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sexta-feira, julho 19, 2024

A fera ferida

 

Tenho tido uns dias daqueles, já aqui contei. Mas há uma que ainda não contei. 

O nosso cãobeludo, temível fera que nos defende contra tudo e contra todos, é, na realidade, um serzinho que fica infeliz e altamente carente quando não está connosco. 

Estivemos fora, umas belas férias a sul, e deixámo-lo no que nos pareceu o melhor lugar possível e onde já tinha ficado quando estivemos no País Basco, por alturas da Páscoa. Na altura, não fomos nós que o levámos e parece que não correu mal de todo.

Desta vez, fomos levá-lo e ele, quando viu que ia lá ficar e que nós nos estávamos a ir embora, ficou num desconsolo, a atirar-se às redes, a chorar, um desatino.

De vez em quando, a dona do hotel canino mandava-nos vídeos a dizer que ele ainda estava tímido mas que estava bem. Mas o que eu via era um cãozinho triste, a olhar para o lado, sem interagir, ignorando a pessoa que falava com ele enquanto o filmava.

Depois disseram que ele estava com alergia no peito. Estranhámos. Alergia a quê?

Quando o fomos buscar fiquei impressionada pois vi logo que estava nervoso, ansioso, desfigurado, parecia que tinha os globos oculares para fora e as orelhas todas para trás, coladas à cabeça, parecia que estava sem orelhas.

Ficou doido de alegria ao ver-nos e, aos poucos, fisicamente normalizou. Mas estava reactivo, ansioso, diferente do habitual.

Ontem, por causa do estado em que tinha o peito, já fomos ao veterinário (horas! como em tudo nestes últimos dias, horas de espera, horas, horas, um desespero...!) e o que nos disse que é que deve ter sido stress, que deve ter ficado com o sistema imunológico reduzido, lambendo-se e criando sensibilidade e irritação na pele. E agora, como coça o peito, já está em ferida, e todo encarnado escuro.

E tem que aplicar um produto mas, reactivo como está, mal nos vê com o medicamento na mão, começa a rosnar, a fazer dentinhos, e, claro, foge. Se o queremos prender para lhe aplicar aquilo mostra com aviso sonoro e os enormes dentes que é prudente não nos arriscarmos. Portanto, não melhora.

O veterinário disse que tínhamos que lhe pôr um colar isabelino. Só que o problema maior agora é coçar-se e isso não vai resolver-se com o colar. E aquele funil de plástico enerva-o, incomoda-o, anda a bater com aquilo em todo o lado. Ora, com os stresses todos por que têm passado, não queremos estar a sujeitá-lo a ainda mais essa.

Como se não bastasse o pobre bichinho já andar stressado e incomodado com o peito em ferida, ontem de manhã, quando o meu marido foi caminhar com ele, foram surpreendidos com um cão gigante à solta que correu para cima da nossa ferinha. Tendo um tamanho muito maior que o nosso, saltou-lhe para cima e pô-lo de rojo pelo chão, a mordê-lo nas costas e no pescoço. O meu marido tinha-o pela trela e tentou separá-lo mas claro que teve a maior dificuldade. Gritou por socorro mas não apareceu ninguém e pensou que a besta gigante ia matar o nosso fofo bichinho. Depois, não tendo como afugentar o outro, que ladrava e rosnava e mordia o nosso, viu um contentor de lixo vazio e conseguiu dar-lhe um pontapé para cima do cão. Entretanto apareceu um senhor que abriu o portão para o meu marido entrar e, com o contentor ou com o facto de apareceu esse senhor e depois mais outro, o meu marido lá conseguiu puxar o nosso e fechar-se no jardim do senhor.

Finalmente o outro foi-se embora e o meu marido lá conseguiu sair e vir para casa. O meu marido vinha um bocado transtornado e o nosso cãobeludinho vinha encharcado da baba da outra fera horrível e vinha assustadíssimo. Deitou-se, encolhido, sem se mexer. Felizmente, e milagrosamente , não ficou ferido. Foi o pelo que o salvou. Com pelo curto, teria ficado desfeito. Mas se não ficou rasgado, ficou certamente dorido, traumatizado. 

Mas, portanto, se passou pelo stress de se ver abandonado pelos seus adorados donos, agora passou pelo stress de ser atacado por uma besta gigante.

Liguei para a polícia. Pensei que iriam tentar apanhar o cão. Contudo, passada para aí hora e tal, tocaram-nos à campainha. Três polícias armados, com a artilharia toda à cintura, perfumados e simpáticos. pediram a identificação do meu marido e a do cão com o respectivo boletim de vacinas. Quanto ao cão à solta, admitiram que já não o achariam e disseram que, se ainda estivesse à solta, teriam que resgatá-lo e que seria uma situação complicada. Portanto, lá se foram.

Hoje fomos comprar um bastão de caminhada para levarmos pois servirá, pensamos nós, para tentar afugentar um possível agressor. Claro que se eu estiver com eles, será mais fácil pois estar a segurar a trela de um cão a ser agredido tentando protegê-lo não deixa muita margem para, ao mesmo tempo, manobrar um bastão.

Mas, portanto, tem sido isto. 

Quando vínhamos de comprar o bastão e de comprar umas coisas no Leroy, ainda parámos no supermercado para trazer um frango assado e taboulé pois já ando sem energia, já não me apetecia ainda pôr-me a cozinhar. 

E agora, ao estar aqui a escrever isto, adormeço de minuto a minuto. Dá ideia que estou a precisar de férias desta sucessão de maçadas, de não ter ralações em cima umas das outras, de poder estar sem nada em que pensar, sem ter que ir a lado nenhum. 

Mas adiante. 

O meu marido tem andado a dar volta ao jardim. Arrancou um arbusto seco, depois estivemos os dois a podar e a dar um jeito engraçado a um outro arbusto, estive a cortar ramos desnecessários num outro. Agora o jardim está mais amplo, mais arejado, mais bonito. Dá ideia que finalmente o jardim está a ficar mais a nosso jeito, e isso agrada-me muito, nada que se compare com quando cá andavam os pseudo-jardineiros. 

No meio de tudo há sempre momentos bons e isso é que é preciso.

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Maria Bethânia - "Fera Ferida"

[Nada a ver com o tema do post]

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Dias felizes

domingo, fevereiro 18, 2024

Ele teve medo de enlouquecer e ela teve que se explicar de uma vez por todas

 

Não vi os debates. Não estava em casa. Estava a tomar conta dos meus meninos enquanto os pais foram jantar fora. Quando me lembrei e eles sintonizaram no canal, estava a pombinha Raimunda a fugir com as penas do rabo à seringa. O tema da Rússia é mortífero para o PCP. Disfarçam a sua incapacidade em demarcarem-se dos crimes de Putin com uma conversa pífia; e com o Raimundo, dadas as limitações que tem exibido, a coisa fica ainda mais confrangedora.

O debate seguinte nem o cheirei.

E, de resto, apetece-me descansar a cabeça. 

Quando Bethânia e Caetano convergem com o espírito livre de Clarice Lispector o resultado só pode ser sublime. E é o que me apetece ouvir.




Desejo-vos um belo dia de domingo

Saúde. Elevação. Paz.

terça-feira, dezembro 26, 2023

Agradecer e abraçar

 

Afinal o dia de Natal não foi cá em casa. Eu com dores de garganta, meio engripada mas sob controlo. O meu filho, depois de bem atacado, já quase bom, embora ainda com tosse, mas a minha filha pior, a sentir-se doente, a sentir que não devia sair de casa.

Estávamos a ver as coisas mal paradas. Natal sem estarmos juntos e, em especial, sem que a criançada esteja junta não é Natal. Mas, felizmente, tudo se resolveu pelo melhor. Fomos nós ter com ela. Esteve com máscara e almoçou fora da mesa, embora perto de nós, não fosse contagiar os demais (os demais que ainda conseguem aguentar-se livres do bicho).

