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domingo, dezembro 16, 2012

Em dia de más recordações






Recordo ou fantasio? Aqui nesta casa fria, escura, habitada por sombras e lamentos, sentada com um casaco sobre os ombros, sozinha, falando para ninguém, recordo ou imagino coisas que nunca se passaram?

Por vezes não sei. Tudo tão distante.

Outras vezes sei, sei muito bem, e tomara não o soubesse, tomara que fosse devaneio, lembranças inventadas.

Ouço por vezes algumas pessoas cheias de auto-confiança dizerem que não lamentam nada, ou que lamentam apenas o que não fizeram. Infelizmente não posso dizer o mesmo.

Prefiro recordar os sorrisos escondidos, os segredos partilhados, a malícia excitante, os telefonemas disfarçados, os beijos roubados, os abraços cheios de promessas, o amor feito à pressa, ou o amor feito sem limites, os passeios de barco longe dos olhares e dos medos, os jantares cúmplices. Prefiro, claro que prefiro. Porque haveria de me atormentar com as decepções, as mentiras, os desgostos? De que serviria isso agora? 

Não guardo rancores. De nada servem. Distanciei-me de tudo e de todos. Ninguém sabe onde vivo, ninguém sabe como me contactar. Sei que isso foi uma forma que arranjei para atenuar a tristeza que sinto por esta solidão. Assim, penso que talvez alguém ainda se lembre de mim, que não me procuram apenas porque perderam o meu rasto. Iludo-me. Iludo-me uma vez mais, não fiz outra coisa a vida inteira.

Uma das pessoas que mais marcou a minha vida foi um homem muito mais velho que eu, um dos homens mais poderosos deste país. Com ele aprendi grande parte do que sei. Fez-me voltar a estudar, fez-me sentir muito especial. Tão meigo, tão atencioso. Amava-me de verdade. Casado, com filhos, com netos. Vivia separado mas não divorciado da mulher mas a vida dele fazia-se muito através dos filhos, das empresas, tudo preparado em termos de sucessão, uma vida pública e social muito activa. Jamais poderia assumir a relação comigo, seria um escândalo.

Compreendi perfeitamente. Eu também não o poderia assumir e, ao mesmo tempo, continuar a trabalhar perto dele. E deixar de trabalhar estava fora de questão, não quereria ser a concubina, a mulher 'por conta', sempre fiz questão de manter a minha independência. Pode agora não parecer, mas sempre me achei uma mulher orgulhosa, muito ciosa da minha dignidade.

Através dos seus relatos, pelo que me contava quando à noite jantávamos juntos, conheci ministros, empresários, banqueiros. O que eu gostava de saber aquelas peripécias, o que eu aprendia.

Comprou e pôs em meu nome um andar enorme que mobilou a seu gosto, móveis bons, sofás largos, confortáveis, quadros valiosos. Era lá que eu vivia e era lá que ele, tantas vezes, jantava e dormia comigo.

Em público, éramos quase uns estranhos, uma relação formal. À noite, algumas noites, éramos marido e mulher. Partilhávamos confidências, conversávamos.

Foi ele que me ensinou a arte de amar. A sua memória era surpreendente e, de cor, enquanto galantemente me cortejava, dizia com a sua voz quente e baixa:


Se não for meiga quanto baste nem corresponder ao teu amor,
    porfia e persiste. Acabará por tornar-se carinhosa.
Dobra-se, quando vergado com jeito, o ramo da árvore;
    vais parti-lo se puseres à prova a tua força;
com jeito, a nado se passam as águas; mas não serás capaz de vencer
    o rio, se nadares contra a corrente que com as águas se arrasta


E depois, no fim, ria e dizia, aprende, miúda, que eu não vivo para sempre; e é bom que domines a arte de amar, e depois, já viste? vais surpreender os teus namorados, quando eles menos esperarem, começas a dizer Ovídio, ninguém resistirá a tal coisa.

Eu ria. Na altura pensava lá eu em ter outra pessoa?

No entanto, tantas vezes depois eu usei os seus ensinamentos, tornou-se um vício, talvez o meu único vício.

Era feliz, nessa altura. Se alguém nos visse juntos, talvez nos censurasse: tem idade para ser pai dela, pai ou, mesmo, avô.

