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quarta-feira, dezembro 09, 2020

Ela, a mais bela, talvez não tenha companhia pelo Natal

 




Talvez haja quem pense que se escolhe. Não, não se escolhe. Os grandes, grandes amores não se escolhem. Os grandes amores não aparecem quando se procura. Nem aparecem quando se precisa. Não. Os grandes, grandes amores aparecem quando não se espera, sem aviso prévio. Aparecem muitos vezes quando e como não devem. Não obedecem a um cahier des charges

Se eu pudesse ter escolhido, nem pensar em escolhê-lo a ele. Não vale a pena atirarem-me pedras porque sou a primeira a achar que não devia, sobretudo porque, nisto, sou quem mais perde, quem mais sofre.

Depois de ter passado pelo que já passei, tantos sonhos frustrados, tanta indiferença sentida na pele, tanto abandono quando mais sentia necessidade de um abraço, tudo o que não precisava era dele.

Nos últimos anos, tantas ilusões caídas por terra, tantas noites de solidão e intranquilidade. Eu e a gata, duas tristes, ela rondando pela casa ou dormindo horas a fio no cadeirão aqui em frente, eu rondando pelo mundo em busca de uma possibilidade. Tantas horas, tantos dias, tantos meses. Tanto tempo que parece uma eternidade

Amigos e amigos. Centenas. Visto-me e arranjo-me e estico o braço e fotografo-me e, de volta, recebo sorrisos, corações, likes, elogios. Que estou linda, que as cores são lindas, que o cabelo está óptimo, que a gata é uma fofa, que não sabem qual a felina mais misteriosa, se eu, se ela, brincadeiras, trocadilhos e fúteis agrados. E quantas noites passadas nos chats desta vida, tantas vezes em que parece haver um caminho, almas gémeas, tantos gostos coincidentes, tantas vezes em que exclamamos que o mundo é pequeno, promissoras afinidades -- tantas ilusões que se alimentam de palavras, de equívocos, de meias verdades. E tantos blind dates, tantos jantares com homens aborrecidos, vazios, cheios de si próprios, inúteis. Tantas situações desagradáveis. Tantas vezes em que tentei, em que me esforcei por acreditar, em que me forcei a iludir-me, forjando um entusiasmo que, por dentro, não sentia. Tantas frustrações. 

Sempre a correr para o ginásio, sempre a correr para arranjar cabelo, mãos e unhas, sempre à procura do vestido mais elegante, dos sapatos que melhor definem a silhueta, sempre a ver ao espelho qual o melhor ângulo, a melhor pose, e sempre a combinar jantares, bares, copos, tretas. E tantas noites em casa, em silêncio, a ver o tempo a passar. 

A gata vem, percebe-me os humores, olha-me com aqueles olhos que sentem antes de verem e eu desvio o olhar para que ela não testemunhe o que quero esconder.

Está a chegar o natal, esse dia horrível. Pode ser bom para quem tem famílias grandes, crianças. Mas é um horror para quem quase não tem família e, pior, para quem não se dá com os poucos que sobraram. Enquanto isso, ele lá vai estar numa casa cheia de enfeites de natal, bacalhau com todos, a trinchar um peru fumegante, e todos em volta da mesa, mulher, filhos, pais. Tinha-me dito que, por causa disto, não iam estar os irmãos, só eles e os pais. Um dos irmãos e família ficariam com a véspera e o outro com a noite do dia. Mas tinha-me garantido que na véspera à tarde viria cá a casa. Isto já há mais de um mês. Parece impossível mas há já mais de um mês que não o vejo. Estúpido. Mil vezes estúpido. Todos os dias a aguardar que haja tempo para uma visita, um telefonema, um gesto. 

Não se escolhe, é o que tantas vezes digo. 

Se, naquele dia, a minha mãe não tivesse tido que ir às urgências, se uma semana depois também não, se não tivesse sido ele das duas vezes, se não o tivesse visto uns dias depois na livraria, se... se... se aquele blusão de cabedal não lhe ficasse a matar, se aquela barba não o tornasse ainda mais irresistível, se o livro que tinha na mão não fosse tão inesperado que me tivesse impelido a dirigir-lhe a palavra... se... se... o café que logo ali tomámos, ele porque estava mesmo a precisar e eu porque parecia tomada por um absurdo coup de foudre, se... E se eu, tão louca, não tivesse dado o meu número e se ele não me tivesse ligado logo a seguir e se eu, sempre tão carente, não tivesse caído de quatro, caída, caída, feita parva, apaixonada, cheia de esperança... e se... e se.... 