Eu e ela provavelmente apanhámo-lo nos hospitais por onde temos andado. Parece que está meio mundo apanhado.

De tarde, ver a minha mãe, por via das dúvidas, só meu filho e a minha nora. Encontraram-na menos queixosa, melhor encarada. Face ao estado em que a vimos, quase parece milagre que esteja a recuperar tão bem.

O meu marido foi para o parque com os rapazes. Não passam sem uma futebolada. Até o mais pequeno já gosta de se pôr à baliza. Se daqui por uns anos derem conta de dois irmãos mais dois irmãos, primos uns dos outros, todos guarda-redes, provavelmente dois pelo Sporting e dois pelo Benfica, já sabem que serão os meus quatro queridos rapazes.

Desta vez, despassarada e atordoada como tenho andada, incapaz de atinar com combinações, foi o meu filho que cozinhou as carnes. Óptimas, no ponto, saborosas e bem cozinhadas. É um chef, o meu filho. Eu limitei-me a fazer batatas raclette e molho de tomate.

Desta vez não levámos o cão maluco. Impossível num apartamento cheio de gente, com miúdos barulhentos, com o momento de agitação que sempre é o da troca de presentes, com bolas de futebol à mistura, com comida à mão de semear, com um movimento permanente. Portanto, foi mais tranquilo pois se, em cima disso, tivéssemos um cão a querer abocanhar tudo e toda a gente a zangar-se com ele, teria sido mais complicado.

Quando chegámos a casa, de noite, o bichinho, coitado, estava como sempre está nestas ocasiões: nervoso, amedrontado, com receio de vir à vontade ter connosco. Temos que lhe fazer festinhas e fazer-lhe perceber que não ficou de castigo, que não estamos zangados com ele. Quando percebe isso, fica numa alegria desmedida, salta e atira-se para o chão para lhe fazermos festas, brinca à nossa volta. Fomos fazer uma caminhada nocturna, o ar gélido, eu agasalhada e a recear piorar. E se calhar piorei mesmo. Estou para aqui cheia de frio, cheia de arrepios. Já bebi um chá quentinho e daqui a nada vou chupar outra pastilha. A ver se isto não se complica para aqui.

Entretanto, enquanto escrevo, vou vendo o que os meus amigos vão enviando sobre os seus natais, outros vão publicando piadas. E a minha filha encaminhou a fotografia de uma amiga comum, em casa, com as suas crianças. Todos muito bem vestidos, chiques, mesmo, as meninas vestidas de igual, todos sossegados, direitinhos, a fazerem pose para a fotografia. Fico sempre intrigada. Como conseguem? As nossas fotografias são o desconchavo habitual, uns sentados no chão a jogarem ao 'vírus' (se é que percebi bem), outros estendidos no sofá relax, um deles quase a fazer a cambalhota, por fim esse em tronco nu. Tinha pensado que neste dia de natal iria tentar que ficássemos na escada, todos sentados, a família toda junta. Afinal não aconteceu. A ver se no ano novo.

Não falei dos doces. Estou desconcentrada e a sentir-me meio adoentada. Gaita. Adiante. A minha filha tinha pavlova de chocolate e arroz doce e eu levei dois bolos da padaria portuguesa. E a minha nora levou mousse feita pela mãe. E bombons. E, uma coisa muito boa, um prato de belas bolachinhas, muito saborosas, feitas pela minha menina mais linda, tão querida, que gosta de também colaborar na confecção da ementa natalícia. Com tudo isto, sobraram muitos doces. Trouxe algumas bolachinhas e o que sobrou dos dois que levei, e congelei. Descongelo no ano novo.

E, com isto, a semana começa numa terça-feira. Não parece, não é? Diria que, no máximo, seria segunda-feira. Mas não senhor. Terça feira. Continuo desfasada das rotinas mas, agora que parece que a esperança numa recuperação não é ficção, a ver se consigo encaixar as idas ao hospital sem quebrar a rotina da piscina ou das leituras ou da escrita. Não sei bem como consegui-lo mas acho que terei que tentar porque senão parece que nem sou bem eu. Isto já para não falar que há não sei quanto tempo que não conseguimos ir ao campo, à nossa maravilhosa casinha in heaven. Enfim. Uma coisa de cada vez. É o que me dizem, é o que a minha filha está sempre a dizer-me: um dia de cada vez.

E pronto. O Natal já passou e daqui a nada o ano também já se foi. Mas estamos aqui e isso é o que importa. Agradecer e abraçar. E seguir em frente. É isso, não é?

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Maria Bethânia - "Agradecer e Abraçar"


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Muito obrigada pelas vossas palavras simpáticas e não levem a mal que não agradeça a cada um, está bem?

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Um dia feliz
Saúde. Força. Paz.

quarta-feira, novembro 16, 2022

A saudade dos três doces bárbaros na partida de uma deles

 


Hoje soube da morte de uma pessoa que conhecia. Conhecia-a apenas de vista mas, de todas as vezes que estive com ela nos mesmos eventos, via-a sempre vibrante, cheia de alegria e de vida. O seu próprio rosto irradiava. Sempre alegre, entre amigos, rindo, na paródia, ela era daquelas pessoas que não passava despercebida. Soube há algum tempo que estava doente, mais recentemente soube que estava mesmo mal, ontem soube que estava por pouco e hoje soube que o seu sofrimento tinha acabado. 

Fez-me muita impressão. Há pouco vi uma fotografia sua e a sua morte parece-me ainda mais impossível.

Até há uns anos quem morria eram avós, tios de idade, depois mais recentemente começaram a morrer alguns pais -- pessoas de outra geração. Mesmo fazendo-nos impressão e sentido a saudade e a dor da separação, inevitavelmente aceita-se. É a lei da vida, diz-se nestas ocasiões. E é verdade. 

Lembro-me de andar no primeiro ano do liceu e de ter morrido uma colega, vizinha e amiga. Toda a gente sofreu imenso e a mim causou-me uma aflição muito grande. Contudo, desde pequena que eu ouvia dizer que ela sofria do coração e que havia nela uma bomba sempre prestes a explodir. Lembro-me de ouvir dizer que, antes de morrer, tinha tido muitas hemorragias e, para mim, pensei que tinha mesmo acontecido, o coração dela tinha mesmo explodido. 

Mais tarde, mas ainda no liceu, foi um vizinho da minha avó, colega de escola desde a infantil e amigo que também morreu. Tinha asma e sempre o conheci com uma tremenda falta de ar, sempre com pieira e sempre arfante, sem poder brincar, por vezes quase sem poder falar ou mexer-se. Falava-se da bomba como se vivesse dependente dela. Quando morreu foi uma pena muito grande mas foi quase como se fosse uma morte anunciada, a fatalidade que todos receavam.

Foram mortes muito precoces mas, em ambos os casos, no meu mais íntimo foi quase como se a natureza tivesse feito a caridade de reparar um erro irreparável

Não vou falar das mortes da minha família e que muito me custaram. Mas vou falar de uma morte que me fez mesmo muita, muita impressão. 

