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Quantas pessoas existem dentro de nós? (Por favor, passe o rato ao de leve sobre a imagem ou desloque o cursor para que a mulher desvie o olhar) |
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Música, por favor
Como já aqui o referi, tenho andado a frequentar sessões de fisioterapia, parte das quais em piscina. Já aqui falei disso e não vou repetir-me. O assunto hoje é outro.
Os horários lá não são rígidos pelo que posso chegar primeiro que os meus parceiros e sair antes deles e, portanto, não chegar a encontrar as mulheres no balneário. Mas, ao longo deste tempo, já encontrei algumas, claro. Agora aos homens frequentemente só os vejo na piscina.
Acontece-me muitas vezes, quando as vejo cá fora, quase não conhecer as pessoas com as quais passo quase uma hora de cada vez dentro da piscina.
Na piscina usamos fato de banho e touca, toda a gente.
Aqui há tempos, ao cumprimentar um rapaz que já lá andava dentro de água a fazer exercícios, ele disse-me que já me tinha visto na recepção e que até me tinha cumprimentado mas que eu tinha parecido não o reconhecer. Pois, é possível.
No outro dia, quando lá cheguei, já lá encontrei um senhor que nunca antes tinha visto. Pareceu-me um chinês velhote, daqueles muito típicos, se calhar até daqueles que fazem exercícios de alongamentos e relaxação nos jardins, pela manhã. Olhei-o de soslaio algumas vezes, para confirmar. E achei que devia mesmo ser chinês, pele do corpo um bocado enrugada, especialmente as dos braços que é que está mais à vista, costas ligeiramente encurvadas (aliás é esse o seu problema), tom de pele um pouco amarelado, feições indubitavelmente de chinês. Lá andava a fazer os seus exercícios e via-se que os fazia com algum esforço. Senti uma certa compaixão.
No outro dia, quando lá cheguei, já lá encontrei um senhor que nunca antes tinha visto. Pareceu-me um chinês velhote, daqueles muito típicos, se calhar até daqueles que fazem exercícios de alongamentos e relaxação nos jardins, pela manhã. Olhei-o de soslaio algumas vezes, para confirmar. E achei que devia mesmo ser chinês, pele do corpo um bocado enrugada, especialmente as dos braços que é que está mais à vista, costas ligeiramente encurvadas (aliás é esse o seu problema), tom de pele um pouco amarelado, feições indubitavelmente de chinês. Lá andava a fazer os seus exercícios e via-se que os fazia com algum esforço. Senti uma certa compaixão.
Depois saíu antes de mim e vi que era mais alto do que parecia, um velhote chinês alto e até levemente magro.
Qual não é o meu espanto quando, depois da piscina, vi no sector da electro-terapia um homem de alguma idade, sim, mas não muito velho, um homem interessante, cabelo grisalho um pouco comprido, algum tombando sobre a testa, uns óculos modernos, alto, bem vestido, com muita pinta. Outro. Só porque vi a fisoterapeuta a falar com ele e a referir os exercícios que minutos antes tinha estado a fazer na piscina é que, incrédula, vi que era a mesma pessoa. Qual chinês...? Tão ocidental, tão português como eu.
Também me encontrava frequentemente na piscina com uma mulher que me parecia feiazota, com um nariz um bocado bizarro, um bocado gorda, desengraçada; não lhe percebia a idade, talvez uma meia idade avançada. Mas muito simpática. Pois bem, quando um dia a vi vestida no balneário mal a reconheci. Alta, cabelo comprido, um belo cabelo forte, moderna, talvez uns quarenta anos, uma roupa toda fashion, todo o conjunto era um pouco fora do normal mas muito interessante. Alegre, giraça, confiante. Minutos depois, de fato de banho e touca, sem um cabelo à vista, já era a desengraçada do costume.
Pois bem. É uma dúvida que tenho. O que somos é também o aspecto que temos? Perdemos a nossa identidade quando nos despimos e cobrimos o cabelo (ou o coro cabeludo, consoante os casos)? Despidos, despojados, tornamo-nos indefesos, indistintos?