Até ao dia em que me disse que queria ser sincero e eu já a tremer de medo, a adivinhar o que ele ia dizer, e depois a querer desistir de tudo, um homem casado não, tudo menos isso. E os dois abraçados, abraçados, com medo do que estava a passar-se, sem saber bem como lidar com isso. E depois a vir cá para termos onde estar, sempre escondidos, ele sempre com pressa, um amor que não podia existir. E a minha família ofendida, a cortar relações, a rejeitar-me como se fosse uma perdida, uma destruidora de lares, alguém que ainda irá meter-se em trabalhos, tu vais ver as vergonhas por que vais passar, deixa a mulher dele descobrir... 

Mas ele sempre tão carinhoso: quando eu lhe dizia que eu era a outra, a sem nome, a ela, a dizer-me que não, que eu não era a ela, era, sim, a mais bela. Era assim que me tratava, a mais bela. Fotografava-me e eu gostava que ele me fotografasse. Entregava-me à sua lente, ao seu olhar, ao seu corpo.

Até que isto começou, porcaria do corona, raios partam o corona, e aí tudo começou a complicar-se. Não tinha tempo, sempre ocupado, sempre a trabalhar, sempre a receber e a fazer chamadas, sempre em stress, sempre a fugir. Agora já nem sei o que existe, se é que ainda existe. Tento compreender, claro que sim, não sou estúpida. Mas, bolas, nunca como agora fui tanto a outra, a descartável, a que se sente um estorvo.

Ah... não se escolhe. 

E agora, se ele está doente, em casa, como falar com ele...? Impossível. Nem para saber se está bem. Sei lá se a mulher está ao pé, sei lá. 

Vai chegar o natal e vai ser o mais triste de todos. Não tenho dúvidas. Nem dúvidas, nem presentes, nem companhia, nem nada, nada. Nem ninguém para ver como a mais bela está elegante, bem penteada, cheirosa. Ah, se se pudesse escolher...


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Marion Cotillard foi fotografada por Mikael Jansson e vem ao som de If you love me por Melody Gardot

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Um dia feliz.
Saúde.

segunda-feira, novembro 02, 2020

Sempre existirão dentro de nós
[e, ainda, a despropósito, aquelas insignificantes minudências de que a vida é feita]

 


Não há um dia específico para lembrar aqueles que partiram. No outro dia a minha mãe, ao conversar comigo sobre uns amigos de juventude, ia referindo um e outro e acrescentava 'já morreu' e a seguir 'também já morreu'. Às tantas, resumiu: 'desses tempos, só já cá estou eu e ...' e referiu mais umas duas ou três pessoas. Depois acrescentou que isso lhe faz um bocado de impressão. Imagino. Penso algumas vezes como será quando eu tiver a idade dela, vendo-me cada vez mais perto do fim da linha. 

De todos os que, da minha família, se foram nos últimos tempos, guardo memórias que acarinho. Não tenho para elas um dia em especial. As memórias vêm quando vêm. Não penso neles como seres ainda com matéria que justifique uma visita. Para mim, fisicamente já não existem. Uns estão enterrados, outros foram cremados. De uns foram depositadas as cinzas, de outros havia a ideia de as deitar ao vento em lugares que lhes eram queridos. 

Por isso, o dia em que se recordam os que partiram não tem, para mim, qualquer significado. É apenas mais um dia. 

A vida é isto mesmo, um daqueles tapetes rolantes em que entram uns, saem outros. Quanto tempo nos vamos aguentar em cima dele é uma incógnita. Tenho um amigo que organiza a sua vida em função de quando for mais velho, chegando mesmo a equacioná-la caso fique viúvo. Aliás, ele não o explicita, diz apenas: 'não quero isso pois, se um se for e o outro se vir sozinho, não sei como seria...'. Eu, que sou optimista militante e despreocupada, penso em função do que vale a pena. Se agora é bom, já vale a pena. Pode ser bom apenas durante uns dias, mas já vale a pena. Pode acontecer uma hecatombe e o futuro não ser nada daquilo que se pretendia mas se, enquanto durar, for bom, então, já vale a pena.

E, durante um bocado da nossa vida temos connosco amigos e família que, aos poucos, vão ficando para trás e, ao mesmo tempo, vão entrando outros. É assim. Não vale a pena pretender que seja de outra maneira.