Volta e meia falo aqui dela. Quando no outro dia andei a limpar mails, passei várias vezes pelos dela e não fui capaz de apagar um único. Nenhum era de trabalho. Eram todos mails de anedotas, vídeos divertidos ou bonecada frequentemente maliciosa (muito maliciosa, muito mesmo, para dizer a verdade). Era uma pessoa que estava sempre de bem com a vida, que brincava com tudo e com todos. Ainda me lembro dela, uma vez, nos contar que uns dias antes tinha estado com um ministro e que ele a tinha olhado de alto a baixo. Mas logo acrescentou: 'Mas não era com ar de quem queria comer, era mais ar de 'onde é que ela terá comprado esta roupa?'. O meu marido desconcertado, o marido dela a rir, já mais que habituado, eu perdida de riso. Ou quando contava toda a espécie de safadezas entre colegas de trabalho, explicando: 'Sabem como é, há muitas camas...'. Até que um dia ele me contou, preocupadíssimo, que ela tinha pedido a um colega que lhe fizesse um exame e, nesse exame, o colega confirmou o que ela temia: um tumor. Depois foram os dias de expectativa em relação à biopsia. E depois o que se seguiu, ela sempre optimista, os tratamentos, ela optimista, o marido reticente mas, depois, o mal erradicado, já confiante. Os anos seguintes foram anos tranquilos, ela bem. Os filhos casaram, veio um neto, eles felizes. Por vezes, a medo, eu perguntava-lhe a ele: 'E ela, bem?'. E ele: 'Felizmente'. Há pouco tempo, andava eu e o meu marido a passear em Óbidos, entre o Natal e o Ano Novo, toca-me o telemóvel. Ele. Conversámos. O bebé dormia a sesta. Disse que a mulher estava 'aqui ao lado, manda-vos beijinhos. E um feliz ano novo'. Ouvi a voz dela. Retribuí. Não sei se no primeiro ou segundo dia do ano, eu a trabalhar, o telefone. Ele. Num fio de voz, se calhar ela tinha que ir para os paliativos. Não percebi. Ele disse que também não. Ela tinha escondido que estava muito mal. Tinha-se medicado. No hospital, os colegas contaram-lhe: sabiam, ela tinha dores mas tinha-lhes pedido para não dizerem nada. Intrigada, eu: 'Mas a semana passada disseste que estava bem... '. E ele: 'Estava cansada mas foram as festas, a miúda lá em casa, pensei que era normal, ela dizia que era normal'. Mas na véspera não se conseguia mexer, estava sem forças, levaram-na ao hospital, teve que ir ao colo. Estava no fim. Ele ainda incrédulo. No dia seguinte, em lágrimas, ligou-me de novo: ela tinha morrido. Não quis estragar as festas à família, não quis que a família e os amigos sofressem com o seu sofrimento. O que ela sofreu nem imagino. Da sua coragem nem encontro palavras para falar. Mas viveu até ao fim como sendo ela própria e não como uma doente terminal e acho isso extraordinário. No velório, o meu amigo estava inconsolável, destroçado. Ela era a sua força, ela era o motor da família.  E a mim fez-me muita impressão. Quase como se não conseguisse assimilar, não conseguisse perceber, não conseguisse aceitar que tinha mesmo acontecido. Ainda hoje me espanto. 

E agora foi esta... (ia dizer esta rapariga). Está a meio caminho entre a idade da minha filha e da minha. Tão jovial, tão saudável. Parece que não se pode acreditar.

Há situações em que parece que, ao desaparecer uma pessoa, se abre um buraco negro que jamais será ocupado. Pessoas luminosas. Deixam um rasto que perdura na nossa memória, que continua a brilhar.


Não há ninguém que cá fique pelo que, racionalmente, deveríamos encarar estas situações com alguma naturalidade, aprendendo a aceitá-las melhor. Mas nisto das emoções nem sempre se consegue ser racional.

Não é fácil.

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Caetano Veloso e Maria Bethânia falam sobre Gal Costa: 'Nossa história é amor'

A voz de Gal, apesar de única, sempre esteve perto de outras três vozes: as de Gil, Bethânia e Caetano. Juntos, eles transformaram a amizade em arte. A repórter Renata Ceribelli ouviu duas dessas vozes. Elas falam de lembranças doces e de uma bárbara saudade.


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A primeira pintura é Death on a pale horse, J. M. W. Turner. A segunda e a última são algumas das fantásticas mulheres de Armanda Passos. A terceira é da autoria de Gary Hume.
Lacrimosa - Mozart
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Um bom dia
Saúde. Ânimo. Paz.

terça-feira, outubro 11, 2022

Ser ou não ser fada do lar -- eis a questão

 


Não sou fada do lar nem tenho ambição de vir a ser. Sei dar conta de uma casa e fazer de tudo (acho eu) mas tudo na versão básica e acelerada. Durante muitos anos não tive empregada pelo que tive que aprender a despachar serviço.

Depois de anos de auto-suficiência, quando tive o meu filho reconheci que estava a ser um pouco de trabalho a demais. Com um bebé que dava trabalho que se fartava, com uma menina de três anos que levava horas a comer, nós dois a trabalhar e não era pouco, com trânsito entre a casa, a escola dela, a ama dele, ter que andar a levar e buscar um e outro e chegar a casa e ter roupa e comida para tratar e banhos e papas... era muito. Por essa altura o meu marido trabalhava numa multinacional tendo que se deslocar com alguma frequência, não apenas dentro como fora do país e, quando não, mesmo assim não conseguia chegar muito cedo. Era dureza.

Arranjámos, então, uma senhora para nos ajudar. Não se lhe percebia a idade, era de tipo matrona. Nunca simpatizei com ela, era sonsa e sombria. Mas não conhecíamos outra.

Ao fim de pouco tempo comecei a dar por falta de fraldas, de babygrows, de casaquinhos, falta de tudo. Não sou especialmente atenta pelo que não saberia validar que mais faltava. Dava por falta das coisas do bebé pois eram de uso diário. Devia ter algum filho da idade do meu, presumi. Nunca reconheceu que só poderia ser ela. Mandámo-la embora, bastante incomodados por termos uma ladra dentro de casa.

A seguir veio uma outra. Muito faladora, muito prestável. E simpática. Ofereceu-se para fazer sopas para me facilitar a vida -- e fazia sopa de maçãs, sopa de ovos. Eram sabores novos mas agradáveis. Não arrumava grande coisa mas, enfim, lá ia fazendo. O pior é que um dia não podia vir pois tinha uma prima no hospital e não podia deixar de ir vê-la, outro era um irmão que ia para fora e ela tinha que levá-lo, outro era a mãe doente e tinha que acompanhá-la. Faltava muito e não queria que eu descontasse pois dizia que compensava. Eu ia na conversa. Se eu mostrava aborrecimento com tanta ausência, era ela que aparecia doente, tinha que ir fazer exames. Uma vez calhou eu chegar mais cedo a casa. Vozes, risos. Entrei quase a medo, não percebia o que poderia estar a acontecer. Umas repimpadas nos sofás a ver televisão, ela na conversa com outras na cozinha. Eu com o menino ao colo e a menina pela mão e a casa cheia de gente desconhecida, usando-me a casa no maior dos à-vontades. Como se a casa fosse dela, informou-me que eram conhecidas que tinham resolvido fazer-lhe uma visita. Enchi-me de coragem e mandei-a embora.

Até que, não sei como, descobrimos uma senhora já não muito nova mas que nos pareceu uma escolha acertada. Pequenina, esperta como um alho, toda mexida. Trabalhou connosco uns bons anos. O meu filho já estava no mesmo colégio em que andava a irmã e, por isso, a logística já estava relativamente facilitada. Ela arrumava e limpava a casa, ia buscá-los, dava-lhes lanche se eles quisessem, por vezes levava-os à ginástica, ficava a tomar conta até que regressássemos. Não era especialmente 'apurada' na lida da casa nem cozinhava. Mas, a olho nu, a casa parecia minimamente arrumada e limpa, a roupa estava lavada e engomada e, sobretudo, era carinhosa e cuidadosa com os miúdos. 

Era também cheia de histórias. Ia no terceiro marido, viúva dos dois anteriores. Um morreu de doença, outro num acidente. Caiu ou atiraram-no de um grua, dizia ela. Falava deles com desapego. Do que morreu de acidente contou: "Trabalhava no estaleiro, ganhava bem, fazia muitas horas, mas uma vez descobri o que ele fazia para ganhar ainda mais. Quando fui lavar as cuecas, descobri". Não sei se eu já tinha trinta anos nessa altura mas sei que ainda sabia pouco dessas coisas. Não percebi. Ela esclareceu: 'Sujas de cocó na parte da frente'. Fiquei na mesma. Contrariada por ter que entrar em pormenores, esclareceu: 'Desculpe o que vou dizer mas, se não percebe, não há outra maneira de dizer: ia ao cu aos que chegavam nos barcos'. Eu ficava sempre perplexa com o que ela contava.

