Recordo ou fantasio? Aqui nesta casa fria, escura, habitada por sombras e lamentos, sentada com um casaco sobre os ombros, sozinha, falando para ninguém, recordo ou imagino coisas que nunca se passaram?
Por vezes não sei. Tudo tão distante.
Outras vezes sei, sei muito bem, e tomara não o soubesse, tomara que fosse devaneio, lembranças inventadas.
Ouço por vezes algumas pessoas cheias de auto-confiança dizerem que não lamentam nada, ou que lamentam apenas o que não fizeram. Infelizmente não posso dizer o mesmo.
Prefiro recordar os sorrisos escondidos, os segredos partilhados, a malícia excitante, os telefonemas disfarçados, os beijos roubados, os abraços cheios de promessas, o amor feito à pressa, ou o amor feito sem limites, os passeios de barco longe dos olhares e dos medos, os jantares cúmplices. Prefiro, claro que prefiro. Porque haveria de me atormentar com as decepções, as mentiras, os desgostos? De que serviria isso agora?
Não guardo rancores. De nada servem. Distanciei-me de tudo e de todos. Ninguém sabe onde vivo, ninguém sabe como me contactar. Sei que isso foi uma forma que arranjei para atenuar a tristeza que sinto por esta solidão. Assim, penso que talvez alguém ainda se lembre de mim, que não me procuram apenas porque perderam o meu rasto. Iludo-me. Iludo-me uma vez mais, não fiz outra coisa a vida inteira.
Uma das pessoas que mais marcou a minha vida foi um homem muito mais velho que eu, um dos homens mais poderosos deste país. Com ele aprendi grande parte do que sei. Fez-me voltar a estudar, fez-me sentir muito especial. Tão meigo, tão atencioso. Amava-me de verdade. Casado, com filhos, com netos. Vivia separado mas não divorciado da mulher mas a vida dele fazia-se muito através dos filhos, das empresas, tudo preparado em termos de sucessão, uma vida pública e social muito activa. Jamais poderia assumir a relação comigo, seria um escândalo.
Compreendi perfeitamente. Eu também não o poderia assumir e, ao mesmo tempo, continuar a trabalhar perto dele. E deixar de trabalhar estava fora de questão, não quereria ser a concubina, a mulher 'por conta', sempre fiz questão de manter a minha independência. Pode agora não parecer, mas sempre me achei uma mulher orgulhosa, muito ciosa da minha dignidade.
Através dos seus relatos, pelo que me contava quando à noite jantávamos juntos, conheci ministros, empresários, banqueiros. O que eu gostava de saber aquelas peripécias, o que eu aprendia.
Comprou e pôs em meu nome um andar enorme que mobilou a seu gosto, móveis bons, sofás largos, confortáveis, quadros valiosos. Era lá que eu vivia e era lá que ele, tantas vezes, jantava e dormia comigo.
Compreendi perfeitamente. Eu também não o poderia assumir e, ao mesmo tempo, continuar a trabalhar perto dele. E deixar de trabalhar estava fora de questão, não quereria ser a concubina, a mulher 'por conta', sempre fiz questão de manter a minha independência. Pode agora não parecer, mas sempre me achei uma mulher orgulhosa, muito ciosa da minha dignidade.
Através dos seus relatos, pelo que me contava quando à noite jantávamos juntos, conheci ministros, empresários, banqueiros. O que eu gostava de saber aquelas peripécias, o que eu aprendia.
Comprou e pôs em meu nome um andar enorme que mobilou a seu gosto, móveis bons, sofás largos, confortáveis, quadros valiosos. Era lá que eu vivia e era lá que ele, tantas vezes, jantava e dormia comigo.
Em público, éramos quase uns estranhos, uma relação formal. À noite, algumas noites, éramos marido e mulher. Partilhávamos confidências, conversávamos.
Foi ele que me ensinou a arte de amar. A sua memória era surpreendente e, de cor, enquanto galantemente me cortejava, dizia com a sua voz quente e baixa:
Se não for meiga quanto baste nem corresponder ao teu amor,
porfia e persiste. Acabará por tornar-se carinhosa.
