Em minha opinião, é das criadoras mais inspiradas e talentosas. Não sei se o seu trabalho encaixa na categoria 'moda'. Diria que não exactamente. Design, certamente. Escultura, talvez. Escultura tecnológica também. A luz e o movimento feitos vestuário. Mas não um vestuário que veste, antes um que despe, que sugere, que transporta.
Iris van Herpen é holandesa e fez agora 38 anos. O que ela faz é indescritível, é único. Peças de uma elegância e sofisticação que vão para além do que é normal, terreno.
Iris mantém-se em contacto com o CERN (Conseil Européen pour la Recherche Nucléaire) e com o MIT (Massachusetts Institute of Technology).
Algumas das suas criações estão expostas em museus: no Metropolitan Museum of Art, no Victoria & Albert Museum, no Cooper-Hewitt Museum em Nova Iorque e no Palais de Tokyo em Paris.
Se um dia me sair o euromilhões, gostaria de visitá-la para lhe pedir que me fizesse um vestido assim, belíssimo, feito de ar, de sonho, de melodias, de poesia, de doçura e ousadia, de subentendidos e subtilezas, de provocação -- de sedução.
E pediria também um vestido para cada menina da minha família. Depois faríamos uma festa com diseurs de poesia, com pianistas, violoncelistas.
A fluidez das suas últimas criações, as que se podem ver neste vídeo que é muito recente, de 13 de Julho, supostamente inspira-se nas Metamorfoses de Ovídio. Pode ser. Meta Morfismo.
A transformação do pensamento em plumas, em filamentos, em tules, em organdis, em plissados, em gentis corpetes, em esvoaçantes saias. Impressos em 3D. O futuro a dar corpo ao que cobre o corpo que se transforma em múltiplas e indizíveis formas. A beleza intangível.
Dia feriado e, só por isso, bom. Os meus dias já não são exactamente o que eram. Agora com qualquer coisa já acho que está bem assim. De manhã fomos ao supermercado. Dantes odiava. Agora gosto. Para além das utilidades, sucumbi às flores. Três. Duas cristas-de-galo, uma em fúcsia intenso e outra em amarelo, e uma begónia. Escuso dizer que o meu marido tenta impedir-me, diz que não temos onde pô-las. Nem respondo. Como não temos? Claro que temos. É como para mais um sorriso ou um bombom de chocolate: há sempre lugar. A minha mãe diria: o coração das mulheres é muito grande, há sempre lugar para mais um. Neste caso, uma.
Vim para casa feliz da vida.
De tarde, fomos ao Leroy. O tema era puxadores de porta. Mas trouxe três vasinhos brancos para as flores novas e uns suportes. A ideia de ter vasos suspensos anda a agradar-me muito. Queria um que lá estava que tem uma pega para pendurar mas estava numa prateleira a que não chegávamos. Tirei senha para pedir a um empregado mas nunca mais chegava a minha vez. Tanta gente... Vi lá uma outra flor linda mas sem o vasinho com a pega fiquei sem saber bem onde a poria. O meu marido fica em transe quando vê muita gente e me vê a querer trazer coisas que ele acha inúteis.
Fui também ver de uma coisa da qual andava atrás há algum tempo: uma escarificadora manual. Têm estado esgotadas. Ainda não descobri uma como aquela máquina que aqui me foi recomendada em tempos, de nos montarmos em cima dela, ideal para os meninos fazerem exercício. Esta é das simples,. Quando vi uma fiquei toda contente. Mas a alegria não foi consensual. Por pouco, ele não acabou ali mesmo com o casamento. Que eu não pensasse que ele ia andar com aquilo. Eu disse que eu é que ia andar. Não acredita, diz que não tenho disciplina nem paciência para aquilo, que quero é que ele faça as coisas mas que tire isso da cabeça. Tive que lhe dizer que estava em público, que controlasse o mau feitio. Como não consegui ver o preço, disse que ia levar até à caixa e, se fosse cara, não trazíamos. Trouxemos. Estou desejando de ter tempo e de estar melhor do joelho (já marquei consulta) para me ir pôr a escarificar a relva. Não sei se o conceito se aplica à relva ou à terra mas, seja a escarificar a planta ou o leito em que se deita, tanto faz. Hei-de escarificar tudo. Só o verbo já é interessante e, quer-me a mim parecer, há-de prestar-se a boas metáforas. .
Quando chegámos a casa, estive a transplantar as florzinhas novas para os vasos. O meu marido no outro dia trouxe uma ponta para a mangueira que tem várias posições. Gosto muito de usar a posição de chuveiro para regar os vasinhos que estão pendurados no gradeamento que separa o terraço da cozinha do jardim. A água escorre de uns para outros. Está tudo viçoso e quando rego ao pôr-do-sol, em contraluz, fica tudo muito bonito.
As taças de suculentas no pequeno terraço junto à outra porta estão a ficar muito bonitas. Estão ao pé daquela maravilhosa Brugmansia suaveolens que afinal tem tanto de tóxico quanto de bonita.
Quem diria que uma planta com aquela beleza pode ser tão perigosa? E a magana que, pela tarde, se perfuma como uma tentadora allumeuse...? Um perfume... Só visto (e cheirado). É o perigo das sedutoras: mais vale que os incautos se mantenham longe. Caso contrário, os que se se afoitam demais logo caem nos seus encantos e ficam fatalmente agarrados.
As nêsperas também estão uma tentação: carnudas de boas. Como-as imoderadamente e, pior, sem sentimento de culpa. É o que dá não ter ligado muito à catequese. Peco sem querer saber se estar a pecar, ignorando a culpa.
Tenho ainda a dizer que ontem li um artigo que me deixou alegre e vitoriosa. Fiz até questão de o ler em voz alta ao meu marido. Aquilo pelo qual tanto tenho batalhado afinal ali, em letra de forma, no Guardian: The brilliance of brown lawns: why your grass shouldn’t always be greener. Ainda no outro dia o meu filho dizia que a relva não estava grande coisa. Eu achava que estava óptima. O meu marido cantou de galo, sentindo apoio na sua luta. Em algumas zonas a relva estava maior e eu gostava de a ver assim. Não tem que estar rapada. E se houver uma ou outra zona em que está mais seca, acho que é uma questão de escarificar e ir regando. Não gosto de ver o jardim como se fosse uma coisinha muito bem comportada. O meu marido e o meu filho acham que relva, por definição, é relva aparada e regular. Neste particular não nos entendemos, portanto.