Mais tarde, o marido, o terceiro, adoeceu, não me lembro de quê. Começou a faltar muito pois ia vê-lo ao hospital ou, depois dele ir para casa, ou era o médico que lá ia ou era o marido que piorava e ela não queria deixá-lo sozinho ou outra coisa qualquer. Era muito complicado conciliar a nossa rotina doméstica com estas ausências mas, para ela não se ir embora, aceitávamos tudo. Não parecia especialmente preocupada com o marido, falava sempre de forma desprendida. Andava simplesmente mais atarefada. Começou a preparar-me para nos ir deixar. Pedi-lhe que aguentasse até os miúdos serem mais autónomos mas ela estava mais virada para a sua liberdade. Falava abertamente dos seus planos. Ia 'meter os papéis' para a reforma e, como o marido já não devia durar muito (falava assim, quando se referia ao marido), depois recebia também a pensão de viuvez e ficava bem, já não precisaria de trabalhar. Até que o marido morreu mesmo. Pareceu aliviada, ainda mais cheia de planos, ainda mais mexida do que o costume. Mal a reforma se concretizou, bye, bye, aí vai ela. Desapegadamente, foi-se embora. Nós preocupados, os miúdos a sentirem a falta dela e ela já toda ufana com o seu estado de viuvez. 

Perdi a vontade de ter outra pessoa em casa. Habituámo-nos. Distribuíamos tarefas entre os quatro. Melhor ou pior, um ficava com a limpeza do pó, outro com a aspiração, outro com casas de banho, o meu marido estendia a roupa, eu engomava, eu cozinhava, ele lavava a louça.  Os vidros ficavam para quando o rei fazia anos. Fomo-nos governando assim. 

Mas não era opção consensual. Pelo contrário, muito, muito pelo contrário. Os miúdos já não estavam para isso, o meu marido também não. Mas eu não me imaginava a ter uma outra mulher a partilhar o nosso espaço, talvez a roubar, talvez a levar gente para nossa casa, talvez a baldar-se a torto e a direito.

Até que há cerca de dez anos, ao ser submetida a artroscopia aos joelhos, tive que me render. Não podendo eu trabalhar, não seria justo deixar o trabalho todo para o meu marido. Por essa altura já éramos só os dois mas a casa era grande e nem pensar ficar eu de perna estendida e ele cheio de trabalho.

Por isso, a partir daí temos quem nos ajude. Vem apenas uma tarde por semana e mais do que chega. Mas agora já não nos imagino a ter que fazer tudo só por nós. Gosto de lavar o chão, de lavar casas de banho e cozinha, gosto de cozinhar, de tratar da roupa. Mas não tenho nem um bocadinho de pachorra para limpar o pó. E há os vidros -- muito menos. E todas essas coisas para as quais é preciso disciplina para fazer assiduamente. Nem sei de truques, daqueles que as fadas do lar sabem e têm orgulho em saber.

Mas, porque nunca é tarde para aprender, aqui ficam algumas dicas que podem ser bem úteis a quem queira fazer boa figura e surpreender amigos e familiares quando lá forem a casa.

Nobody Believes But It Really Works!!! 

9 Brilliant (2+ Free) Home Tricks That Work BETTER Than Magic


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Maria Bethânia interpreta a A Flor Encarnada. As fotografias mostram alguns lugares especiais ‘Somewhere I Would Like To Live’: 50 Awesome Places And Homes Around The World That Actually Exist

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Uma boa terça-feira
Saúde. Boas vibes. Paz.

sexta-feira, agosto 26, 2022

Afinal, se calhar, um assunto ainda em aberto

 


Andava há muitos anos a pensar que tinha que encontrar um sítio. Parecia que não poderia começar sem antes ter um sítio para isso. Quando pensava, imaginava uma mesa grande. Uma flor num canto. A mesa num lugar onde eu pudesse estar isolada mas, ao mesmo tempo, não sozinha.

Era como se sem antes ter esse lugar e essa mesa nada pudesse acontecer.

Quando viemos ver esta casa, pensei que talvez esse lugar pudesse ser a antecâmara do que viria a ser o meu quarto. Agora está assim: entra-se e está esse espaço que tem uma janela que dá para o jardim. Na parede em frente da parede em que está essa janela há uma lareira e, por cima, da lareira há uma estante. A meio está a secretária. É uma secretária grande, de nogueira com tampo em pele verde embutida na madeira. Como era usada pelos meus filhos quando eram miúdos, tinha receio que riscassem ou cortassem a pele e, então, mandei fazer um tampo de vidro. Nem se dá por ele mas protege. De um lado da secretária está uma estante alta, escura, de portas de vidro. Tem agora livros de história. Naturalmente nunca abri um único. São do meu marido que, espantosamente, os acha muito interessantes. Do outro lado está a escrivaninha com alçado que nos acompanha desde sempre. É também de nogueira, folheada a raiz de nogueira. A parte de cima é fechada com portas de vidro. É nessas prateleiras que está a velhinha Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Dessa antecâmara passa-se para o quarto que tem uma saída de calor da lareira numa das paredes e um closet que é uma pequena obra de arte de marcenaria. Gosto muito deste meu quarto. Tem canteiros debaixo da janela que está ao lado da minha cama.

Pensava que ali, naquela antecâmara, que é como que um pequeno escritório, poderia estar sossegada, com luz, com conforto, com vista para o jardim. Preparada para receber a inspiração.

Mas, depois de estar arranjado, aquele espaço estava era com tudo a ver com o meu marido, não comigo. Não me vejo ali sentada, a escrever.

Portanto, o assunto, para mim, continuou em aberto.

Depois pensei que talvez pudesse ser na sala de cima. Excepto quando cá estão os miúdos, que ocupam aquele espaço para múltiplas brincadeiras, nomeadamente para brincarem às empresas ou para andarem às lutas, pouco a usamos. Há também uma secretária larga e, ainda, uma mesa. Tem também muita luz e de uma das janelas vê-se o nosso jardim e de outras vê-se o jardim da casa do lado. Poderia ser. 

Mas, não sei qual a razão, parece que não pegou. Não sei porquê nem vale a pena tentar saber. Há coisas que não se explicam.

Até que há dois dias peguei no computador e fui sentar-me na mesa de madeira que está no pátio novo, debaixo da buganvília e do jasmim amarelo. Em cima dessa mesa tenho um pequeno vaso com uma planta muito simples. 

Mal me viu ali, o ursinho felpudo veio deitar-se ao pé de mim, na terra que confina com o pátio e que também está debaixo do telheiro de ramagens verdes.

Depois fui buscar uma coisa que também é fundamental: uma bebida. Por acaso foi um chá frio de lima e gengibre. Mas podia ser qualquer outra, de preferência fresca.

E, assim instalada, abrigada, comecei a escrever. Não tinha pensado antes no que ia escrever. Simplesmente comecei. Uma ideia vaga, muito vaga sobre a personagem principal. 

Mal estava a ganhar embalagem, chegou o meu marido. Sentou-se à mesa e começou na conversa. Passado um bocado, estranhou a minha indiferença. Tive que lhe explicar que, finalmente, ao fim de cinquenta mil anos a tentar descobrir o spot que atrairia a inspiração, o tinha descoberto e mal estava a deixar que ela baixasse, tinha ele chegado para perturbar o momento. Riu-se e disse: 'Ah, então é por isso que estás aqui, camuflada'. Ou seja, para dizer a verdade, não ligou patavina. Disse que era melhor irmos dar uma volta com o cão antes que se fizesse tarte.