Mas eu gostava muito dele, abriu-me as portas para o mundo, para a vida. Vivia na sombra, uma vida cheia de jardins proibidos, mas eu achava isso natural, não me passava pela cabeça censurá-lo. E era-lhe agradecida. Questionava-me mas que vê ele em mim? Não me ocorria que talvez gostasse do meu corpo ágil e jovem, que talvez gostasse da minha alegria espontânea, da minha inocência.

Até que um dia, não sei como, apesar das mil precauções, engravidei. Que alegria senti, que alegria, que alegria. 

Mas não durou muito essa alegria. Quando lhe disse, ficou muito sério, que aquilo não deveria ter acontecido, que era impossível. Assustei-me, não contava com a secura da sua reacção.




Chorei, implorei, mas ele foi implacável. Um dia pareceu-me vê-lo também a chorar mas disfarçou (e pode até não ter sido isso, nunca percebi bem o que sentia a esse propósito). Levou-me a Espanha, fomos de carro e, durante a viagem, quase não falámos. De vez em quando fazia-me uma festa. Chorei quase todo o caminho. Por fim já só soluçava.

Ele foi muito carinhoso, esteve sempre comigo e também estava triste. 




A sua tristezae foi, na altura, o meu único consolo. No regresso eu vinha vazia, de repente a minha vida tinha sido esvaziada de sentido.

Lembro-me de me olhar ao espelho e não conseguir encarar-me.




Matei o meu filho, pensava enquanto os meus olhos acusadores me olhavam. Não era filho que eu pensava, era filha. Pensava que era uma menina. Ainda hoje penso nisso, penso no nome que lhe daria. Penso que o não deveria ter feito.

Arrependo-me tanto, tanto, tanto. Porque fiz eu aquilo? A troco de quê? 

Algum tempo depois deixou-me, que tinha conhecido uma outra. Mentira. O que se passava é que o que acontecera lhe era insuportável. A minha tristeza era para ele uma acusação muito forte. Não pensas nunca na tua filha pequenina? Não pensas que poderíamos ter uma menina que por aqui andasse, que te chamasse oh meu paizinho querido, não pensas? Zangava-se quando eu dizia isto. Dizia que eu o martirizava. 

Mas não fora só a nossa filha que tinha morrido. O afecto entre nós tinha também morrido. 

Fez questão que eu ficasse com a casa.

Fiquei sozinha numa casa grande, cara. Quem soubesse diria que eu era uma oportunista. Ninguém saberia que eu abdicara de mim e que tirara a vida à minha filha.

Não voltei a engravidar. Não calhou. Não aconteceu. O meu grande sonho, o maior de todos, também ficou pelo caminho.

*

Este texto é continuação de três textos anteriores e eu prometo que quando perceber melhor que história é esta lhe dou um título, para mais facilmente me poder referir a ela. 

A música é O mio babbino caro de Puccini e aqui é interpretado por Elisabeth Schwarzkopf. 

Não sei quem fez estas fotografias de Catherine Deneuve. 

O trecho em itálico foi escrito por Ovídio e faz parte do capítulo dedicado à Persistência no livro II na Arte de Amar (mistério desvendado pela Leitora Fantástica conforme refiro no post abaixo).

*

Resta-me, por hoje, desejar-vos um belo domingo. 

A Leitora Fantástica descobriu: é Ovídio e a sua Arte de Amar (Ars Amatoria)


Está desvendado o mistério!



A autora de A Matéria dos Livros na sua fase de Leitora Fantástica


A Leitora Fantástica, autora d' A Matéria dos Livros que sempre visito, voltou a acertar. O autor dos poemas em itálico nos últimos textos que publiquei é, de facto, Ovídio e os excertos pertencem à obra Arte de Amar



Ovídio e a Ars Amatoria


Ovídio, poeta romano, nascido 43 anos antes de Cristo e que viveu 63 anos, escreveu Ars Amatoria sobre o qual transcrevo da Wikipedia:

A Arte de Amar ("Ars Amatoria", em latim) é uma série de três livros do poeta romano Ovídio.

Escrita em versos, tem como tema a arte da sedução. 

Os primeiros dois volumes da série, escritos entre 1 a.C. e 1 d.C., falam 'sobre conquistar os corações das mulheres' e 'como manter a amada', respectivamente. 

O terceiro livro, dirigido às mulheres e ensinando-as como atrair os homens, foi escrito depois. 