Pois bem. Relvas pipis, aqui sentenciado e sacramentado pelo Guardian, são relvas que anulam a biodiversidade. Deixá-la crescer um pouco, deixar que algumas florzinhas se aventurem, tudo isso me parece saudável e bonito -- e é. Atrai insectos, atrai pássaros, estimula a reprodução selvagem (e afins). Ou seja, aquilo pelo qual tenho sido tão contestada, afinal, não apenas não é ideia assim tão disparatada como é o melhor para a natureza. Pimbas.
Hoje, quando íamos a sair para o supermercado, ele apontou para o chão e disse: olha um malmequer. Fiquei contente. A reacção dele já foi resultado da leitura de ontem. Senão teria dito: é no que as tuas teorias dão, até já flores nascem no meio da relva, se não se trata rapidamente, não tarda isto está uma m...
Debrucei-me. Era mesmo. Uma florzinha linda, pequenina e atrevida. Talvez uma mini-margarida. Não a arrancámos, como é óbvio. O que leio no artigo é que há florzinhas que se podem aparar como a relva, que não morrem. O meu marido não convive bem com esta minha abertura de espírito, tenta restabelecer a ordem. Diz: não lhe podes é chamar relva, é outra coisa.
Esteve cá a anterior dona da casa. É sempre uma lufada de boa disposição. Olha em volta, vê as flores. Ficou espantada com a abundância de rosas. Cachos de rosinhas encarnadas. Mostrei-lhe aquelas que, ainda há pouco, eram grandes, amarelas, cor-de-salmão, brancas e disse: veja, estão outra vez pequeninas, encarnadas. Ela fez um ar desconcertado. Sempre foram assim como estão agora, pequeninas, encarnadas. Nunca tive rosas amarelas... Pois, que é misterioso é. Por isso ainda mais gosto delas, mutantes, inexplicáveis.
Apanhei um pequeno cacho e coloquei na jarrinha pequenina que coloquei no parapeito da janela que está junto à mesa onde tomamos as refeições.
E andei a fotografá-las. Little red roses. Tão, tão bonitas, tão, tão difíceis de justificar.
Não sei se, aí onde estão, sentem a vibração da sua cor e a beleza do seu perfume. Gostava que sim.
Andei à procura de uma canção com rosas vermelhas, sem desgostos ou frescuras. Não encontrei. Optei pela Lavie en rose na voz da Melody Gardot, e optei apenas porque sim. Depois, para compensar, apeteceu-me ter rosas em palavras ditas. Mas também não tive paciência para grandes pesquisas. Partilho convosco: A red red rose por Robert Burns (lido por Tom O'Bedlam) e o Soneto 130 de Shakespeare (lido por Alan Rickman)
Não tem havido poesia nos meus últimos dias. Não que tenham sido desagradáveis. Muito pelo contrário. As reuniões acabam com o ecrã repleto de rostos sorridentes. Alguns, em separado, em reuniões distintas, formulam votos dizendo 'que daqui por um ano estejamos aqui a festejar o sucesso que tivemos'. Outros dizem: 'ninguém esperava tamanha revolução' e eu, por dentro, sinto aquele arrepio que tão bem conheço, o mesmo que sentia quando, em pânico numa montanha russa, pensava 'mas porque é que me meti nisto?', sabendo que já ser tarde demais para voltar atrás. Um disse: ''uma revolução preparada cientificamente, as pessoas não esperavam uma coisa assim, estão surpreendidas e agradadas'. E eu sinto, de novo, aquele arrepio. Um mortal encarpado -- e temos que cair de pé, continuar a andar, a saltar, a ir em frente. Mas como, se não houve treino?
Olho para trás e vejo que, sem antes saberem ao que iam, os passos que davam agora lhes parecem estranhamente coerentes, como se tudo milimetricamente planeado. Um disse: 'tiro-lhe o chapéu, na altura não sabíamos porque nos tinha escolhido, agora está tudo claro, agora tudo faz sentido' e eu e aquele arrepio. É verdade. Agora tudo faz sentido.
Por isso não penso, não planeio, nunca penso, nunca planeio. As coisas, sem eu saber como, parece que batem certo. A posteriori parece que estava a dar passos de um plano bem pensado. Mas sei que, ao dá-los e ao levar outros comigo, eu não sabia para onde estava a conduzi-los.
E, ao contrário dos que me dão os parabéns, eu sei que só saberei se esta aventura bateu certo daqui por um ano. E o que penso é que, se me perguntarem o que vou fazer durante este ano, não saberei dizer. Mas confio que não devo pensar, deve é deixar-me ir. É um bocado assustador, sobretudo para mim.
O meu marido que assiste a esta minha caminhada, a trabalhar de manhã à noite, diz que não precisava de ser assim, tão intenso, ninguém pede, ninguém espera, que eu é que sou assim, excessiva. Mas só ele sabe que é excessivo porque os outros -- como cada um só vê uma parte, a parte em que cada um intervém -- creio que nem avaliam as horas que levo a construir com eles as peças deste puzzle que é construído sem guião e que, no fim, parece perfeito.
É um processo. Convencer uns, conduzir outros, refrear outros, entusiasmar outros. No fim dizem: 'e quando podemos começar?'. Sorriem. Estão entusiasmados, por vontade deles começavam de imediato nesta nova vida.
Um disse: 'Só tem que me dizer o que quer que eu faça' e eu, 'não faço ideia, não me pergunte, isso tem que você a descobrir' e ele, apanhado de surpresa, a rir: 'Ai é...?! Então, está bem'.
Ouço-me e penso: 'É impossível que não percebam que não sou boa da cabeça'. Mas, se o pensam, não o demonstram. As ideias aparecem-me não sei como e eu só desejo é que não me faltem e que vão batendo certo. Enquanto os outros vêem estudo, preparação aturada, análise exaustiva de hipóteses, eu tenho sempre aquela sensação que é tudo aleatório, espontâneo, ao calhas. E que, assim sendo, pode esgotar-se ou pode começar tudo a sair tudo trocado. É a mesma sensação de, quando era chamada ao quadro e testada com matérias difíceis e as respostas me saíam automática e imediatamente, todas certas, e toda a gente me achava o máximo, eu me sentir incrédula com o que tinha acontecido pois não fazia ideia de como tinha respondido aquilo e acertado sempre. Achava que poderia acontecer que um dia ali chegasse e só dissesse disparates, coisas igualmente saídas da boca para fora.
Por isso, têm sido dias de alguma adrenalina e, por vezes, quase exaustão. Não de poesia. Estou na mesinha encostada à janela, de frente para as flores, mas nem tenho tempo de olhar para elas.