Lembro-me do dia em que fui operada. Despida, apenas com uma bata descartável, com uma touca descartável na cabeça, levada numa maca pelo corredor, eu não era eu, era apenas um ser indefeso que ali ia, sem vontade própria, à mercê do que me iam fazer, esperando apenas ficar bem quando aquilo acabasse. Onde estava, nessa altura, a mulher bem disposta, geralmente segura de si própria, que gosta de ler, fotografar, senhora do seu destino? Não estava ali, isso não. Despedi-me emocionada do meu marido, despedi-me, quase em lágrimas, da minha filha que me acompanhou até ao bloco operatório. Já antes me tinha despedido, pelo telefone, da minha mãe e do meu filho que me tinham telefonado. Ora nada disto sou eu, tal como sou normalmente, ou, pelo menos, como julgo que sou.
É certo que a situação o poderia justificar. Mas, como poderia eu ser diferente, ali, numa maca pelo corredor fora, pouco mais que um corpo, preparada para ser operada, talvez já a soro (disto não me lembro)?
Tinha entrado no hospital, umas horas antes, eu, igual a mim mesma, com a minha roupa, o meu cabelo solto, os meus sapatos, tinha estado a fotografar a rua a partir da janela do quarto, tinha estado a ler uma revista que o meu marido me tinha trazido lá de baixo, a Caras, que dizia que os caranguejos iam sofrer uma intervenção a nível de ortopedia, tinha estado a ler uma entrevista com a Ana Marques, lia divertida, comentava, e tinha estado a responder a telefonemas e a mails. Eu. Depois, despida, despojada, entregue aos cuidados das enfermeiras, deixei de ser eu.
É isso que acontece com toda a gente? Ou, pelo contrário, nós somos o que somos é quando estamos assim, despidos e indefesos, e acrescentamos novas personas à nossa identidade quando compomos a nossa imagem?
Não sei.
Lembrei-me disto, embora nem venha a propósito de forma muito linear, ao ler sobre a exposição de Joana Ricou.
Transcrevo ainda:
A artista plástica portuguesa radicada nos Estados Unidos, cuja formação base assenta em Arte e Biologia, inaugura a sua primeira exposição individual em Portugal, na galeria Edge Arts (Lisboa), no próximo dia 15 de Janeiro, pelas 18h30 e estará patente até dia 15 de Fevereiro.
O tema da mostra «Um, Nenhum e Cem Mil» é baseado na memória, especialmente inspirado numa última descoberta que atesta que a cada vez que lhe fazemos apelo, esta se vai alterando, ou seja, “cada vez que lembramos, as sinapses vão mudando”, refere ao jornal «Ciencia Hoje».
e, mais à frente:
Em «Um, Nenhum e Cem Mil», a esteta lusa representa, numa única tela, imagens da mesma rapariga como se, de forma fragmentada, os seus movimentos fossem seguidos ou como se os diferentes ‘frames’ de um filme acompanhassem e revelassem momentos episódicos do seu percurso, explorando uma espécie de “necessidade de continuidade e o estado natural de multiplicidade do corpo e da mente, entre mudança e constância, identidade e efemeridade”.
“A biologia da memória reverte para lembranças de momentos descontínuos, é episódica e plástica (manipulável)”, acrescenta Joana Ricou, referindo ainda que a imagem mostra no fundo “momentos neutros de passagem do tempo”, ou seja, “um determinado segundo e o seguinte e o seguinte, ou seja, informações que estamos a tentar guardar e que muitas vezes se perde durante o processo de transferência”.
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Vem isto a propósito de quê?
Pois bem. É uma dúvida que tenho. O que somos é também o aspecto que temos? Perdemos a nossa identidade quando nos despimos e cobrimos o cabelo (ou o coro cabeludo, consoante os casos)? Despidos, despojados, tornamo-nos indefesos, indistintos?
Lembro-me do dia em que fui operada. Despida, apenas com uma bata descartável, com uma touca descartável na cabeça, levada numa maca pelo corredor, eu não era eu, era apenas um ser indefeso que ali ia, sem vontade própria, à mercê do que me iam fazer, esperando apenas ficar bem quando aquilo acabasse. Onde estava, nessa altura, a mulher bem disposta, geralmente segura de si própria, que gosta de ler, fotografar, senhora do seu destino? Não estava ali, isso não. Despedi-me emocionada do meu marido, despedi-me, quase em lágrimas, da minha filha que me acompanhou até ao bloco operatório. Já antes me tinha despedido, pelo telefone, da minha mãe e do meu filho que me tinham telefonado. Ora nada disto sou eu, tal como sou normalmente, ou, pelo menos, como julgo que sou.