A publicação da Arte de Amar pode ter sido ao menos em parte responsável por Ovídio ter sido banido de Roma pelo imperador Augusto. A celebração do amor extraconjugal pode ter sido tomada como uma afronta intolerável a um regime que promovia os 'valores da família'. Para o leitor moderno, parte do interesse no poema está nos vívidos registos da vida quotidiana da Roma Antiga.


O livro, que recomendo, do qual extraí aqueles excertos é uma edição da Biblioteca Editores Independentes, com tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André e custa a módica quantia de 6€ - ou seja, o preço, neste caso, não pode ser considerado factor dissuasório.

Começa assim:


Se alguém das nossas gentes não conhece a arte de amar,
    leia este canto; e, depois de o ter lido, entregue-se com sabedoria ao amor.


e é assim que acaba (antes da conclusão):


E não permitas que a luz invada o quarto a toda a largura da janela;
   é melhor que no teu corpo muita coisa fique às escuras.


Parabéns, Leitora, e muito obrigada pelas suas leituras sempre tão atentas.

sábado, dezembro 15, 2012

Como é bom o amor em Paris (e como pode ser triste o regresso a Lisboa)






Lembro-me de um dia, lembro-me tão bem como se fosse hoje, em que aquele que o meu coração mais amou tinha uma reunião numa segunda feira. Arranjou maneira de ir logo ao fim da tarde de sexta feira e levou-me com ele. Nunca eu tinha estado em Paris. Que emoção. No aeroporto fingimos que não nos conhecíamos não fosse o diabo tecê-las. Mas depois, ah que deslumbramento, namorados clandestinos, só nós dois contra o resto do mundo, um amor tão doce.




Protegidos da rotina, protegidos do lado aborrecido da vida - a mulher teria o lado oficial, o papel passado, mas eu e ele tínhamos o namoro, a paixão nunca totalmente concretizada, a que clamava sempre por uma próxima vez - vivemos Paris, a cidade do amor, como se vivêssemos um sonho. Passeámos, fizemos compras, foi lá que ele me ofereceu aquele caso de pele, eu não queria, tão caro, tão caro, uma fortuna, não, não, mas ele fez questão, foi lá também que ele me ofereceu este relógio, mas tanto dinheiro, levo-te à ruína, não quero, mas para que é tanto luxo? Mas ele dizia que eu merecia isso e muito mais, andámos de mão dada, andámos de braço dado como um casal, e isso foi, talvez, o melhor, tanto que eu desejava isso, andar na rua como se fossemos um casal, que felicidade. Fomos à ópera, conheci a biblioteca, fomos a museus. Tanta coisa em tão pouco tempo.

E, de noite, eu era a sua modelo, a sua boneca, a sua dócil criatura.

Tinha-me também oferecido uma lingerie, uma loja que só visto ali para os lados da Pigalle, e quis que eu a experimentasse. Experimentei. Quis que eu deixasse que me fotografasse. Deixei. Podia lá eu negar-lhe algum pedido?




Mas não vou agora fingir que o fiz contrariada. Fiz porque quis. Acedi sempre a tudo porque quis. 

Quando ele apontava a máquina fotográfica na minha direcção parece que eu ficava outra, parece que me desinibia, que me inspirava. De lingerie preta, a fumar, exalando sensualmente o fumo, sentindo-me apetecível, uma irresistível sedutora, oferecendo-me sobre a cama, sobre o sofá, eu tinha um enorme prazer em vê-lo excitado enquanto me fotografava.




Quanto mais ele se descontrolava, doido de excitação, mais eu provocava, oferecendo-me languidamente à objectiva.

Foram noites de grande prazer, não o escondo - porque haveria de esconder?

Enquanto me fotografava costumava pedir-me, ensina-me a arte de amar, ensina-me como só tu sabes.

E eu, de olhos semicerrados - enquanto fazia deslizar vagarosamente a alça do corpete, enquanto deixava antever, devagar, devagar, o seio, aos poucos, aos poucos até ao mamilo - com voz baixa, quase rouca, ia ciciando,


Antes de mais, tem confiança no teu coração de que todas
    podem ser conquistadas; e vais conquistá-las; basta que estendas as redes
Tal como Vénus furtiva é grata ao homem, assim o é também à mulher;
    o homem disfarça mal; ela é com mais recato que alimenta o desejo.
Se aos homens der mais jeito não serem os primeiros a pedir,
    logo a mulher, vencida, há-de assumir o papel de quem pede.
Na mansidão do prado, é a fêmea que solta mugidos ao touro,
    é a fêmea sempre que relincha ao cavalo de rijos cascos.