Hoje, aproveitando estarmos no mesmo concelho, fomos de manhã à praia e encontrámo-nos lá com a parte da família que também cá mora. Todos de máscara apesar do ar livre. Os meninos andam na escola, os mais pequenos sem máscara, portanto nunca se sabe. Também é um dado adquirido que resisto mal a manter-me afastada deles. Portanto, para me protegerem, não tiram a máscara. Enquanto os pais foram correr, eu joguei ao disco com a menina, fiz buracos na areia com o mais pequeno, fiz pizas com o do meio, organizei saltos em altura e em comprimento com todos. Ar livre, aquela leve neblina que nasce junto ao mar, a companhia dos meus. Tão bom. Bom tempo, apesar de tudo. Uma temperatura branda, poucas pessoas, um areal amplo. A água estava boa mas apenas molhei os pés. Depois deles terem ido, fomos nós dois fazer uma caminhada.

De tarde, andei, de novo, de volta dos livros. Na primeira leva, houve uns maus passos. Não sei como, algumas autobiografias, biografias e correspondência que não de língua portuguesa vieram parar à estante dos autores de língua portuguesa. Provavelmente por falta de espaço nas estantes lá de cima. Em contrapartida, vários de língua portuguesa foram parar às estantes onde supostamente só devia haver autores que não de língua portuguesa. Por isso, andei abaixo e acima a trocar a questão das nacionalidades. Depois a reorganizar: uma zona para correspondências, outra para entrevistas, outra para diários, outra para autobiografia, outra para biografias. E outra para crónicas. Em baixo tudo isto mas de autores de língua portuguesa. Em cima a mesma coisa mas para não de língua portuguesa.  Também autonomizei numa pequena estante, os livros que falam de livros, que falam de literatura ou de crítica literária. E ainda vou arranjar uma prateleira específica para literatura pornográfica/humorista/picante. Constatei que tenho pouco deste género. Não sei se há mesmo pouca, se sou eu que tenho pouca. Acho que, um dia que tenha tempo, hei-de tentar compor o ramalhete.

Tive que interromper pois tinha mais que fazer pelo que esta segunda-feira terei que arranjar tempo para ver se concluo a empreitada.

Não tive foi tempo de ir arrumar as roupas que vieram no outro dia e que ainda estão em sacos. Tenho que ver bem como as separo e guardo. A roupa guardada durante muito tempo fica a cheirar a mofo, parece que fica áspera. 

Este domingo fiz uma máquina com toalhas turcas que vieram no outro dia. A maioria já tinha vindo. Estas estavam esquecidas lá num roupeiro. Apesar de estarem lavadas, não consegui guardá-las assim. Parece que a roupa perde a vida quando está esquecida. Mas tudo isto dá trabalho. O meu marido queixa-se, diz que nesta casa não consegue descansar, há sempre coisas para fazer. É verdade, tem razão. Mas é porque ainda estamos na fase de instalação. Também todas as caixas que trouxemos no outro dia, tupperwares, jarros, medidores de líquidos, coisas assim, é tudo lavado antes de ser guardada. Uma trabalheira. E decidir onde se guarda, outro desafio. Para as coisas não ficarem atravancadas, para ficarem acessíveis, para ficarem arrumadas de forma lógica... é preciso cá uma ginástica mental...

Estes armários da cozinha vão até ao tecto. Há, pois, muita arrumação. Contudo, só com escadote alto eu conseguirei chegar às últimas prateleiras. Por isso, aquilo que o meu marido tem posto lá para cima, é bem capaz de também ficar meio esquecido. Quando penso em voz alta sobre estes profundos dilemas, o meu marido remata sempre: se deitasses fora tudo aquilo de que não precisas já não tinhas tantos dilemas... E aí eu calo-me.

Tirando isso, o que sei é que este ano, ao estar afastada das zonas de consumo, não sei como estão as lojas. Já devem estar a antecipar o natal mas imagino que seja um bocado triste. As lojas devem estar meio vazias de fregueses e mais ainda hão-de ficar. E os proprietários e os empregados devem estar assustados. Compreendo. O comércio, com o tempo, vai deslocar-se para o online. As grandes superfícies tal como os grandes espaços de escritórios devem ter o destino traçado. Mas outras coisas surgirão. Há-de desenvolver-se tudo o que tenha a ver com a natureza, creio. E com a proximidade, onde possamos ir a pé, onde nos conheçamos todos. O regresso ao espírito de aldeia. E isso talvez seja bom. A sociedade há-de ajustar-se e adaptar-se a tendências sociais que vão surgindo. É isso: uns saem do tapete rolante, outros entram. Pessoas, hábitos. 

Ficam as memórias. Sempre as guardaremos dentro de nós.

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Rianne van Rompaey aqui é fotografada por Mikael Jansson ao som de Always on my mind numa interpretação de The Webb Sisters.

E Tom Hiddleston diz Do not go gentle into that good night de Dylan Thomas 

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Desejo-vos uma boa semana, a começar já por esta segunda-feira.