Ao fim do dia, noite já, fomos comprar sacos-cama. Agora já podem dormir cá, à vontade, sem que isso implique vários pares de lençóis para lavar, secar, dobrar, arrumar. Não é solução que me fosse simpática. O meu filho dizia sempre: nós levamos sacos-cama. Nunca achei isso uma boa ideia. Achava que, a dormirem em nossa casa, deveria ser em camas a preceito, lençóis lavados, edredons e mantinhas quentinhas. Mas, de facto, não é prático, por uma noite, haver tanto lençol para lavar. Rendi-me. A seguir, para me dar tréguas, fomos comprar um frango assado, na grelha de carvão. E, claro está, nada disto tem pingo de poesia. Prosa, prosa, prosa.
Agora, já bem tarde, circulei pelos jornais. Nada despertou o meu interesse. Penso que há já alguns dias que não pego num livro. Hoje também não apanhei nenhuma laranja da árvore para comer logo ali. O que valeu a pena foi o episódio do Master Chef Australia, Que arte, que técnica, que perícia. E isso, sim, talvez tenha alguma poesia.
E estou a ser injusta: alguns posts que li também têm alguma poesia. Anjos, abrigo, efeitos colaterais. São pequenos apontamentos que trazem um pouco de luz a quem lhes passa por perto e isso, para mim, é oxigénio, é espaço largo, é doce toada.
Dia muito cansativo. Muito bom, encerrando mil promessas, repleto de surpresas (algumas menos boas e que introduzem compassos de espera e despesas não esperadas; mas outras boas), cheio de momentos daqueles em que a gente vê tanto por fazer que olha em volta sem saber por onde começar. Tantas coisas a acontecerem na minha vida, tantas que se atropelam. Sou eu, bem sei, sou eu que as procuro. No carro, a minha mãe dizia: descansa, para quê tudo ao mesmo tempo? Depois, como eu estivesse cansada demais para ripostar, acrescentou: mas sempre foste assim, incapaz de esperar, incapaz de parar. Penso que apenas devo ter suspirado. Ela acrescentou: sais ao teu pai, também sempre assim. É. Uma urgência. Penso: o meu filho é igual. A minha filha é diferente, nestas coisas talvez saia mais ao pai, parece que prefere dar tempo ao tempo.
Com tanta azáfama, parte fora de casa, chegámos às dez. Ainda fomos tomar banho. Havia um resto de comida e foi o que comemos. Juntei uma salada. Depois sentei-me aqui e voltei a entregar-me ao que me tem ocupado.
O vento de mudança que sopra sobre mim não me dá descanso. Penso, equaciono, ajusto, projecto, avalio, penso, faço contas, faço desenhos. Agora quase são duas da manhã e, neste programa de festas em que me vou inserindo, tenho que me levantar daqui a nada. O dia promete. Continuo a trabalhar e tento encaixar tudo sem prejuízo de nada, um permanente exercício de equilíbrio ao qual vou acrescentando mais e mais variáveis. De facto, sinto que um dia terei que abrandar. Penso que já faltou mais para ter uns dias de férias e essa perspectiva faz com que sinta que é só um pouco mais de esforço.
Mas estou contente. O vendaval que, desde há alguns tempos, sobra sobre mim está a levar-me para onde quero ser levada e, a cada passo que dou, eu vejo-me a caminhar na direcção certa. E isso dá-me um sentimento bom de justiça e, ao mesmo tempo, agradecimento pela sorte que tenho tido.
E vejo-me também a caminhar dentro de um dos meus sonhos: é um sonho recorrente, bom, do qual não gosto de acordar. E hoje, de tarde, vi-me dentro dele.
No mundo, não sei o que aconteceu durante o dia. Aliás, sei que houve uma explosão em Beirute. Às vezes as cidades correm perigos que desconhecem. Às vezes as circunstâncias levam a que situações de alto risco estejam na mão de quem não sabe avaliar o risco que ali está. Deveria haver um departamento estatal que monitorizasse as medidas de segurança das instalações de alto risco. Isto em todo o mundo. Mesmo cá. Mas, tirando isso do acidente, estou a zero.
Tenho comentários e, sobretudo, mails a que deveria responder. Mas não consigo. O dia esticou-se para além da conta, invadiu a noite.
Partilho apenas um vídeo porque, de entre os recomendados pelo meu amigo algoritmo, essa bicha maluca que gosta de me fazer agrados, este despertou a minha atenção.
Durante anos, antes de o conhecer, imaginava que o Red Light District seria um antro de perdição, um lugar com mistérios e malícias, transpirando glamour, com aquela pitada de secretismo e de interdito que supostamente deve apimentar os encontros sexuais.
Até que um dia fui numa viagem de negócios a Amesterdão com um colega que tinha trabalhado na cidade e que se propôs fazer-me uma visita guiada pelos locais mais conhecidos. Sendo ele um conceituado executivo, dir-se-ia que me levaria a ver locais ligados ao conhecimento ou às artes. Mas não. Perguntou se eu gostava de conhecer os lugares da droga e da prostituição. Não me fiz rogada, julgando eu que ia entrar em meandros onde só os entendidos se aventurariam, coisa com o seu quê de bas fond,, de clandestino, ou, pelo menos, coisa reservada apenas a connaisseurs.
Decepção: na zona da erva, malta encostava-se às paredes, outros estendiam-se pelo chão, outros entravam e saíam das lojas mas tudo sem qualquer elevação. Apenas gente janada, alguns num estado de dar dó.
Chegados ao bairro vermelho, fiquei ainda mais decepcionada. Coisa mais pirosa, pensão de meia tigela à vista de todos, gentinha a ver por ver, turismo pacóvio.
Regresssei ao hotel de luxo a achar que aquilo não abonava muito a favor dos holandeses.
Mais recentemente voltei lá. Na altura, falei nisso. Pensei: será que na outra vez vi outra coisa? ou estava mal disposta e fiz uma má avaliação do que vi? ou será que, se era mesmo mau, agora está mais decente? Mas não. A mesma colecção de tesourinhos deprimentes. Pequenos compartimentos com uma caminha fajuta, tenho ideia que um bidé a um canto, uma toalhinha. As mulheres na montra. Depois entra o homem, fecham a cortina. Um cubículo triste. As ruas cheias de gente. Até eu, ali no meio, querendo compreender o que não é para compreender. Que género de homem fura a barafunda para entrar numa pequena loja, cumprir o seu propósito, provavelmente lavar-se e sair dali? É apenas uma experiência, coisa ocasional? Irá gabar-se de ter ido às putas no Red Light District? Haverá alguém no seu perfeito juízo que ache que é feito de que possa orgulhar-se? Ou será simplesmente um solitário que, não tendo melhor alternativa, vai ali desovar?
