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domingo, julho 04, 2021

Passou um mês

 



Dia muito agradável, em especial pela tarde. Parte da família esteve cá de visita e também um casal que, não sendo biologicamente da família, é, na verdade, como se fosse. Já deviam ter vindo cá há muito tempo mas, pandemia oblige, ainda não se tinha proporcionado. 

Hoje calhou e foi um misto de visita de amigos e de visita de médico. Vou descobrindo coisas sobre mim e o mais aborrecido é que não têm sido boas notícias. Até ver, nada de cair para o lado mas, também, nada que alegre. Mas, enquanto houver estrada para andar, a gente vai continuar -- e aprendendo a viver com as circunstâncias que nos calharam na rifa. Não é bom? Paciência. É o que é.

Há um lado perverso nisto: enquanto a gente vive na ignorância, não pensa, não se preocupa. Quando se conhece e as coisas têm um nome, aí, as coisas ganham outros contornos.

Por exemplo, tenho para aqui estado a ler artigos e a ver vídeos sobre o que antes desconhecia e que, afinal, tem tanto a ver comigo. 

Tirando isso, fiquei contente por terem gostado da casa. A minha menininha linda andou a fazer as honras, toda contente por andar a mostrar a casa. Desde o primeiro dia em que qualquer deles cá veio sentiram esta casa como um ponto de reunião. Não hei-de esquecer-me do menino que corria de divisão em divisão, rindo, e, mostrando a incredibilidade, exclamava: Não admito! Não admito isto! até que a mãe descodificou: queres dizer 'não acredito'? E ele, nem aí, acho que quer dizer 'não acredito'

Fico muito feliz por perceber que os meus meninos gostam muito de cá estar. Aliás, acho que toda a gente (os poucos que ainda cá vieram) gostam desta casa tão luminosa e acolhedora.

Hoje não reguei os vasinhos mas acho que também não devem precisar pois de tarde choveu uma chuvinha miúda. Felizmente depois levantou e pudemos estar cá fora. Os passarinhos, habituados à nossa pacificidade, não se afastam e cantam de dar gosto.

À noite pus a máquina a lavar. Agora, enquanto escrevia, senti qualquer coisa a resvalar na cabeça. Era uma das florzinhas que a minha menina me ofereceu e que prendi no alto da cabeça. 

Escrevo sobre estas minhas coisas, coisas de nada, porque não encontro na actualidade temas que me pareçam especiais. Entre variantes deltas, números crescentes e a especulação sobre o acidente que vitimou um trabalhador que atravessava a autoestrada, pouco mais há.

Faz exactamente um mês que fui transportada de ambulância de uma clínica para um hospital, ficando lá em observação até à hora de almoço do dia seguinte. Foi uma experiência que não quero esquecer. Estive lá menos de vinte quatro horas mas todas as vinte e quatro horas de todos os dias muitas outras pessoas ali estão, sofrendo, algumas na ignorância do seu estado, outras muito conscientes e ainda mais sofredoras. Poderia falar da falta de espaço, da falta de privacidade, e tudo isso seria verdadeiro e crítico. Poderia falar dos cheiros, poderia falar dos gritos e dos choros, e tudo isso seria verdadeiro.

Mas prefiro centrar-me num outro aspecto: doentes com patologias do foro mental deveriam estar em salas diferentes. Estarem, maca a maca, com doentes 'normais', desestabiliza-os e os seus comportamentos desestabilizam os 'normais'. E claro que ponham aspas com fartura em torno dos normais porque, a bem verdade, ninguém ali está muito 'normal'. De tudo o que ali passei e de tudo o que assisti, o que mais me perturbou foi a jovem suicida. Deixou-me mesmo muito perturbada. Tive muita vontade de sair da minha maca e ir falar com ela. Mas ela estava rodeada de enfermeiros, não faria sentido ir eu para ali armada em expert. Que será feito dela? E que impressão me fez o ar 'normal' dela quando saíu, com alta. Como poderia parecer tão 'normal', tendo atentado contra a sua vida poucas horas antes, tendo hábitos suicidas há tanto tempo, segundo ela própria disse? Como disfarçava bem o que lhe ia na alma... 

O jovem que falava compulsivamente, ameaçando médicos e enfermeiros, também me deixou incomodada. E a jovem mulher, aspecto bem comportado, muito compenetradinha, que apareceu pela mão do jovem marido que não a largava, ali onde não eram permitidas visitas ou acompanhantes, também me fez muita impressão. O rapaz não tirava os olhos dela, ar preocupado. E ela sorrindo, tentando parecer 'normal'. Ou a senhora que sofria maus tratos do filho, ar tão envergonhado, cabeça baixa enfiada entre os ombros subidos, mas, não tendo mais para onde ir, estava era preocupada por ele não atender o telefone, não aparecer a saber dela ou a buscá-la. 

Tantas tragédias ali, lado a lado, partilhando choros e gritos, num espaço tão confinado, numa intimidade forçada com desconhecidos.