E ele, o meu amado, o meu devoto fotógrafo, disparava, disparava, quase sem ver, enlouquecido pela minha voz, pelo meu corpo, pela minha sensualidade.

Pelo menos uma vez por dia, geralmente de manhã e antes de sairmos para jantar, ele colocava-se junto à janela, de pé, e falava com a mulher. Relatava reuniões intermináveis, negociações complicadas, falava das saudades que tinha, pedia para falar com os miúdos, prometia presentes, enviava beijinhos. Eu ouvia com indiferença, e pensava é um filme, mente à mulher para poder estar comigo, prefere estar aqui comigo do que a aturar a vaidosa, a fútil, a palerma da mulher, e sorria, superior, agradecida por ele ser o amante querido que eu tanto amava.




O relógio é este, uso-o sempre, é lindo. Olho as fotografias, estava bonita eu, sentia-me tão irresistível, achava que ia ser tão feliz. Achava que ia voltar muitas vezes para ser feliz outras tantas. Paris. Paris. Que saudades.

Não voltei.

Regressámos a Lisboa na terça feira. Antes de abandonarmos o hotel, quando íamos a sair do quarto, ele puxou-me por um braço. Abraçou-me, beijou-me. Temos que fazer as despedidas agora porque no aeroporto ou no avião não dá, não vá alguém que me conheça ver-me. Aceitei. Beijos apaixonados e abraços apertados e quentes não se podem rejeitar. E feliz como estava, porque haveria eu de rejeitar?

Quando o avião aterrou ele disse-me que a mulher e os filhos o iam buscar e que era melhor não sairmos juntos. Foi uma decepção que tive, porque é que não me avisaste antes?, mas ele encolheu os ombros como se fosse coisa sem importância. Aceitei, estava habituada a aceitar, estava já tão habituada a viver na sombra. 

Penso agora nisto e vejo que toda a minha vida arrastei as sombras como se fossem pesados mantos que me cobrissem.

Ele saíu, não tinha que esperar pela bagagem, levava apenas uma mala que cabia nos compartimentos da bagagem de mão. Eu não, eu tinha uma mala maior, carregada.

Quando me vi no aeroporto sozinha, arrastando uma mala pesada senti-me insignificante, senti uma tristeza. Mas mais triste fiquei quando, indo eu a arrastar a mala, sem ninguém que me ajudasse, o vi abraçado à mulher, de mão dada com um dos filhos, sorridentes, felizes, uma família feliz. Iam a sair do edifício, não me viram e eu fiquei ali parada, sentindo-me um nada.

Fui para a fila dos táxis, já era de noite, e eu ali sozinha. A bela mulher que eu era, tão desejada, tão amada, de repente ali sozinha. Que pena tive, então, de mim.




Cheguei a casa e tão desfeita me sentia que, nesse dia,  nem tive coragem de desfazer a mala. Tinha-me chocado o ar de família feliz, tinha-me chocado a forma como ele se tinha livrado da minha presença, como se eu não tivesse sentimentos. Eu era a outra, a que tinha que se sujeitar a tudo, a que recebia presentes, beijos, noites de amor num hotel e ponto final. Claro que eu sabia que era a outra mas a outra é tão mulher, tão humana, tão frágil, como qualquer outra pessoa, como a mulher legítima. 

Mas nunca lhe falei nisto. Prosseguimos a nossa relação como antes. Sempre consegui disfarçar muito bem o que sinto, sempre calei as minhas mágoas, sempre me contentei com o que me davam, sempre esperançada em que um dia teria tudo aquilo que desejava. Nunca tive.


*

Este texto é a continuação do penúltimo e do antepenúltimo textos. Ainda não dei um nome a esta história nem a esta mulher porque ainda não sei se vai ter continuação. Se vier a ser uma história talvez lhe fique bem o nome Casta Diva e talvez a mulher possa vir a chamar-se Maria Beatriz.

A música é, justamente, Casta Diva de Bellini, aqui interpretada por Cecilia Bartoli.

Catherine Deneuve aqui é retratada por Helmut Newton. Contudo, desconheço a autoria da última fotografia.

Continuo a não identificar o texto em itálico e isso é deliberado.

*

Hoje no Ginjal encerro o ciclo que dediquei a Ernesto Lecuona com dança. O Grupo Corpo dança Te he visto pasar e a música, a voz e os corpos são uma maravilha. Não quererão ir até lá, deitar uma espreitadela?