Mas, nisto das coisas estranhas da vida, o melhor mesmo é a gente não se arriscar a dar palpites nem tentar arranjar motivos para situações de que não temos qualquer inside conhecimento. O que para nós é uma coisa triste, desolada, sem futuro, pode ser apenas uma bóia de salvação a que alguém se agarre para se aguentar na sua solidão.
Mas isto para dizer que foi, pois, sem surpresa que li que, ao reabrir o bairro das meninas em Amesterdão, aquilo se apinhou de tal maneira que as autoridades tiveram que recuar na libertação dos impulsos, mandar fechar ruas. Uma coisa que a minha razão não percebe bem pois aquilo é, a meus olhos, uma coisa decadente, triste, o género de coisas que, por não ter qualquer vestígio de requinte, mistério ou jogo de sedução, deveria era afastar as pessoas que não deveriam querer testemunhar a tristeza alheia. Mas, tal como eu já fui lá ver por duas vezes, ambas por curiosidade absurda, se calhar é isso que todos os papalvos lá vão fazer. Esses e os outros, os que frequentam e mantêm vivo o negócio pois sabemos lá nós que necessidades se escondem por detrás da coragem que, vendo bem as coisas, também é precisa para transpor aquelas portas.
E, depois, quem diz que, entre uma pinocada a correr e uma lavagem rápida antes de sair porta fora para dar lugar ao próximo, não nasce um dia um grande amor? Não produziu E E Cummings belas cartas de amor a pensar numa prostituta que conheceu em Paris? Já mais do que uma vez aqui tive poemas seus, tanto que gosto deles, pessoa apaixonada, ele. E, com a mesma paixão com que os escreveu, pelos vistos assim escreveu antes palavras de amor e saudade a Marie Louise Lallemand.
Transcrevo do Guardian, e, portanto, não em francês mas em inglês:
In one letter, written from the frontline in France, Cummings told Lallemand: “Darling, Marie Louise, you who are more to me than the scarlet poppies which are mown, more than the yellowing evenings which we see die, more than the silence full of stars, the completely white silence of night, only awaiting dawn, – take the kiss which I give you, that kiss, without value, because it comes from a soul which loves you.”
Mais preocupante, mas muito, muito mais, incomensuravelmente mais do que a provocada pelo maralhal amontoado à porta das montras com as prostitutas de Amesterdão, é o que se passa nos Estados Unidos, com uma besta quadrada à sua frente, um psicopata, um inútil e um destituído como são inúteis e destituídos todos os narcisistas, pior aqui por se tratar do supostamente mais importante país do mundo a ser governado por tal cavalgadura. Sempre que o vejo pasmo: como é possível que ainda ninguém tenha arranjado maneira de o mandar de volta para casa dele? Tudo o que diz e faz revela o miolo de batada moída que tem dentro daquela cabeça. Mas não é só as cavaladas que diz: é a forma como diz, é o tom de voz, é tudo. Uma desgraça que não se percebe como alguém consegue aguentar. A mulher, apesar de ser aquela boneca empalhada, nem suporta que ele lhe toque, mal se aproxima dele, creio que nem vivem juntos, e os colaboradores e colaboratrizes rodam a grande velocidade, incapazes de suportar tanto egocentrismo, tanta estupidez e parvoíce (pode parecer que estupidez e parvoíce são sinónimos mas não, há nuances que fazem toda a diferença). Cada entrevista que a alimária dá revela o vazio alucinado que o preenche e, cada uma, só por si, deveria gerar um escândalo nacional e internacional. Mas não. Aceita-se que um atrasado mental que acha que acertar num teste que um elefante é um elefante é prova de sanidade mental continue a governar os Estados Unidos. Algo vai mal no mundo com coisas destas a acontecerem. A existência do Trump como presidente dos States legitima que, um pouco por todo o lado, muitos outros que tais empestem os países, as cidades, as ruas, as casas deste planeta. Uma triste lástima.
Não sei se vou habituar-me a andar regularmente de máscara. Até ver, só a tenho posto quando estritamente necessário e, mal posso, retiro-a. E, na operação de pôr e tirar a máscara, deixo cair o telemóvel ao chão, pouso o saco que trago na mão, faço tudo o que não devo, supostamente contamino tudo o que deveria trazer preservado. No durante, sinto calor, apetece-me desopilar, deitá-la fora. Sempre fui encalorada, de andar esgargalada, nunca consegui usar gola alta, atravesso o inverno com amplo decote. O meu marido diz que, se toda a gente consegue, eu também vou conseguir. Mas custa-me, atenta contra a minha natureza.
Abro as revistas e vejo que há máscaras fashion, a condizer com a roupa ou, pelo menos, adequadas aos mais diversos dress codes. Olho e tudo me parece longínquo. Nem as máscaras nem a necessidade de as usar ou de me preocupar com a aparência.
O meu filho dizia-me há pouco que o trabalho deve ter alguma componente presencial para não se perder o sentido de pertença ou de amizade pelos colegas ou aquele vínculo que se alimenta de pequenas coisas do ambiente de trabalho. Se calhar é isso que já começa a faltar-me. Estou nos assuntos, envolvida até ao pescoço mas, dentro de mim, o caminho no sentido do desligamento começa a querer instalar-se.
Por exemplo, um tema que era meu, génese minha e tudo meu até que tivesse forma para andar por si, tema pelo qual lutei e dei o corpo às balas, hoje dei a outro para apresentar. Ele admirado: mas eu? o assunto é seu... E vi que estava intrigado, a tentar perceber que coisa se escondia sob a capa daquela minha estranha decisão. Não dei grandes explicações, desviei-me do assunto. Mas dentro de mim pensei que ele precisa de se afirmar, de ter visibilidade, de percorrer um percurso, e que a mim só me apetece é ver-me livre de trabalhos.
Outras pessoas hoje perguntavam-me como vai ser, quando vai ser. E eu com vontade de dizer que não estou nem aí. Mas lá fui respondendo.
O dia foi preenchido para além da conta. Não estou a saber sacudir o suficiente e se calhar a culpa é minha. Não sei sacudir o trabalho de mim. Pelo contrário, parece que atraio.
Pelo meio choveu torrencialmente, uma coisa absurda. Não sei que coisa é esta. Tanta a força que fazia tanto barulho que quase parecia o barulho do granizo. E trovejou absurdamente. Não consegui ir à rua e isso cansa-me ainda mais. cansa-me estar fechada em casa.