Portanto, interrompi e, nesse dia, já não retomei. Impossível. Ou estou imersa ou não vale a pena.

Ontem, ao fim da tarde, repeti o movimento: peguei no computador, num copo de chá frio e lá fui. Retomei. Alterei o último parágrafo pois, ao começar a escrever, a situação sofreu um twist. Fui por aí, por esse caminho que se tinha aberto. Ao pé de mim, o meu amigo cabeludo, sossegadinho, companheirão. Mas, como só começo ao fim da tarde, uma vez mais chegou o meu marido e bye bye silêncio, bye bye concentração, bye bye inspiração.

Hoje não tive tempo. Mas pior que isso, não sei por onde ir. Talvez, quando começar a escrever, o destino daquela pessoa se desenrole. A questão é que a história é mesmo sobre isso: sobre uma pessoa cuja vida se desconhece. E eu tenho que descobrir. Senão descobrir não tenho sobre o que escrever.

Uma outra preocupação. Agora está bom tempo, dá para estar ali na rua. E quando arrefecer? Vou estar encasacada com uma caneca de chá? Não creio. É que outra condição me é indispensável: tenho que estar confortável pois nada me poderá distrair. 

Portanto, resumindo: ainda não sei bem o que vai ser e como vai ser.

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As imagens são algumas das melhores do The 2022 iPhone Photography Award: a  primeira, na categoria Abstract, é de William Ainger, a segunda e a terceira,, na categoria Still Life são respectivamente de Reem Borhan e de Robin Robertis e a última, na categoria Nature é de Charlotte Mason-Mottram

Maria Bethânia interpreta Asa Branca

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Desejo-vos uma boa sexta-feira

Saúde. Partilha. Afecto. Paz.

sábado, junho 25, 2022

A nostalgia está a passar por aqui

 



O tempo avança a passos largos. No outro dia estava a ver os feriados do ano. Pensei que Abril era bom, uns feriadinhos para amenizar a dureza dos dias. Maio seria uma estopada, uma secura, mês longo e chato. Depois viria Junho, um apetite. Mais uns feriadinhos bons. Afinal passaram num instante e daqui a nada Junho terá chegado ao fim e estaremos a entrar na segunda metade do ano. Como foi que, de repente, meio ano praticamente já se foi? Não sei explicar, para mim é mistério.

Estava a ler aquilo dos carros a combustível. 

Bem sei da poluição e de tudo isso. Mas não há carregadores públicos que cheguem, são demorados no carregamento, os carros totalmente eléctricos têm pouca autonomia, os híbridos praticamente nenhuma. Deviam ter um tejadilho e capot em painel solar e uma turbina para aproveitar o vento natural mais o gerado pela movimentação. Isso sim. Viaturas auto-sustentadas. E, se calhar, um dia para lá caminharemos. Costumo dizer que adiro ao cem por cento eléctrico no dia em que dê para a gente tirar a bateria do carro como dantes havia quem tirasse o rádio do carro para não o roubarem. Coisa pequena que se puxasse por uma pega e se levasse, na boa, na ligeireza, para carregar em casa, quase como se carrega a bateria da máquina fotográfica ou o telemóvel. Se tivesse uma autonomia boa e desse para carregar em casa, na boa, rapidinho, e desse para termos no carro uma carregada, de reserva, aí, sim, eu estava nessa. 

Mas estava nisto e a pensar que, com a pressão para abandonar o diesel e a gasolina, qualquer dia, quem queira vender um carro 'à moda antiga' vai receber uma tuta e meia por ele ou, provavelmente, vai acabar por ter que pagar por ele, para o transformarem em sucata. Li que António Costa, para dar tempo a este período de transição, quer aboli-los só lá para 2040. Pensei: 'Vendo bem as coisas uns 18 anos é um período razoável para quem não tem dinheiro para grandes investimentos...'. E, então, de repente, caiu-me a ficha. Fiz as contas. E, não vou esconder, foi com um certo desconforto que me ocorreu que sei lá se estou viva daqui por 18 anos. Ou, se estiver viva, se ainda conduzirei. Pensei que incompreensivelmente, o tempo tem passado tão depressa que, não tarda, começarei a sentir o fim a aproximar-se, começarei a ver de perto as limitações que certamente terei.

Li que a Isabelle Adjani sente a nostalgia de pensar no tempo que lhe resta. Fez-me alguma impressão. Era tão jovem e bonita, ela. Agora pensa nos anos de vida que lhe restam. O tempo tem estado a passar também por ela.

Ontem passei ao lado de uma urbanização onde morava um colega de longa data. Daquelas pessoas que nunca se metia em sarilhos, sempre boa onda, sempre na boa com toda a gente. Podiam chover raios e coriscos que nunca choviam para o lado dele, para ele sempre bom tempo. Toda a gente o respeitava e gostava dele. Ansiava pela reforma mas trabalhou dedicadamente até ao último dia. Sempre jovial. Dizia-se que o bom feitio o fazia manter-se jovem. Quando se reformou, manteve a ligação e a amizade com os colegas. Semanalmente ia almoçar com o pessoal. Tinha finalmente tempo para fazer caminhadas, para ir ao ginásio. Estava mais magro, estava optimista como sempre  o conheci. Tinha planos, tinha mais tempo para a família. Até que um dia, pouco tempo depois, nem sei se um ano, uma colega me ligou a perguntar se eu já sabia. E eu não sabia nem queria acreditar. Ainda hoje me custa a acreditar que tenha partido assim tão abruptamente. Quando passo ali, penso que era ali que ele vivia, um sítio com muitos espaços verdes, coisa que muito lhe agradava e por onde dava belas caminhadas.

No outro dia, foi outra. 

Um colega muito maluco, histriónico, bon vivant, viajado, namoradeiro, uma força da natureza. Vive numa casa grande, antiga, um solar. Dantes ali era a periferia da cidade. Agora está dentro da cidade. Tem uma outra casa nas Beiras, uma grande casa de pedra no meio de um grande olival. Reconstruiu-a, modernizou-a. Apesar de ser como é, é também um homem de família. Filhos, noras, netos. Sempre em combinações com a mulher, ou eram obras em casa, ou coisas com os filhos ou com os netos, ou eram idas à casa de pedra, ou coisas com os cunhados, ou projectos na câmara. No meio da maior maluqueira -- anedotas, lembranças brejeiras das suas vivências -- atendia a mulher e, mudando rapidamente de registo, entrava naquelas inúmeras combinações.

Deixou de trabalhar antes da idade da reforma, já tinha o que queria, agora queria era gozar a vida. Pois. No outro dia, ligaram-me. Já sabia que lhe tinha morrido a mulher? Fiquei siderada. Lembrei-me logo de a ver com ele à hora de almoço. Ele muito bem comportado ao pé dela. E agora isto. Dizem que ela estava muito bem e, do nada, de repente, tinha-se apagado. Ele nem tinha dado por isso. Não o imagino sozinho. Aquele permanente vaivém. Como será a vida dele doravante sem a sua companheira?

Ninguém sabe. Mas, à medida que o tempo passa, mais nos aproximamos do fim.

Lembro-me do dia em que, tendo eu uns trinta e poucos, o que era o presidente da empresa foi ao meu gabinete despedir-se. Numa daquelas reviravoltas, o conselho de administração tinha sido mudado. Não se importava, ele. Tinha recebido uma avultada indemnização, tinha com fartura para viver até à reforma, estava contente. Naquela altura os tempos eram conturbados. Os ventos políticos sopravam num sentido diferente ao dele (e ao meu), a gestão do Grupo estava a ser varrida e uma onda de yuppies convencidos e broncos começava a chegar a todo o lado. Ele partia com alívio, não suportaria aquilo. Eu não via como poderia suportar. Abraçámo-nos e eu disse: 'Como o invejo, quem me dera estar no seu lugar'. Ele disse-me: 'Oh menina, não diga isso, não me inveje, não vê que tem uma vida inteira pela frente e eu não...?'

