver. Uma toalha de mesa de renda, grande, rectangular, feita por mim. Não com bolor mas com ferrugem. O tempo que levei a fazer aquela toalha... Rosetas e rosetas de crochet em linha branca. E nunca mais a usei e nunca mais de tal me tinha lembrado. E o espaço que aquilo ocupa. As gavetas já estão cheias. Agora, ainda por cima, tenho que ver como se tiram as manchas de ferrugem. Ainda mais essa.

Quando lá fui ver a toalha vi uns jogos turcos de toalhas de casa de banho, ainda na embalagem. Houve uma altura em que a minha avó materna me levava turcos e mais turcos, coisas para o enxoval. Também não sei onde pôr. Mas custa-me desfazer deles tendo sido presente da minha avó.

Outra coisa que lá estavam eram lençóis bordados, outros com grandes rendas. O trabalho que deram. A minha avó materna e a minha mãe faziam rendas enormes, numa linha finíssima. Depois contratavam uma senhora que fazia bordados e que pregava as rendas. Obras de arte. Nunca usadas. Onde é que eu ia pôr lençóis daqueles na cama? Não dariam jeito nenhum. Nem podem ser usados sem ser passados a ferro. Os que uso são muito maiores do que aqueles, as camas agora são bem maiores, e não precisam de ser passados a ferro. Portanto, onde é que os ponho aquelas peças de arte? 

Tralha, tralha, tralha. Na prática é o que tudo aquilo é.

E já sei que mesmo que queira impingi-los aos meus filhos, não vão nessa. Têm as coisas deles, não querem coisas que nada têm a ver com o seu gosto e com o seu estilo de vida. E também não têm espaço. Compreendo-os. Fazem bem.

É um assunto que me incomoda: a quantidade de coisas que tenho cá em casa. Quando via alguns programas de reabilitação de casas nos Estados Unidos ficava admirada ao ver que as pessoas compram as casas mobiladas e, quando vendem as casas em que viviam, vendem-nas mobiladas. É mais fácil do que andar com a tralha atrás.

Nestas alturas lembro-me do meu amigo que morava num andar em que ele e a mulher tinham comprado o direito e o esquerdo e feito obras para unir. Ficou um mega-mega-apartamento. Segundo ele dizia, carregado de toda a espécie de tralha. Não conheci essa casa, só a casa que tinham no campo. Aí, era uma moradia grande. Ela era o cúmulo da vitalidade, de entusiasmo, e isso abarcava também a sua actividade de decoradora. Andava por antiquários e lojas de velharias e arranjava peças fantásticas. Carradas de coisas fantásticas. Carradas. Em Lisboa devia ser a mesma coisa. E por cima do giga-apartamento deles, de um dos lados, morava a sogra. Quando a sogra morreu, a casa ficou para eles. A senhora tinha um belo apartamento requintadamente mobilado. Ele estava doido com tanta tralha. Dizia que só tinha vontade de comprar um apartamento minúsculo no Chiado e mudar-se para lá, deixando tudo para trás, tudo.

Eu também acho que uma bela coisa poderia ser mudar-me para a casa quase vazia, a casa dos sonhos do meu marido. E esta ficava como casa-museu. Quando os meus netos, bisnetos e trinetos quisessem descobrir raridades do passado, vinham até cá.


Mas, enfim, também não é caso para lágrimas. 

Caso para lágrimas é ver como jovens estudantes, gente supostamente não totalmente burra, adere ao Ventura. Não consigo perceber se é mérito do Ventura, que é capaz de ser perigosamente inteligente, ou se é demérito da malta que se deixou enredar nas conversas muito elaboradas do aparelhismo partidário e se mostra demasiado instalada, afastando a malta que é jovem e rebelde, ou se é uma idiossincrasia desta juventude que parece alienada e não aprendeu a dar valor à democracia e à liberdade. Uma tristeza e uma preocupação.

Mas é o que é. Face a isso, saibamos agir com inteligência. E bola para a frente.


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Um dia bom

Saúde. Boa sorte. Paz.