Cansam-me os fulanos que lêem o telejornal e que gostam de puxar ao sentimento. Fugimos do Rodrigo Guedes de Carvalho mas fomos dar com outro que tal, o José Alberto Carvalho. As notícias ditas por eles parecem-me daquelas sopas doces, meladas, horríveis. Uma seca. Não se consegue ver televisão.
A minha mãe foi sair e disse-me que, ao princípio, lhe parecia que ia quase trôpega, que parecia que já nem sabia bem andar na rua.
Não sei se irá acontecer-me o mesmo quando regressar à minha vida anterior. Parece que já me esqueci de tudo. Nem conduzir tenho conduzido. Será que ainda sei? E tenho andado a pensar em qual seria o código do meu cartão de crédito que é também de débito. Não me lembro. Se tiver que comprar alguma coisa, não sei como pagarei.
Mas há coisas de que não me esqueci. De que nunca me esquecerei. Memórias das quais me alimento, memórias boas, só minhas. Fluem num contínuo, como água ou incógnitas palavras escorrendo por entre pedrinhas da serra, como o abençoado canto dos pássaros, como sentidas e inocentes declarações de amor. Sonhos, rêveries, folhas soltas, sombras, intangíveis vultos, caligrafias inventadas. Coisas assim, inexplicáveis. Coisas que nada têm a ver com nada e, neste contexto, que muito menos têm nada a ver com o que acima escrevi.
Vou mas é ouvir o homem cuja voz já está impregnada de poesia. E tudo o resto é conversa. Não é?
(Estou a dormir, não sei se já repararam)
____________________________________
Fotografias de Scarlett Casciello ao som de Aurora a interpetrar Exist For Love
Na volta, a chuva desfaz as ondas espaciais e o que aqui chega já vem deslassado, uma rede desmanchada. Mal consigo fazer alguma coisa no blog. Esta lentidão também me deslassa a vontade e o pensamento. Chove que deus a dá. Todo o santo dia. Escuro chuvoso, frio. A net, que é móvel, está empanada, sem mexer.
Há bocado, depois de um dia de trabalho e estando a janta despachada, sentei-me no sofá a ver se via as notícias, o meu marido ao meu lado. Ao fim de cinco minutos estava perdida de sono. Encostei a cabeça e foi tiro e queda. Passados uns minutos, ouvi os meninos e a minha filha a rirem. Admirados, como é que consigo dormir assim, sentada, a cabeça para trás. Elucido: quando me sinto cansada, basta encostar a cabeça, adormeço instantaneamente. Dormi uns dez ou quinze minutos e foi pena que fossem tão poucos. Mas soube-me bem.
Agora aqui, passa da meia noite e nada aqui mexe. O blogger está mudado e, até para escrever um post, me vejo à nora sem descobrir onde foi parar o lugar disso. Tenho que arranjar um turn around. Temo que um dia também desapareça esse subterfúgio e que fique sem ter como continuar a escrever. Coisas esquisitas que acontecem. Em cima disso, volta e meia fica tudo branco, a bolinha pensadora a andar è roda. Impaciento-me com isto tudo.
Chove com força. Sei que houve para aí cena armada em volta do Centeno mas nada disso me assiste. Apanhei as parangonas mas com desinteresse. Cá em casa ninguém liga a nada disso. Frioleiras, vizinhices, futileiras, cagadinhas em três actos. Não sei de que se trata mas entre o Centeno, com o seu ar de bom algarvio, com mil provas mais do que dadas, e a Mortágua com ar de dominatrix, a Drago, histérica a cansativa, ou outras que tais dou o meu voto ao Centeno. E isto sem saber de razões. A competência a e honorabilidade de um homem (ou de uma mulher) está muito acima do mediatismo, do imediatismo, do populismo, das cegadas que animam os media e pagam avenças a comentadeiros a metro mas pouco esclarecem. Nisto do BES ou Novo Banco quem fez porcaria, e porcaria da grossa, quem agiu levianamente (e, cá para mim, até ilegítima e a ver se não criminosaente) foi aquela maltosa dos PàFs com o beneplácito dessa alforreca que dá pelo nome de Carlos Costa. Tirando isso pouco mais tenho a dizer. Que Rios, Louçãs e demais acólitos se catem.
Tenho ainda a dizer outra coisa: não há pingo de pachorra para o ar e tom do rodrigo Guedes de Carvalho. Deu em pastor evangélico do reino de são covid. Sermões por tudo e por nada. Mal se percebe que vai começar com o sermão, fugimos a sete pés. Não sei o que lhe deu mas é insuportável. Beato, sentimentalista, padrecas, catequista, mestre escola do tempo da outra senhora. Nem sei. Não consigo aturar mais do que um minuto.
De resto, tenho a dizer que, a nível profissional, se prepara o regresso mas tudo na base do devagar-devagarinho, da prudência. Não consigo imaginar bem como vai ser a nossa vida. Nem quero pensar bem nisso.
Nesta vida protegida, consolo-me a ver como os meninos andam felizes, rosadinhos, bem dispostos. Vejo-os nas aulas, vejo-os brincalhões, queridos. E recebo fotografias de desenhos do bebé e encho-me de saudades dos que não estão aqui comigo. Essa é que é essa.
O meu marido foi ao supermercado à hora de almoço. Não trouxe metade do que pedi e, do que trouxe, trouxe em dose dupla. Pedi uma pá de porco, por exemplo. Trouxe duas, ambas gigantes. Para quê? Para andarmos a comer coisas repetidas? Não faz sentido. Fiz logo uma para o jantar. Assei no forno com batatas normais e doces, também assadinhas. Ficou um tabuleirozão quase a deitar por fora. Quando apareceu na mesa, cheiroso e dourado, despertou a gula. Mas acharam um exagero de muito. Pensei o de sempre, na minha inocência: a ver se dá para o almocinho de amanhã. Mas comeram de dar gosto. Sobrou mas não que dê para todos. Só depois me lembrei que eu devia era ter jantado chá. Por isso, amanhã ao almoço não digo que chá mas talvez kefir com fruta fresca e frutos secos. Se bem que os frutos secos também me insuflem. Se, ao menos, eu pudesse fazer big caminhadas sempre ia derretendo. Mas, com esta chuva, nem isso. Como é possível que este ano chova tanto...? A nossa terra vai ficar limpinha, despoluída, lavadinha. Está coberta de um musgo dourado, macio e bonito. As árvores e os muros têm líquenes. Os pássaros cantam de dar gosto. Só não é bom o frio e que fique tudo tão escuro. Faz-me muita falta o sol, a luz, o calor.