É certo que a situação o poderia justificar. Mas, como poderia eu ser diferente, ali, numa maca pelo corredor fora, pouco mais que um corpo, preparada para ser operada, talvez já a soro (disto não me lembro)?
Tinha entrado no hospital, umas horas antes, eu, igual a mim mesma, com a minha roupa, o meu cabelo solto, os meus sapatos, tinha estado a fotografar a rua a partir da janela do quarto, tinha estado a ler uma revista que o meu marido me tinha trazido lá de baixo, a Caras, que dizia que os caranguejos iam sofrer uma intervenção a nível de ortopedia, tinha estado a ler uma entrevista com a Ana Marques, lia divertida, comentava, e tinha estado a responder a telefonemas e a mails. Eu. Depois, despida, despojada, entregue aos cuidados das enfermeiras, deixei de ser eu.
É isso que acontece com toda a gente? Ou, pelo contrário, nós somos o que somos é quando estamos assim, despidos e indefesos, e acrescentamos novas personas à nossa identidade quando compomos a nossa imagem?
Não sei.
Lembrei-me disto, embora nem venha a propósito de forma muito linear, ao ler sobre a exposição de Joana Ricou.
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O eu que se vai alterando à medida que o tempo passa ou à medida que se desloca no espaço São representações de quando “tentamos ligar um momento a outro num esforço contínuo e a forma como lidamos com a descontinuidade da memória, quando olhamos para trás, para o passado ou nos agarramos ao futuro por não querermos lidar com o presente, por exemplo”, diz Joana Ricou no site Ciência Hoje |
Transcrevo ainda:
A artista plástica portuguesa radicada nos Estados Unidos, cuja formação base assenta em Arte e Biologia, inaugura a sua primeira exposição individual em Portugal, na galeria Edge Arts (Lisboa), no próximo dia 15 de Janeiro, pelas 18h30 e estará patente até dia 15 de Fevereiro.
O tema da mostra «Um, Nenhum e Cem Mil» é baseado na memória, especialmente inspirado numa última descoberta que atesta que a cada vez que lhe fazemos apelo, esta se vai alterando, ou seja, “cada vez que lembramos, as sinapses vão mudando”, refere ao jornal «Ciencia Hoje».
e, mais à frente:
Em «Um, Nenhum e Cem Mil», a esteta lusa representa, numa única tela, imagens da mesma rapariga como se, de forma fragmentada, os seus movimentos fossem seguidos ou como se os diferentes ‘frames’ de um filme acompanhassem e revelassem momentos episódicos do seu percurso, explorando uma espécie de “necessidade de continuidade e o estado natural de multiplicidade do corpo e da mente, entre mudança e constância, identidade e efemeridade”.
“A biologia da memória reverte para lembranças de momentos descontínuos, é episódica e plástica (manipulável)”, acrescenta Joana Ricou, referindo ainda que a imagem mostra no fundo “momentos neutros de passagem do tempo”, ou seja, “um determinado segundo e o seguinte e o seguinte, ou seja, informações que estamos a tentar guardar e que muitas vezes se perde durante o processo de transferência”.
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Um, nenhum, cem mil “Quem somos nós, se as nossas memórias se alteram todos os dias?”, questiona Joana Ricou |
Portanto: quem somos nós? Eu, que escrevo, você, que me está a ler, somos o que somos agora, neste momento, neste sítio? Ou fomos mais nós próprios, quando fomos crianças? Ou somos verdadeiramente o que somos quando nos levantamos, inocentes, despidos?
Somos todos esses seres? Coabitam todos dentro de nós? Ou são criados a cada momento, reproduções de nós, umas a cores, ruidosas, outras a preto e branco, silenciosas?
Não sei.
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A música é de Schubert - Arpeggione - (Anne Gastinel Claire Désert)
A música é de Schubert - Arpeggione - (Anne Gastinel Claire Désert)
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E, com isto, já é sábado.
E que ele seja um dia feliz nas vossas vidas, é o que eu vos desejo, meus Caros Leitores.