Passou um mês. Talvez daqui por algum tempo eu já esteja noutra e tudo isto me pareça coisa remota. Mas não quero esquecer-me. A área da Saúde tem que ser amparada. Não é apenas desgastante para quem lá trabalha: é também muito mau para quem se vê atirado para uma situação destas. Poderá dizer-se que conhecer esta realidade nos faz bem, nos dá a conhecer o lado mais frágil da nossa existência. Mas, independentemente de nos fazer bem ou mal, há a situação vulnerável de quando ali estamos -- e, por uma questão de dignidade e de direito ao respeito, deveríamos estar noutras circunstâncias, não naquelas.

O tempo passa assim, quase sem a gente dar por ele. Passou um mês. Estou aqui na minha sala e a esta hora, outros homens e mulheres estão lá, macas coladas umas às outras, ouvindo os choros e os gritos, partilhando sofrimento e medo.

Só desejo que não me veja de novo em tal situação. Tal como muito sinceramente desejo que nenhum dos que me são queridos nem nenhum de vocês aí desse lado se vejam um dia numa situação daquelas. É sempre melhor sentirmo-nos acompanhados, tranquilos, protegidos, seguros, a nossa privacidade respeitada e, não menos importante, podermos ter algum dos nossos por perto. 

Mas, enfim, bola para a frente. Há estrada para andar...? Há ventos e mar? Então, bora lá, malta, vamos continuar.


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Pinturas de Henri Rousseau ao som de 'A gente vai continuar' numa interpretação de Jorge Palma com Sérgio Godinho

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Bom. Para isto não ser pesado para além da conta, termino com um vídeo que mostra uma casa  com muita vida e muitas histórias lá dentro

Apê de Elisa Lucinda reúne artesanato, poesia, teatro e histórias encantadoras 

| Pode Entrar


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Desejo-vos um feliz dia de domingo

sexta-feira, janeiro 08, 2021

As sete partidas da vida

 



Voltei ao escritório. Tinham-me dito que se concentravam agora por lá uns quantos que, por aversão à mudança ou receio do que lhes vai acontecer, se entretinham a armar confusão, lançando boatos e descrença. Por isso, achei que tinha que lá ir para ver como reagiam ao ver-me, para ver se os tinham no sítio e viriam dizer-me alguma coisa. Nada. Surpreendidos por me verem, sorriram, desejaram-me bom ano, e, quando lhes perguntei como estavam e como estavam as coisas a ir, disseram que 'tudo bem'. É sempre assim: fanfarrões destes não só não os têm no sítio como os devem ter pequeninos e rosados como little, little pink marshmello.

Só não digo o que vou fazer para a semana não vá algum Leitor infiltrado dar com a língua nos dentes, deixando-os de sobreaviso. Mas, aí, indo à toca do lobo, sempre quero ver.

Mas, então, ao ir e ao vir, circulei pela nossa belle Lisbonne, por alguns dos lugares mais lindos de Lisboa, la magnifique. Mas, infelizmente, ao contrário do que gosto mais, ir a ouvir jazz, janela aberta, devagar, quer ao ir quer ao vir, vinha com telefonemas complicados que me impediram de me entregar ao momento. Acho muito mal empregue o tempo -- que gostava de usar a sentir a luz e a beleza da cidade -- quando não consigo prestar-lhe atenção, concentrada que vou ao telefone.

Pensei: quando lá chegar, abro a janela e fico a olhar lá para fora, vista melhor é difícil haver. Mas ainda ia no corredor e já tinha à minha espera as três pessoas com quem tinha combinado lá nos encontrarmos. Portanto, vieram comigo até ao gabinete, abri a janela, coloquei a capa, a carteira e o telemóvel em cima da secretária e, até que saí, não consegui estar um minuto sozinha. De cada vez que recebia um telefonema, abri de par em par as janelas e pus-me a falar sentindo o ar da rua mas os telefonemas eram digamos que absorventes e não consegui desfrutar a paisagem. Outro desperdício.

Entretanto, confirmei aquilo que já constatei mil vezes antes: a minha produtividade é infinitamente superior quando estou em casa. Mas, em termos sociais e humanos, não se compara. Havendo um vazio, os mais ávidos de protagonismo, ocupam-no e o resultado não se coaduna com o que se pretende. Claro que os que estão ali são uma insignificante e ínfima minoria da totalidade de pessoas que trabalha na empresa mas, estando juntos, conseguem armar confusão e transmiti-la para os que estão noutros locais. Mas há também o lado humano, aquilo das pessoas virem ter comigo e contarem-me o que as preocupa a nível pessoal. Parece que estão naquele ponto em que rebentarão se não tiverem com quem falar. Uma colega falou da sua mãe, a situação em que ficou na sequência de uma queda. São daqueles dramas pessoais que se abatem na vida das famílias, que as atinge profundamente, deixando-as sem saber o que fazer, impotentes, sentindo que não poderão, de manheira nenhuma, estar à altura das necessidades, receando pelo destino dos seus mais velhos. Falava tentando conter as lágrimas. Com máscara, apenas os olhos lacrimosos à vista. Isto, de me procurarem para falar da sua vida, não acontece quando estamos fisicamente longe uns dos outros. Quando estamos remotos, telefona-se a outra pessoa ou marca-se uma conversa se houver algumas coisas de trabalho que o justifiquem.