Tenho muito trabalho. O meu marido e a minha filha dizem que não faz sentido eu trabalhar tanto. Talvez. O meu filho também acha que não deveríamos trabalhar tanto, há tanto tempo. E, por vezes, sinto-me exausta, sem tempo para mim. Repito-me, não é? Passo a vida a dizer o mesmo. Mas a minha vida agora é isto e pouco mais tenho para dizer. Acho que mal me apanhe mais à solta e com bom tempo vou ter muita dificuldade em não mandar o corona à fava.
Isto está tudo desconexo. Uma mantinha de retalhos. Mas não dá para mais. Duas e tal da manhã. A net mais do que a pedal, quase não consigo mexer nisto. O editor do blogger todo desaparafusado. Uma lástima.
Vou mas é preparar-me para ter um sonho bom, a dream within a dream do Edgar Allan Poe. Rodeei-me do azul do Klein e, por causa das coisas, do Room with a view do menino Yiruma. Bem acompanhada estive.
Não me posso queixar. Pelo contrário. Mas a gente às vezes queixa-se não porque tenha ponderosas razões de queixa mas porque faz parte da nossa natureza de gente. A gente queixa-se. Às vezes por razões grandes, outras por razões pequenas, outras por razões permanentes, outras por razões ocasionais.
Outra coisa: não se trabalha apenas porque disso dependa a nossa sobrevivência. Trabalha-se porque trabalhar faz parte da nossa natureza.
Pelo menos da minha faz. Comecei a trabalhar cedo e sempre trabalhei muito: estava a dar aulas em horário completo e, ao mesmo tempo, a fazer uma licenciatura que só não me punha a cabeça em água porque eu relevava os pesadelos que quase se abatiam sobre mim. Daí passei para um lugar onde trabalhava sem horários, sob orientação de um super especialista que vinha dos States para me guiar, e, ao mesmo tempo, andava em transportes, grávida até ao fim da gravidez, uma barriga de impor respeito. Depois o segundo filho, a primeira ainda pequenina, o trabalho a levar-me por todo o país. O meu marido também sobreocupado, muitas vezes fora. Toda a vida, com muito trabalho, a garantir a presença e a atenção junto dos meus filhos, razão primeira de tudo. Faz parte de mim ser assim.
Há quem trabalhe pouco, se arraste, se queixe de tédio. Nunca me passou pela cabeça ser apenas dona de casa ou viver à custa de alguém. Até a mesada dos meus pais eu tinha dificuldade em aceitar. Sou independente por natureza, trabalhadora por natureza.
Não digo que seja virtude. Na volta é mais inteligente trabalhar pouco e viver à conta. Mas, na volta, a inteligência nunca foi o meu forte.
Uma vez, o Mourinho saíu de um clube qualquer com uma indemnização de milhões. Nesse dia eu estava a almoçar com um dos homens mais ricos do país. Mas desse homem, se a gente se distrair, ninguém percebe a dimensão da sua riqueza porque também trabalha que se farta. Havia uma televisão no bar onde se esperava e ficámos ali enquanto não chegavam outros dois. Vi então alguém a perguntar ao José Mourinho onde é que ele ia trabalhar a seguir e ele a dizer que ainda não sabia. Aquilo fez-me impressão. Então, ao almoço, ainda conversando sobre isso, distraída, eu disse: 'Como é que uma pessoa que, de repente, recebe assim uns milhões ainda precisa de trabalhar?' Então, ele, aquele que estava à minha frente, encolheu os ombros e sorriu. Insisti: 'Mas não acha?'. Ele, ainda sorrindo, quase como se confessasse uma fraqueza: 'Sabe, trabalha-se porque sim, porque não se sabe fazer outra coisa, porque é como uma pessoa se realiza, porque se gosta do que se faz, porque não se sabe estar sem trabalhar'. E eu olhei para ele sem saber o que dizer, de repente recordada da sua grande fortuna. Sorri também porque ele estava a falar dele próprio e porque sei bem como ele estava a falar verdade.
Fiz caldeirada de asa de raia para o almoço. Com abundante cebola, tomate bem maduro, batata normal e batata doce, salsa, azeite e um pouco de sal. Sobrou um bocado. Então, para o jantar, retirei o peixe, tirei as espinhas (ou melhor, aquela cartilagem fina que, por acaso até gosto de trincar). Juntei um pouco de água, um fio de azeite e moí tudo bem. No fim juntei o peixe, um pouco de coentros e uma folhinha de hortelã. Tinha cozido ovos. então, em cada tigela de sopa, juntei um ovo picado. Estava uma maravilha. E ainda sobrou um pouco.
Também andei a varrer lã fora. Debaixo do telheiro, debaixo dos bancos, o jardim, a zona das árvores de fruta perto da casa, o caminho desde o portão. Apanhei carros de folhas secas e terra que fui despejar ao fundo, na zona dos pinheiros. Agora tenho as mão doridas e secas.
Este sábado irei fazer uma ou duas máquinas de roupa, fazer limpeza ao estúdio, pôr roupas a arejar. Não sei ainda o que vou fazer para o almoço. Não sei se favas guisadas com entrecosto se frango no forno.
Não posso dizer que trabalhe muito pois sei que há quem trabalhe muito mais, em condições muito mais duras, debaixo de aflições, se calhar sem gostar do que faz, se calhar com medo de, ainda assim, perder o trabalho que tem.
Mas não se pode pensar assim pois há sempre quem esteja pior. Pode é ser-se sincero. E, por isso, falo com sinceridade quando me queixo do que me incomoda ou quando me confesso cansada.
Podia, é certo, deixar de trabalhar. Mas deixarei alguma vez de trabalhar? Faria o quê se deixasse de trabalhar? Varria e lavava o chão sem parar, cavava, podava árvores, cozinhava, escrevia, sei lá.
Lembro-me agora de um outro amigo, alguém com quem gostava muito de conversar e com quem tinha longas e saborosas conversas, e de quem, pelas circunstâncias da vida, acabei por me distanciar um pouco. Uma vez -- tinha ele feito cinquenta anos e, para o festejar, tinha ido jantar a Paris -- disse-me: 'Sempre pensei que só trabalharia até aos cinquenta anos. Agora que aqui cheguei, acho que vou mudar de ideias'. Com quatro filhos em idade escolar, dois a estudarem no estrangeiro, cada um em seu país, outra a mudar de curso pela segunda vez e sempre desorientada e uma outra a passar um ano a levantar a nota para tentar entrar no curso que queria, perguntei: 'Mas com as despesas que tem... E não consegue reformar-se tão cedo. Como faria? Desempregava-se? Vivia de quê' E ele: 'Tenho com o que viver bem até morrer'. Disse-me que não apenas tinha uma verba considerável aplicada como muitas casas e garagens arrendadas. Acrescentou: 'Não preciso de trabalhar para nada, apenas para me manter ocupado. E faço o que gosto.'. Uma vez eu estava a falar de um restaurante muito bom, sempre cheio, disse-me ele: 'Mas sabe que esse restaurante é meu...?'. Não sabia, não fazia ideia. Ele pensava que sim, que já tínhamos sobre isso. Mas não. Era apenas mais um dos seus investimentos. Um dia disse-me que estava todo contente porque tinha satisfeito um capricho. Perguntei: 'Uma mota?'. Riu e disse que não. 'Um barco?'. Não. Acabou por me contar que era um Porsche. No dia seguinte apareceu numa mota, uma mota brutal. Era isso, a mota já ele a tinha. No entanto, trabalhava como um normal assalariado. E ainda trabalha.