Não me esqueço disso. 

O tempo passa e tanta gente vai também ficando para trás. 

Enquanto isso, vou respirando o ar puro desta terra em que o céu me envolve, onde a luz torna douradas as árvores ao fim da tarde, em que os pássaros têm cores e cantos maravilhosos. E a ver se este sábado consigo voltar a pegar num livro.

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Jesuíta Barbosa (o Jove do Pantanal) recita "Borboletas" de Manoel de Barros 


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Pinturas de Kuroda Seiki na companhia de Maria Bethânia que interpreta Amor de Índio 

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Desejo-vos um dia bom
Saúde. Poesia, Sabedoria. Paz.

quinta-feira, abril 28, 2022

Varrer, podar, fotografar



Acabei de fazer zapping por todos os canais portugueses. Nas telenovelas portuguesas nem paro, não tenho pachorra. Em quase todos os demais vi gente com um certo ar de maluquice. Cada um fala de sua coisa, desde cantigas, a economia ou política, mas alguns estão com olhos demasiado abertos, outros falam como se quisessem convencer-nos que são inteligentes e há um que tem um cabelão de impor respeito, um ceo de uma coisa com nome curioso. Não sei porquê mas tenho para mim que saíram de algum ninho de cucos. 

Não sei se por isso, não consigo estabilizar em nenhum. Não estou com cabeça para tanto. 

Estou é a pensar se a mangueira que trouxemos encaixará bem na torneira que está ali do outro lado. É daquelas que parece uma serpentina e não sei se estica até onde quero. Em vez de regar os vasos com regador, seria bom regar com mangueira. Como me fio sempre na virgem, encho o regador até acima a fim de minimizar o número de idas e vindas. Mas o regador cheio leva dez litros. Ora andar cá e lá com dez quilos nas mãos, às vezes deriva para uma tendinite no ombro sacrificado. O meu marido hoje, a propósito de ser difícil darmos cabo de tanto mato, disse: 'Sabes o que é? Se calhar já não temos idade para tratarmos de tudo sem ajuda'. Fiquei a olhar. Temos tanta como antes. Não é uma questão de idade ou não idade. 

Não quero é que me arranquem os orégãos ou o rosmaninho ou o alecrim e já sei que se contratamos alguém para arrancar o mato tenho que pôr o coração ao alto pois já sei que vai tudo à frente. Conversa mais recorrente... Todos os anos por esta altura temos esta divergência.

Enfim.

Também tenho que arranjar adubo para citrinos porque as laranjeiras aqui, in heaven, também estão bem precisadas. O limoeiro já se foi e as laranjeiras estão desvitaminadas, fraquinhas.

As nêsperas ´que já estão razoáveis. Apanhei umas poucas, ainda não demasiadamente douradinhas mas já comestíveis. Perguntei ao meu marido se queria e respondeu: 'Devem estar boas... Pela cor... Come-as tu se achas que já estão boas'. É um céptico.

Certo, certo é que varri bastantes folhas, caruma, bolotas. É das coisas que gosto francamente de fazer: varrer. 

O balde grande com rodas agora está com lenha e, por isso, tive que pôr o que apanhava num balde simples, dos das esfregonas. Não rende nada. Tive que fazer não sei quantos trajectos para o despejar. Agora estou aqui a escrever e sinto as mãos um pouco doridas. Alma de camponesa, maozinhas de princesa (vá, Segismundo, ria-se, ria-se...)

Por vezes o acto de varrer é, sobretudo, uma animada coreografia entre a vassoura e o urso peludo que acha que a vassoura é um ser de outro planeta que está ali só para o desafiar. Ladra, salta, quer apanhá-la, finca-lhe. Uma luta.

Para ele isto é o seu elemento. Anda à solta, à larga, à chuva. Claro que depois chega a casa, molha o chão, molha os tapetes e, pior, molha os sofás. Aliás, o pior não é isso, o pior é outra coisa: o pior é que não consigo zangar-me com ele. 

Tenho um coração de manteiga, é o que é.

Supostamente estamos de férias. Mas as férias são bem tão raro que as aproveitamos para fazer tudo o que nos outros dias não conseguimos fazer. Portanto, não descansamos. 

Hoje, a seguir ao almoço, repimpados naquele sofá em que não chego com os pés ao chão mas que se reclina e se transforma numa coisa que me deixa a dormir, pimbas, deixei-me mesmo dormir. 

Mas logo, logo, logo a seguir, tocou o telefone e, ao meu lado, uma conversa sobre os grandes problemas existenciais (estou a gozar... eram problemas bem materiais) despertou-me. Ainda tentei voltar a pegar no sono mas outro tema da máxima relevância assomou à minha mente: onde estaria o podão pequeno, aquele jeitosinho, para ir desbastar os rebentos ladrões das azinheiras? 

E não descansei enquanto não me levantei para ir à procura. Não encontrei. 

O pior é que, ao estar na despensa à procura, rocei com o cabo de um podão gigante numa caixa de ferramentas que caiu ao chão e se entornou. Ora é sabido que entornar-se uma caixa de ferramentas é pior que entornar azeite: não se dá apanhado. Apanhei de arrastão parafusos, pregos, roscas, buchas e toda a espécie de pequenos objectos... e tudo lá para dentro. Nem quero pensar quando o meu marido vir aquilo. É que acho que, de manhã, quando estava a chover e não podia estar a dar cabo do tojo e das sílvias (que é o que ele chama às silvas), tinha estado a arrumar a dita caixa. Mas deve tê-la deixado meio de fora da prateleira, em desequilíbrio. Digo eu (para me desculpar por tê-la atirado ao chão).

Resumindo: andei a podar azinheiras com um daqueles podões que têm umas pegas telescópicas. Não dá jeito nenhum. Mas, enfim, como gosto de podar, andei de gosto. 

Já contei -- não contei? -- que, para mim, podar árvores é como aparar cabelo, coisa que, com a minha veia de cabeleireira frustrada, estou sempre pronta para passar à prática.

E é isto. Nada mais a declarar. Pouca televisão, poucas notícias, tentando não falar do que me atormenta, tentando não ir espreitar os mails, tentando preparar-me para ir dormir. Férias. In heaven.

Antes de me ir, partilho apenas o que tenho estado a ouvir. A voz da Bethânia pega bem nas palavras do Nandinho.

"Meu coração não aprendeu nada" 

| Fernando Pessoa | Maria Bethânia


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Um dia feliz (na medida do possível, claro)
Esperança. Força. Saúde. Paz.

sábado, fevereiro 05, 2022

Os azulejos portugueses da cozinha de Gwyneth Paltrow

 



Quando eu era bem mais nova gostava das casas tradicionais, perto do estilo dito português suave. Varandas, varandins, terraços, telheiros e, por dentro, as divisões numa disposição tradicional.

Por essa altura, visitei pela primeira vez uma casa de arquitectura moderna. Um amigo convidou-me para ir conhecer a sua segunda casa, uma grande casa no Estoril. Falava dessa casa como sendo a casa de praia e a casa do golf. Tinha sido desenhada por um arquitecto amigo e decorada por uma vizinha italiana com quem tinha uma amizade colorida, segundo ele uma bela mulher que apanhava banhos de sol nua, apenas com um chapéu de palha de abas bem largas.

Era uma casa que parecia ser quase toda aberta, de linhas direitas, em que tudo o que dava para o jardim era de vidro. 