*

Chove que é uma maravilha. Os campos e as barragens agradecem a chuva que cai com vigor. Vejo-a lá em baixo, contra um fundo escuro, iluminada sob a luz do candeeiro. 

Aproveitem, meus caros leitores, o encanto de um fim de semana chuvoso e frio. 
Desejo-vos um belo sábado!

quinta-feira, dezembro 13, 2012

De que serve a beleza? De que serve a juventude? De que serve a inocência perante o fingimento e a lisonja? (E deixo uma adivinha, a ver se alguém descobre)







E, no entanto, fui, ah se fui, tão requisitada, tão admirada. A minha pele, os meus olhos, a minha boca. Toda eu. O meu corpo.

Deixa-me ver as tuas pernas e eu ria, fazia de conta que me envergonhava e, depois, como se estivesse distraída, mostrava-as. Mas havia em mim sempre um pudor que, de tão bonita que eu era, quase parecia artificial.

Deixa-me fotografar-te. E eu deixava. Não sorrias. E eu não sorria. Sorri apenas com os olhos e eu sorria só com os olhos. Ah que bonita que és. E, tantas vezes o ouvi, que imaginei que assim o seria para sempre.




Senta-te nessa cadeira, ao contrário, apoia os braços nas costas, espreita. Espreita como se me quisesses seduzir. E eu espreitava, sedutora.

Veste agora outra blusa que essa é muito fechada. E eu vestia. Deixa ver os ombros, deixa ver as pernas, deixa antever os seios. E eu, submissa, deslumbrada, a vida inteira pela frente e ainda tantos elogios por vir, tão bons, tanta ternura para receber, tão boa a ternura. 

Cada sorriso que recebia, cada pequena palavra, cada sugestão de prazer era sempre uma promessa de amor eterno, tão ingénua eu. Era uma dádiva, um presente que recebia agradecida.

Ficava triste, desiludida quando percebia que, afinal, era um plano secundário o que me estava reservado mas acreditava que, um dia, iria passar para primeiro plano. Queria tanto, tanto, tanto. Merecia tanto, esforçava-me tanto, fazia tudo o que me pediam.

Vamos ao cinema, e eu toda feliz. Depois do cinema podíamos ir jantar fora e eu agradecida, sim, sim, vamos, mas e se nos vêem? sempre eu com medo. Não vêem porque vamos para um sítio onde ninguém nos vê. E eu ria, sempre agradecida, sempre crédula, sempre submissa.

És a mulher mais bonita que já conheci, apetecia-me ficar a vida toda a olhar para ti, tão linda, tão linda, e eu lisonjeada, inocente, a alma acariciada. E essas palavras valiam por mil alianças, por mil papéis passados. As outras têm o resto, eu tenho o amor verdadeiro, a paixão, pensava eu.  Elas não são exigentes, contentam-se com tudo. Eu não, eu tenho a melhor parte. E iludia-me, iludia-me sempre.




Eu tinha, então, vinte anos e a minha pele era luminosa, os meus olhos sorriam, o meu corpo resplandecia.




Depois, eu tinha trinta anos um corpo firme, um ventre liso, uns seios firmes, uns lábios sorridentes, um cabelo brilhante. E tantos sonhos. Um grande amor, uma casa, uma família, sonhava eu. Mãe, vais ver, vou ter tudo, viagens, um jardim, uma laranjeira. E filhos também, mãe. Tantos sonhos.




Depois, eu tinha quarenta, uma pele mais espessa mas ainda macia, uns seios cheios, umas curvas mais pronunciadas, o cabelo ainda sedoso, com um suave ondulado, uns olhos que às vezes já se assustavam. Tão bonita que és, as mulheres mais maduras são melhores. E eu acrescentava, e tolerantes, e pacientes e o telefone tantas vezes sem tocar e o sofá tão frio e o espelho a começar a revelar as marcas do tempo. Vamos passar o fim de semana fora, tenho que ir em serviço. Clandestinos sempre, mas tão excitante isso, e tenho o melhor, tenho a vitalidade, o arrojo, o grão de loucura e um dia terá coragem e um dia será meu. E depois que já não podia ser, que aquilo não estava certo, que a mulher e os filhos e a família e tudo. E outra despedida. Tantas despedidas, tantas desilusões.