Entretanto, enquanto escrevo, estou a ver o interessante documentário sobre Tomaz de Figueiredo feito pela neta. Tão íntimo, tão tocante. A vida de uma pessoa olhada, muitos anos depois, por uma neta que não o conheceu ou por uma das filhas que, na altura, não o compreendeu mas que, agora, muitos anos volvidos, acha que, se fosse hoje, com a vida que entretanto viveu e que a fez amadurecer, talvez compreendesse. Fiquei a pensar: quanto mais amadurecemos, mais tolerantes nos tornamos. Sabemos as mil cambiantes da vida, sabemos que o que está à vista é um pequeno nada face ao que calamos, sabemos que há mil razões que explicam comportamentos que, quando vistos superficialmente, nos parecem estranhos. Em contrapartida, reconhecemos à légua aquelas situações que não vão dar a nada e que mais vale cortar pela raiz. Mudamos, aprendemos.

No outro dia, vi um programa em que Lesley Stahl entrevistava pessoas em holograma, algumas das quais já mortas. Coisas estranhas. Um homem de idade, ainda vivo, assistia à entrevista com o seu holograma em mais novo. Cantavam ao mesmo tempo. E eu, vendo aquilo, pensei que não queria ver era mais nada. Do pouco que consegui ver, percebi que há uma empresa que entrevista pessoas para depois as fazer em holograma de corpo inteiro e, mais tarde, a pedido, pôr os mortos a fazerem de vivos ou os velhos a fazerem de novos. Estranhíssimo. Para quê? Queremos um mundo habitado por hologramas? Qual a substância de um holograma?

Mas atravessamos tempos disparatados, vamo-nos acomodando à estranheza que, antes, nos causaria repulsa. 

Tudo muda. As circunstâncias vão derrapando, nós derrapamos em cima delas.

Enfim. Adiante.

Havia um tempo em que eu dizia que era urbana. Sempre gostei de campo e sempre tive vontade de ter uma casa no campo mas achava que viver mesmo tinha que ser na cidade, incógnita no meio de multidões. A grande cidade era essa a minha zona de conforto. O campo era uma evasão. Agora passo bem sem a grande cidade. Gosto mas como evasão. Agora é o contacto com a natureza, o silêncio, o ar puro que me cativam. Não vivo agora no campo mas é um local tão resguardado e tão integrado na natureza que é quase como se fosse. 


Quando vou fazer a minha caminhada diária, se me cruzo com alguém, as pessoas cumprimentam-me. Ao princípio ficava admirada. Na cidade, é tanta a gente com que nos cruzamos que ficaríamos com a boca seca se andássemos a cumprimentar toda a gente. Aqui todos se cumprimentam com ar afável. Noutros tempos eu acharia isso uma invasão do meu espaço. Agora, não, agora também gosto de cumprimentar os outros. Antes, na cidade, gostava de ver em que paravam as modas, gostava de ver toilettes, lingerie, jóias, perfumes. Agora não quero saber de nada disso, já tenho que chegue e sobre até ter cento e cinquenta anos. Agora nas cidades gosto de olhar o ambiente, a paisagem, as flores, as árvores. E quando agora vou às compras, ao supermercado ou ao leroy, por exemplo, só me apetece ir ver que flores há. Tenho que me conter. No outro dia fomos lá para comprar um carrinho de mão, trouxe uma bromelia. Linda. Gostava de ter flores raras, gostava que os pássaros ficassem malucos de alegria como se vissem carne fresca no pedaço. 


Mudamos com o tempo. 

Agora estou aqui a pensar numa coisa: poderiam gravar-me agora a falar, por exemplo, com a minha filha e ela a falar naquela vez que eu apanhei um susto de morte pensando que, no meio do mato, estava a ser perseguida por um cavalo quando, afinal, era o meu filho a correr e a fazer uns estalidos lá dele e, creio, sem ter como intenção matar-me de medo. Sempre que ela, que estava em cima a assistir ao meu pânico, descreve a situação e me imita eu choro a rir. E tenho a certeza de que, se daqui por uns anos, me pusessem frente ao meu holograma, desfeita em lágrimas de tanto me rir, eu ia voltar a rir que nem uma perdida. Mas, enfim, valeria a pena o investimento? Quem me diz que gostaria de me ver setenta anos antes?


Adiante, adiante. 

Deixem que partilhe convosco mais um daqueles vídeos com que o meu amigo algoritmo me presenteia. Gosto sempre de ver. A paz que se antevê nestes modos de viver chega até aqui.

Inspired By Nature

E mais este aqui abaixo  que nos deixa alguns tópicos para reflexão

How Working Remotely Will Change More Than Work

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Pinturas de Henri Rousseau ao som de If I Go, I'm Goin - Gregory Alan Isakov with Aoife O'Donovan & Chris Thile 
Não sei se o título do post tem alguma coisa a ver com alguma coisa mas, ao escrevê-lo, achei que sim. Cenas.

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Uma feliz sexta-feira