Quando entrei, olhei e não encontrei aqueles elementos que associava ao aconchego, ao conforto, os recantos onde se pode ter um cadeirão, um quadro por cima, um candeeiro de pé alto, uma mesinha de apoio. Ali quase não havia paredes. Também estava habituada a pinturas com belas molduras, por vezes um passe-partout, conjuntos de quadros. Ali, que me lembre, só vi um único quadro. Havia uma mesa comprida e, encostado à parede, um móvel muito comprido. Essa parede estava pintada cor de tijolo. Por cima do móvel, uma pintura moderna, abstracta, gigante, uma coisa insólita de tão gigante.

Havia um conjunto de sofás gigantes, claros, dispostos em U, virados para o grande pano de vidro que dava para o jardim. Não me lembro de lá ver almofadas que era uma coisa que me parecia, e ainda parece, essencial para que as pessoas se acolham e encostem e aninhem. Não me lembro de tapetes, não me lembro de móveis com bibelots. Lembro-me, sim, numa zona estreita de parede, junto a mais uma vidraça, um escultura de pedra. 

Ele orgulhoso da sua casa e eu apenas sentindo estranheza. Não vim de lá convencida. Mais ou menos por essa altura, talvez uns dois ou três anos depois, depois de muito procurarmos descobrimos a nossa casa in heaven, uma casa que nada tem a ver com o harmonioso e tradicional estilo Raul Lino. Esta casa era uma casa acrescentada em relação a um núcleo antigo, várias vezes centenário. Toda ela atípica. E, no entanto, foi atracção imediata de todos nós, os quatro. Um desafio para a mobilar mas tão única, tão especial, que a minha mente de imediato se abriu a novas ideias.

Esta casa em que agora vivo, perto da cidade, é um misto. Mais tradicional que moderna mas, ainda assim, com espaços amplos, abertos, comunicantes. Chegámos a hesitar sobre uma outra, moderníssima, escultural, uma obra de arte. Mas também quase sem paredes, certamente também uma aventura para mobilar e decorar. Felizmente, prevaleceu esta.

Quando passeamos pelas vizinhanças, um dos meninos, o meu pimentinha mais crescido, passa-se com as casas de linhas direitas, estilo minimalista, grandes planos lisos. Diz que é assim que gostará que seja a sua casa, um dia que tenha uma casa sua. Percebo-o. Imagino-o adulto, divertido, culto, sempre com ideias e vontade de as alcançar -- e numa casa assim. Não o imagino com moveizinhos, quadrinhos, almofadinhas. Não. Há-de viver numa casa sofisticada mas isenta de rodriguinhos. Claro que pode ter que fazer concessões à sua companheira mas, se bem o conheço, com a personalidade dominante que tem, há-de convencê-la a aceitar a simplicidade despojada e elegante que ele aprecia. 

Os outros meninos ainda não têm ideias definidas sobre isso, pelo menos que eu me tenha apercebido.

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Em dias complicados, e se o de hoje o foi, chego à noite à sala e só me apetece ver vídeos que não têm nada a ver, que não afloram problemas, nem ninguém fala de crises, depressões, fracassos ou antevisões negras para o futuro.

Não sou grande admiradora de Gwyneth Paltrow. Vi-a no Shakespeare in Love e gostei. -- mas não me lembro de mais. E agora deu em comerciante, por vezes de produtos e conceitos meio bizarros. Goop. As velas com cheiro a vagina e os artefactos sexuais curiosos e envoltos numa prosa meio filosófica são meros exemplos.

Mas hoje fui à boleia do algoritmo do youtube e aproveitei que ela mostrou a casa para a ver. Não acho extraordinária mas é interessante. E tem aqueles azulejos simples, bonitos, portugueses. E só por isso já acho que vale a pena partilhá-la convosco.

Inside Gwyneth Paltrow's Tranquil Family Home 

| Open Door | Architectural Digest


Já agora, também um cheirinho do Shakspeare in love


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Desejo-vos um sábado feliz
Saúde. Boas notícias. Boa sorte. Alegria.

sexta-feira, janeiro 28, 2022

Just in Time?
Ou Just in Case?
Ou... o quê?

 


Em tempos aprendi alguns conceitos e algumas técnicas que tinham cá chegado, luzindo e reluzindo com as cores da eficiência japonesa. O JIT, Just in Time, foi um deles. Não haver stock. Reduzir o capital empatado em stocks. Todas as empresas que lidavam com cadeias de abastecimento ou sistemas produtivos se mobilizaram para serem tão boas como as melhores. Os números não enganavam. Ter armazéns cheios de stocks já era. Coisa do passado. O que era preciso deveria chegar quase na hora, quase em cima do acontecimento.

Uma vez fui visitar uma fábrica de automóveis em Espanha. Era a fábrica europeia de uma grande marca mundial. Uma fábrica grande, a perder de vista. Praticamente sem pessoas. Um orgulho para a gestão da fábrica. Pessoas quase que só no controlo de qualidade, na recta final da linha de produção, o carro já praticamente pronto. A montante só robots. Tudo robotizado. E carrinhos robotizados atravessavam a fábrica para levar as peças do armazém para a linha de produção. O armazém robotizado praticamente apenas tinha as necessidades do dia. Vá: da semana. Tudo na base do just in Time. Os diferentes fornecedores abasteciam a moderna fábrica de acordo com sistemas chamados MRP, Material Requirement Planning. Tudo calculado ao dia.

Isto obviamente passou-se no século passado, numa era em que havia yuppies, executivos deslumbrados consigo próprios.

Se calhar fiz parte desse grupo mas, felizmente, nunca falei como eles, nunca me vesti como eles, nunca me deslumbrei com o que a eles os deslumbrava.

Mas, nessa vez, cheguei lá de limousine. Éramos uns cinco ou seis, nem sei bem. Para lá chegarmos, em vez de irmos em carros separados, alguém achou que o ideal seria arranjar-nos uma limousine com chauffeur. Nada de mais. Mas o carro era aparatoso, um luxo.

Hoje a indústria automóvel é daquelas que se torcem e retorcem por não terem stocks e por, de vez em quando, terem que parar as suas linhas de produção. Falta-lhes sobretudo os chips e outros componentes vindos de longe, de onde também muita coisa escasseia.

Mas se fosse apenas a indústria automóvel a debater-se com a escassez de materiais...

Querem crer que só agora, ao colocar aqui a fotografia é que vi que o prato está deitado quando deveria estar ao alto...?
Ele há coisas....

De vez em quando a malta apanha uns sustos e percebe que os modelos estratificados em que todos dependem demasiado uns dos outros apresenta muitas vulnerabilidades. E não apenas de outros mas de outros noutros países, sujeitos a dificuldades, prioridades ou necessidades que não necessariamente as mesmas que nós.

Os consultores que vendem a gestão de risco e os departamentos das empresas que se ocupam disso bem identificam os pontos de fragilidade e constroem planos de contingência. Tudo bonito para enfeitar power points. Quando os motoristas fizeram greve e as estações de serviço ficaram sem combustíveis e toda a gente, em especial nas empresas, ficou a roer os dedos a ver a vida a andar para trás, poderia ter-se aprendido alguma coisa. Mas não. Não se aprende nada. Nem aqui nem em lado nenhum. Os modelos de eficiência aplicados cegamente, ensinados nos bancos da escola como se fossem axiomas (inquestionáveis, portanto), moldaram a sociedade de cabo a raso. 

Nem sei se isto da pandemia nos mudou alguma coisa de verdade ou se foi apenas uma abanão de nada, um abanico. 

Era bom que a sociedade se mobilizasse para discutir algumas coisas, para colocar algumas ortodoxias e dados adquiridos em perspectiva. Não sei como se pode fazer isto. Era bom que voltasse a haver tertúlias, locais de discussão, fóruns abertos em que se equacionassem novas maneiras de estar na vida (e nos negócios), maneiras mais sustentáveis, mais equilibradas. Como sociedade civil temos que ser mais activos, mais participativos. Não podemos andar, passivamente, a reboque do que os 'outros' decidem por nós. Parafraseando JFK, não perguntemos o que os outros podem fazer por nós mas, antes, o que nós podemos fazer pelos outros.