E depois eu já tinha cinquenta e quase já não conseguia sonhar e o cabelo tão sem vida e o olhar tão sem brilho e os lábios tão já sem sorrisos e os seios já tão inúteis e as pernas tão já sem graça. Tens um charme especial, não há outra como tu, e eu ainda a tentar acreditar, e, depois, nova desilusão, e tanto cansaço já, tanta descrença. E a casa tão vazia, sempre tão vazia, e os meus ombros tão abandonados, e eu tão já afastada de tudo, de todos. 

Passaram os anos. E o tempo, como um mar forte e desatento, foi deixando as suas terríveis marcas. Onde está aquela que fui, tão bela, tão desejada? Onde estão os que me cortejaram, agraciaram, amaram, os que percorreram o meu corpo? Onde estão? Onde estão que me deixaram aqui sozinha?

Desloco-me até à janela, escondo-me atrás da cortina, espreito a rua. Protegida da luz fria, coberta pela penumbra que me acolhe, digo em voz baixa as palavras que, antes, a brincar, dizia como se ensinasse aqueles que diziam amar-me:


Tens de fazer o papel de quem ama e aparentar, por palavras, que estás ferido;
    procura ser convincente, seja de que modo for;
não é custoso acreditar em ti; qualquer uma se julga merecedora de amor;
    por má que seja, não há nenhuma a quem não agrade a sua beleza.
Muitas vezes começa, porém, o fingidor a amar de verdade;
     muitas vezes, aquilo que no começo, simulara ser, veio a sê-lo mesmo.
Mais ainda por isso, ó mulheres, tornai-vos fáceis àqueles que fingem!
    Há-de transformar-se em amor autêntico o que era, ainda agora, simulação.
É, então, hora de cativar o coração, sorrateiramente, com palavras meigas,
    tal como galga a água corrente a ladeira da margem;
não hesites em louvar-lhe o rosto, os cabelos
    e os dedos esguios e o pé delicado;
dá deleite, mesmo às mais castas, o pregão da sua beleza;
    as donzelas cuidam da figura e ela dá-lhes prazer.


Sei bem de cor estas palavras, sei bem, tantas vezes as disse. Ensinava a arte de amar, eu, eu que julgava saber a arte de amar, eu tão ingénua, tão afinal sem nada saber, sem nada ter. De que vale a beleza do corpo quando ela é tanta que ofusca tudo o resto? De que vale a juventude quando é tão efémera? De que vale a esperança quando é tão perecível?

Quase sem querer, como um autómato demente, continuo em surdina,


Se me perguntas quanto tempo deve ela queixar-se, magoada, pois que seja curto,
    não vá a raiva reunir forças, à custa da demora excessiva;
que os teus braços lhe envolvam, de pronto, a alvura do colo,
    e acolhe o seu pranto no teu regaço;
dá-lhe beijos enquanto chora, dá-lhe a experimentar os prazeres...


Mas interrompo-me, ninguém me ouve, nenhuns braços virão para me envolver, nenhuns beijos virão afastar os meus prantos. Tanta a demora, tão excessiva a demora.

Já não tenho a quem ensinar, eu que nada sei. Vazia. Vazia eu numa casa vazia, tão fria, tão escura. Vazia. 

Olho-me no espelho enevoado. Procuro uma companhia nem que seja a companhia daquela que me olha no espelho. 




Choro. E a mulher que me olha chora também. Tem vinte, trinta, quarenta anos, não sei, mas chora como eu. Trazia já a solidão no olhar. A minha vida perdeu-se algures por aí e eu não dei por nada.


*

Este texto é a continuação do que escrevi ontem (e, aos que me preferem num registo mais animado, não sei o que dizer, talvez apenas que isto tem dias...). 

A música é Baby, I'm a fool e é, uma vez mais no Um Jeito Manso, Melody Gardot.

Catherine Deneuve aqui é fotografada por Jeanloup Sieff, Richard Avedon (a antepenúltima) e Helmut Newton (a penúltima). Não conheço a autoria da última.

Não identifico o texto transcrito, a itálico. Deixo para que adivinhem.

*

Como escrevi nos comentários de ontem não me foi possível hoje nem responder aos comentários - e tanto que o queria fazer, tão interessantes e generosos eles são - nem escrever no Ginjal, facto pelo qual me penitencio. Aceitem, por favor, as minhas desculpas. Tentarei fazê-lo amanhã.

E, por hoje, nada mais. Apenas, ainda, desejar-vos um dia muito feliz.