O trabalho não é apenas uma fonte de rendimento: é uma forma de se viver, é uma fonte de dignidade, é um motivo de realização.
Pelo menos, assim o penso. Mas isso, claro, cada um sabe de si e cada um que pense pela sua própria cabeça.
Já é dia feriado e ainda bem. Não sei se me aguentaria inteira se tivesse que aguentar mais um dia assim. Aliás, a semana veio em crescendo e esta quinta explodi umas quantas vezes e estive em vias disso outras tantas. Não foi fácil. Cheguei ao fim do dia exausta. Fazem-me muita impressão as situações que não percebo e relativamente às quais, quanto tento que me expliquem, fico na mesma. Por exemplo, envolvi-me tanto num assunto que é crítico, esforcei-me, entreguei-me, expliquei, sensibilizei tanta gente que, quando estava convencida que ia deixá-lo em boas mãos, vejo que não devem ter percebido nada pois o entregam a quem tem zero competências para tal. Custa-me imenso assistir (de perto) a situações incompreensíveis. Apetece-me dar dois pares de coices. Claro que situações estúpidas há em todo o lado e aberrações é o que não falta -- e uma pessoa vai adquirindo defesas para saber lidar com tudo. Mas pior é quando se trata de uma situação deveras crítica que requereria competências à prova de bala. Não um incompetente, não um desprovido. E a culpa não é dele, a culpa nunca é dos destituídos, a culpa é dos que, sabendo que é destituído, ainda assim o escolhem. Não se compreende. Ficou furiosa. Nem é bem furiosa. É desiludida. Descrente. Desinteressada.
Mas, tirando isso, foi todo o santo dia. Parece que, de repente, tudo entrou em roda livre.
Cansada. Dá ideia que, se uma pessoa se se distrai, é atropelada por uma manada desencabrestada.
Acontece que, em cima disso, há cada vez aquelas expressões que tudo o que é mente fraca usa e que a mim me deixam em polvorosa. Faço de conta que não ouço. Quem me veja dirá que não reparo. Mas só eu sei. Uma violência. E já nem sei se alguém, para além de mim, fica com brotoeja na alma. A coisa quando pega de estaca desenvolve-se com viço. Rebenta por todo o lado. Erva daninha. Uma pessoa sente-se sozinha, incompreendida, com vontade de hibernar, de recolher ao convento.
Explico-me. Gente que tem mais do que obrigação de saber falar, gente com formação na área das humanidades ou sei lá o quê, gente que andou nas melhores universidades e com toda a espécie de mestrados, mba's, pós-graduações e o escambau e, quando começa a falar, enfatuadamente diz: 'dizer que este período tem sido desafiante para todos' e, a cada pausa e recomeço, iniciam a frase da mesma enervante maneira, 'dizer que estou agradecido', 'expressar o reconhecimento por todos quantos', 'transmitir que o regresso não vai ser ao normal mas, sim, ao novo normal', 'isto não tem a haver com' 'mas tem a haver com'. E, ouvindo isto, eu sinto a crescer dentro de mim aquela impaciência que me faz ficar irrequieta na cadeira pois sei que tenho que aguentar e calar.
Faz-me ainda outra coisa: ter vontade de ganhar o euromilhões. Dou por mim a pensar: se me saísse o euromilhões, viria trabalhar só para sair em beleza. Deixá-los-ia falar e, quando acabassem, diria: 'não é assim que se fala, ó seus papagaios que nem ao menos sabem escolher o que papaguear. Vou-me embora, já dei demais para este peditório, já aguentei demais, e esta maneira de falar é a gota de água, deixá-los-ei com a vossa oca prosápia'. Claro que ficariam a olhar para mim incrédulos e, quando eu virasse costas, haveriam de ficar sem perceber o que se tinha passado, concluindo: 'mulheres...' Ou, então, diriam: 'Mas quem é que ela pensa que é? Nem falar sabe. Em vez de 'deixarei-os falar disse deixá-los-ei. Loura burra''.
Por vezes, quando a reunião é alargada e o tema não me diz directamente respeito ou não me é especialmente interessante, aproveito para ver mails. Sempre me poupa trabalho à noite e sempre desanuvio. Mas, então, estava eu nisto, a ver mails, dou com esta pérola: Se estiver de acordo, podia-mos deixar o outro assunto para depois para nos pudermos concentrar no problema que temos em mãos.
Fiquei a olhar para aquilo, a sentir-me besta. Quando recebo uma coisa assim, hesito sempre entre fazer de conta que não vejo, responder arranjando maneira de escrever aquelas palavras como deve ser ou responder, assinalando abaixo, a encarnado, os erros. Se fizer de conta que não vejo, fico a sentir-me incoerente, acomodada, acobardada. Se responder usando as palavras bem escritas, corro o risco de os broncos acharem que não sei escrever. Se assinalo os erros, vão dizer que sou mal educada, deselegante, má colega. Portanto, depois de ficar a olhar, resolvi fechar o mail e prestar atenção à reunião. O que me intriga nisto é que juraria que ele, dantes, não escrevia assim. Fiquei a pensar: terá sido o corrector automático que lhe pregou uma partida? ou estará a ficar demente? uma pandemia de bestalhice?
Santa paciência.
Bem. Não digo mais nada. Não estou nas melhores condições. Nem consigo responder aos comentários.
Tenho limpezas grandes para fazer durante este fim de semana alargado mas a ver se neste dia do trabalhador arranjo maneira de poder agradecer e responder a cada um. Não levem a mal.
__________________________________
Há poetas de que gosto muito. Há poemas de que gosto muito. Há pessoas que dizem poemas de que gosto de uma forma que me agrada muito. Por exemplo. Gosto dos poemas de Michael Ondaatje. Gosto de Tom O'Bedlam. A voz dele e as pausas são preciosas. E gosto deste poema, 'What we lost'. Partilho-o convosco não apenas porque estou a ouvi-lo mas, também, porque me custaria que aqui tivessem vindo e saíssem com a sensação de tempo perdido. Assim, talvez gostem de ouvir o poema.