Mas, em concreto no que se refere à escassez de alguns bens em alguns sectores, o vídeo que aqui partilho convosco explica o que se passa.

The global supply chain seems to be in a perpetual state of crisis. Whether its groceries, petrol or micro-chips for electric vehicles, everything just keeps running out. But why does it keep happening?

The crux of the matter lies in the way our global supply chain works, and how companies have come to rely on a unique system of efficiency, dubbed 'just in time', which developed in Japan in the late 1960s and early 70s. Josh Toussaint-Strauss explores how the prevalence of just in time supply systems are contributing to a global supply chain crisis

Just in time: why we keep running out of everything 


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As fotografias foram feitas em casa, in heaven, e fazem-se acompanhar por Maria Bethânia e Omara Portuondo interpretando Gente Humilde

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E queiram descer para uma visita a Mr. Valupi que explica porque é que "Louçã também vai a votos neste domingo"

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E a si que está aí desse lado desejo uma feliz sexta-feira

sábado, janeiro 01, 2022

2022

 


Mal dei pelo ano que acabou. Os dias sucederam-se a um ritmo tal que, a meu ver, mal deixaram rasto. 

O que aconteceu a nível político, vendo bem, foram coisas passageiras, pouco marcantes. Os tempos são de futilidade e quase todos os partidos vão cedendo ao facilitismo. As redes sociais vão triturando as mentalidades e, aos poucos, vai-se pensando e agindo em função das reacções que aí se vão manifestando. É um mundo que não me interessa. 

A política interessa-me mas é a política no osso, sem mas-mas-mas, sem rodriguinhos, sem palavras de efeito. No osso. no campo dos princípios e das boas práticas. O diz-que-diz-que não me diz nada. Rejo-me pelo bíblico princípio de que 'pelos frutos os conhecemos'. 

A nível profissional têm sido, para mim, tempos esgotantes. Ainda há pouco recebi uma mensagem de alguém que tem partilhado este caminho a desejar-me que o próximo seja menos cansativo. Tem sido uma luta. Nunca antes tinha sido tão permanentemente desafiada. Está muito na moda dizer-se que 'crescemos' com as dificuldades. Eu não sei se cresci. Não o colocaria nesses termos. Talvez me tenha tornado mais dura, mais intransigente, mais impaciente. Mas, ao mesmo tempo, mais humilde. Tantas vezes penso que estou certa e, afinal, a realidade vem demonstrar que só interessa estar certa se o estiver no momento certo, no lugar certo. Mas, se calhar, daqui por algum tempo, tudo isto também tenha perdido relevância. 

Mas a nível pessoal aconteceu-me uma coisa muito estranha e dessa eu não posso esquecer-me. Contei-o na altura e já falei várias outras vezes.

Um dia, ao início da tarde, num check-up de rotina, por acaso no dia em que levei a vacina, foram-me detectadas alterações cardíacas relevantes. Ao repetir os exames, ao início da noite, a situação tinha-se agravado consideravelmente. Os médicos começaram a andar num rodopio e vi-os a fazerem chamadas com os meus exames na mão. E, sem que eu me sentisse mal ou percebesse o que se passava, foi accionado o protocolo reservado a estas situações. Recomendaram que chamasse o meu marido (que estava lá fora, porque não eram permitidos acompanhantes) para eu o avisar e para me despedir dele e, de imediato, apareceu a gente do INEM que me examinou e me preparou para eu seguir viagem para o hospital. Eu incrédula com aquilo, a dizer que não me sentia mal, na esperança que tudo não passasse de um absurdo equívoco. É certo que estava com a tensão a rasar os 20 (19,8 de máxima, se a memória me não falha) e é certo que me mostraram os exames que, segundo me explicaram, em poucas horas se tinham alterado consideravelmente. Se ao início da tarde as coisas estavam mal, naquela altura estavam deveras graves -- explicaram-me. E, sem que eu pudesse digerir o que estava a acontecer, já ia numa ambulância com a luz azul a banhar a estrada, a alta velocidade. E ao chegar ao hospital, fui posta numa cadeira de rodas e levada para a sala de reanimação. Nem sei tudo o que me fizeram, nem o que me perguntaram nem o que fui dizendo. A todo o momento esperava que me dissessem que afinal estava tudo bem. Mas não. O meu filho e a minha filha apareceram e eu queria tranquilizá-los mas não sabia como pois nem percebia o que estava a passar-se. E, para minha ainda maior surpresa, tive que lá ficar, em observação. E foi uma noite dramática, do pior que poderia imaginar.

Quando li o que estava escrito na documentação da clínica, enfarte agudo de miocárdio, nem queria acreditar. 

A seguir, foram exames e mais exames. Parece que não terá sido exactamente um enfarte agudo de miocárdio. As opiniões não são consensuais. Acidente isquémico, inflamação do miocárdio - qualquer coisa. Nem quero saber. Não me interessa. Os cardiologistas não descartam que tenha sido da vacina mas também dizem que pode ter sido por qualquer outra coisa. Sei é que ficaram sequelas para o resto da vida.

Mas o que retiro daqui é que, na volta, se não tem sido a coincidência extraordinária de fazer um electrocardiograma no justo momento em que a coisa estava a dar-se, ainda corria o risco de ir desta para melhor... sem dar por isso. E isso dá-me uma perspectiva algo perturbadora do acaso que é a vida. Mas, curiosamente, no bom sentido. 

A possibilidade de a morte ser assim -- uma coisa inesperada, indolor, rodeada de estupefacção -- não me desagrada. 

Mas deixa-me ao mesmo tempo na dúvida: será que subestimo os sintomas? Será que deveria ser mais cuidadosa e atenta aos sinais do corpo? Nunca ligo patavina e isso pode não ser a melhor coisa.

Não faço ideia. A verdade é que, à parte agora ter que tomar dois comprimidos por dia e ter que fazer alguns exames de vez em quando, continuo a agir da mesma forma. Não fiquei medrosa nem inquieta. O meu marido de vez em quando pergunta-me se tenho visto a pressão arterial. Invariavelmente a resposta é não. Esqueço-me. 

Tenho para mim uma coisa que me é muito clara: o que for, soará. Não quero fugir ao meu destino. Quero ajudar a fazê-lo, é certo, mas apenas no que me for natural. Ter medo de morrer para mim é sinónimo de ter medo de existir. Por isso, não tenho medo. Gosto de existir, sem medos, e aceito o que a existência me reservar. 

E sinto-me é agradecida, mas mesmo muito agradecida, pelas felizes coincidências que, na volta, me têm salvo a vida. 

Por isso, se alguma coisa posso concluir é que bom, mas bom mesmo, é a gente viver cada bocadinho da melhor maneira possível. Nunca se sabe quando é que isto vai acabar. Portanto, é de vivermos em paz connosco e com os outros, na boa, agradecidos pelo que temos, não o desperdiçando com situações e pessoas que não interessam.

Está quase a acabar este ano. Não se sabe o que aí virá. Os tempos são de areias movediças.

Mas se for assim, um dia de cada vez, e nós conscientes do milagre que é estarmos vivos e da responsabilidade que isso comporta, amigos daqueles a quem queremos bem, exigentes para connosco e com os outros, em especial com quem nos governa -- que se zele para que cada geração deixe o planeta melhor do que o recebeu, que se zele para que cada geração deixe uma sociedade mais justa, mais inclusiva e feliz do que a que recebeu -- então, estaremos bem.

E, quanto ao resto, bola para a frente porque para a frente é que é caminho.

Feliz Ano Novo. Tudo de bom para vocês. Felicidades.


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Pinturas de Wendy Edelson ao som de Tocando para a frente na voz de Maria Bethânia

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Desejo-vos um feliz 1º dia do ano 
-- e que sejam também felizes todos os dias seguintes