Dobra-se, quando vergado com jeito, o ramo da árvore;
vais parti-lo se puseres à prova a tua força;
com jeito, a nado se passam as águas; mas não serás capaz de vencer
o rio, se nadares contra a corrente que com as águas se arrasta
E depois, no fim, ria e dizia, aprende, miúda, que eu não vivo para sempre; e é bom que domines a arte de amar, e depois, já viste? vais surpreender os teus namorados, quando eles menos esperarem, começas a dizer Ovídio, ninguém resistirá a tal coisa.
Eu ria. Na altura pensava lá eu em ter outra pessoa?
No entanto, tantas vezes depois eu usei os seus ensinamentos, tornou-se um vício, talvez o meu único vício.
Era feliz, nessa altura. Se alguém nos visse juntos, talvez nos censurasse: tem idade para ser pai dela, pai ou, mesmo, avô.
Mas eu gostava muito dele, abriu-me as portas para o mundo, para a vida. Vivia na sombra, uma vida cheia de jardins proibidos, mas eu achava isso natural, não me passava pela cabeça censurá-lo. E era-lhe agradecida. Questionava-me mas que vê ele em mim? Não me ocorria que talvez gostasse do meu corpo ágil e jovem, que talvez gostasse da minha alegria espontânea, da minha inocência.
Até que um dia, não sei como, apesar das mil precauções, engravidei. Que alegria senti, que alegria, que alegria.
Mas não durou muito essa alegria. Quando lhe disse, ficou muito sério, que aquilo não deveria ter acontecido, que era impossível. Assustei-me, não contava com a secura da sua reacção.
Chorei, implorei, mas ele foi implacável. Um dia pareceu-me vê-lo também a chorar mas disfarçou (e pode até não ter sido isso, nunca percebi bem o que sentia a esse propósito). Levou-me a Espanha, fomos de carro e, durante a viagem, quase não falámos. De vez em quando fazia-me uma festa. Chorei quase todo o caminho. Por fim já só soluçava.
Ele foi muito carinhoso, esteve sempre comigo e também estava triste.
A sua tristezae foi, na altura, o meu único consolo. No regresso eu vinha vazia, de repente a minha vida tinha sido esvaziada de sentido.
Lembro-me de me olhar ao espelho e não conseguir encarar-me.
Matei o meu filho, pensava enquanto os meus olhos acusadores me olhavam. Não era filho que eu pensava, era filha. Pensava que era uma menina. Ainda hoje penso nisso, penso no nome que lhe daria. Penso que o não deveria ter feito.
Arrependo-me tanto, tanto, tanto. Porque fiz eu aquilo? A troco de quê?
Algum tempo depois deixou-me, que tinha conhecido uma outra. Mentira. O que se passava é que o que acontecera lhe era insuportável. A minha tristeza era para ele uma acusação muito forte. Não pensas nunca na tua filha pequenina? Não pensas que poderíamos ter uma menina que por aqui andasse, que te chamasse oh meu paizinho querido, não pensas? Zangava-se quando eu dizia isto. Dizia que eu o martirizava.
Mas não fora só a nossa filha que tinha morrido. O afecto entre nós tinha também morrido.
Fez questão que eu ficasse com a casa.
Fiquei sozinha numa casa grande, cara. Quem soubesse diria que eu era uma oportunista. Ninguém saberia que eu abdicara de mim e que tirara a vida à minha filha.
Não voltei a engravidar. Não calhou. Não aconteceu. O meu grande sonho, o maior de todos, também ficou pelo caminho.
*
Este texto é continuação de três textos anteriores e eu prometo que quando perceber melhor que história é esta lhe dou um título, para mais facilmente me poder referir a ela.
A música é O mio babbino caro de Puccini e aqui é interpretado por Elisabeth Schwarzkopf.
Não sei quem fez estas fotografias de Catherine Deneuve.
O trecho em itálico foi escrito por Ovídio e faz parte do capítulo dedicado à Persistência no livro II na Arte de Amar (mistério desvendado pela Leitora Fantástica conforme refiro no post abaixo).
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Resta-me, por hoje, desejar-vos um belo domingo.