Dia muito preenchido, dia absurdamente cansativo. Na empresa, e, se calhar, em quase todas as empresas, parece que toda a gente está a reagir de forma hiperactiva. Toda a gente quer avançar em força com muitos projectos, toda a gente ao mesmo tempo, como se toda a gente quisesse compensar a perda de actividade económica com uma forte dosagem de trabalhos que, podendo-se fazer em teletrabalho, mais vale fazê-los já antes que seja tarde demais.
Então, estou em sucessivos meetings e a ver que estão a convocar-me para outros e, passado um bocado, já vejo o meeting, que não aceitei, no ar e que, estranhamente, estão a tentar puxar-me para lá. Envio mensagem a dizer que estou noutra reunião. Mas, mal acabo aquela em que estava, já estou a receber uma convocatória para daqui por dois dias para fazer o seguimento da reunião que acabou de haver e na qual não estive. Uma loucura. É desde que me ponho o pé no chão até tarde na noite. Mal tenho tempo para almoçar, janto às quinhentas. Exaurida. E aborrecida com tudo isto.
E, ao sentar-me, um telefonema. Um conhecido diz-me que um familiar próximo está com covid e ele e a mulher, e sabe-se lá mais quem, certamente também. E uma pessoa fica pregada. Pregada. Do outro lado, o silêncio, depois a voz do medo. Medo. Ligo a outra pessoa a tentar perceber o que podemos fazer. Do outro lado, o silêncio. O medo. Nunca antes senti, como sinto agora, do outro lado, a materialidade do medo, mesmo quando o sinto traduzido em silêncio. Medo. O contágio invisível, o contágio entre os que se amam. A dor, o medo.
Como se não bastasse, esteve um frio de rachar e choveu que se fartou. Tive que me encher de roupa o que, em mim, é coisa nunca vista. Não faz parte de mim ter várias camadas de roupa em cima. Sou bicho de pele descoberta ou, vá lá, apenas levemente coberta.
Acresce que, obviamente, estamos os dois a partilhar na mesma casa, ambos cheios de trabalho e de videoconferências. Não podemos estar ao pé um do outro. Toca um telefone, toca outro, ouve-se um a falar, ouve-se o outro. Toda esta zona da casa comunica entre si, sem portas. Uma dificuldade acrescida, nestas circunstâncias. E aquecer a casa toda tem sido uma dificuldade.
O dia foi de tal maneira que nem consegui pôr o pé na rua. A bem dizer, nem consegui chegar-me à janela. Em dias assim, gosto de estar junto às janelas de vidro vendo a chuva, vendo o vento e o frio a dar nas árvores. Ficam muito bonitas as árvores em dias de frio, vento e chuva. Lavadas, livres, belas, vestidas de verdes exuberantes. Mas hoje apenas vi de longe. Vi e ouvi mas, infelizmente, sem poder prestar atenção. A dado momento pareceu-me ouvir um ribombar ao longe. Agucei os sentidos. Quis que trovejasse, mesmo. Se era para estar mau tempo, pois que viesse trovão, relâmpago, golpe de vento, gelo a valer. Mas se era trovão ao longe, pelas lonjuras se ficou. Não vi azul, nem nesga. Nem para saudade tive tempo.
Em tempos, distantes tempos, houve uma varanda florida, uma escada que descia para a rua, entre flores, e acho que o céu estava azul e que tudo sorria, o azul do céu, a sombra das árvores, as cores das flores, nós. Há muito, muito tempo. Numa outra vida. Não sei se noutra vida, se até noutro planeta. Não sei mesmo se outra-eu. Daqui por algum tempo talvez pense que nem nunca existiu esse outro tempo.
Não há muito, talvez há uns dias, alimentei a esperança de que por esta altura estaria eu a sacudir almofadas, a arejar cobertores, colchas e almofadas. A casa iria ser invadida, haveria meninos a brincar, a correr na rua, a jogar à bola, sentados à mesa. O ano passado, um dos meninos, à mesa, lambendo-se com os petiscos da sua Tá, disse: 'Isto sim, isto é que é vida'. Quando nos rimos e, perguntámos porquê, disse que aqui podiam brincar, subir às árvores, fazer o que queriam e comer comidas boas. Fiquei toda contente e ainda me lembro do ar satisfeito dele. Contou-me a mãe que, numa composição, escreveu que tinha saudades de cá estar. Entristeço-me. Como aconteceu uma coisa destas?, não me canso de me interrogar. Fez no outro dia anos, este meu querido menino, e gostou da festinha virtual que a mãe organizou, com família e amigos. Vamos inventando novas formas para tudo. Somos animais mutantes. Mas sinto tanta falta de os abraçar. Quando fazem anos, depois de apagarem as velas, gosto de me me chegar a eles para lhes dar um beijo e desejar que contem muitos e felizes anos de vida. Desta vez não foi possível. E ainda não aprendi a dar abraços virtuais, em especial quando o amor é muito.
Há pouco escrevi um mail pessoal mas em contexto profissional. Andava para fazê-lo. Sei que é assunto que agora parece disruptivo, sei que quem o recebeu não está ainda preparado para encarar a verdade que antevejo. Sei, pois, que o que escrevi vai ser recebido com desconfiança e sei que, se bem conheço aquele que a esta hora deve estar a lê-lo, depois vai ficar inquieto, hesitando entre fazer de conta que não leu ou levar-me a sério. Sei que se esforçará para não me levar a sério. Mas tomara que leve pois o que aí vem -- não sei quando -- será uma realidade apesar de ainda não a conhecermos. Não vai ser a continuidade do que era nas primeiras semanas de Março deste ano que eu pensei que, pela graça do número, 2020, seria um ano bom e que, até ver, está a ser um ano pavoroso. Mas, se fomos apanhados desprevenidos, batidos por um merdinhas invisível, temos agora a obrigação de ser inteligentes e saber dar a volta por cima, tornado-nos menos nocivos para o planeta, para a natureza, para os outros.
Mesmo num dia frio, triste e chuvoso, mesmo sentindo o peito vazio, esforço-me por pensar nos dias que virão a seguir e que quero imaginar que serão os promissores dias de um mundo novo, dias que festejaremos com a ajuda de Sophia, dizendo:
Bem. Para ver se me animo, vou ver o mais recente vídeo de Liziqui.
Comidas floridas, aspecto delicioso, uma paz feita de gestos silenciosos, vagarosos.