quinta-feira, julho 31, 2014

BES (quase) ao fundo: em 6 meses um prejuízo de 3,57 mil milhões de euros. E as contas, ' informação financeira não auditada', não foram assumidas pela equipa de Vítor Bento. Percebe-se. Se ainda lá está grande parte dos membros da equipa de Ricardo Salgado, equipa responsável por este buracão, que assumam eles o lindo serviço que ali está! [Actualização: Entretanto, saíu um comunicado do Banco de Portugal a suspender administradores que vinham da anterior equipa (presidida por Ricardo Salgado) e a proibir o direito de voto do GES no BES. Aleluia! Aleluia!]



Let the power fall





Numa leitura rápida do documento entregue à noite à CMVM relativo às contas do BES no 1º semestre o que vejo, em primeiro lugar, é que a equipa de Vítor Bento, Moreira Rato e José Honório foge destes números como diabo da cruz. Dizem que o buraco (de 3,57 mil milhões de euros que ali está) resultou de uma gestão anterior à chegada deles e que, nos poucos dias em que lá estiveram, não tiveram tempo para validar se o que ali está é mesmo aquilo e, muito menos, explicar como se chegou ali.


Percebo-os. Aliás, acho que outra coisa não poderiam fazer.




Vejo no site do BES que a Comissão Executiva (para quem não esteja muito por dentro destas coisas, poderei dizer que a Comissão Executiva de uma empresa é o grupo de pessoas que, na administração, de facto gere a empresa, neste caso o banco, no dia a dia) tem a seguinte composição:



Vítor Augusto Brinquete Bento - Presidente, necessidade de ratificação da cooptação em Assembleia Geral 
José Alfredo de Almeida Honório - necessidade de ratificação da cooptação em Assembleia Geral 
António José Baptista do Souto 
Jorge Alberto Carvalho Martins 
Rui Manuel Duarte Sousa da Silveira 
Joaquim Aníbal Brito Freixial de Goes 
Amílcar Carlos Ferreira Morais Pires  
João Eduardo Moura da Silva Freixa  
Stanislas Gerard Marie Georges Ribes 
João de Almada Moreira Rato, necessidade de ratificação da cooptação em Assembleia Geral

em que, a bold, estão os membros da Comissão Executiva que trabalhavam com Ricardo Salgado e que ainda estão em funções no BES. 






A Comissão Executiva (CE) é, pois, parte integrante do Conselho de Administração, o qual não tem funções executivas mas que, de forma geral e descrito de forma simplista, monitoriza a actividade da  CE e analisa e aprova operações estratégicas.

Se analisarmos a composição do Conselho de Administração do BES temos outra surpresa:


Alberto Alves de Oliveira Pinto - Presidente

Vítor Augusto Brinquete Bento- necessidade de ratificação da cooptação em Assembleia Geral

Bruno Bernard Marie Joseph de Laage de Meux – Vice-Presidente

José Alfredo de Almeida Honório - necessidade de ratificação da cooptação em Assembleia Geral 

António José Baptista do Souto

Jorge Alberto Carvalho Martins

Aníbal da Costa Reis de Oliveira
Rui Manuel Duarte Sousa da Silveira
Joaquim Aníbal Brito Freixial de Goes
Ricardo Abecassis Espírito Santo Silva
Amílcar Carlos Ferreira Morais Pires
Nuno Maria Monteiro Godinho de Matos
João Eduardo Moura da Silva Freixa
Pedro Mosqueira do Amaral
Isabel Maria Osório de Antas Mégre de Sousa Coutinho
João de Faria Rodrigues
Marc Olivier Tristan Oppenheim
Vincent Claude Paul Pacaud
Rita Maria Lagos do Amaral Cabral
Stanislas Gerard Marie Georges Ribes
Horácio Lisboa Afonso
Pedro João Reis de Matos e Silva
Xavier Musca
João de Almada Moreira Rato - necessidade de ratificação da cooptação em Assembleia Geral 

Idem, a bold, os administradores que faziam parte da equipa liderada por Ricardo Salgado e que ainda estão em funções: a grande maioria.



Ou seja, pasme-se - depois de tudo o que tem vindo a ser descoberto, coisas que do ponto de vista da gestão são gravíssimas e do ponto de vista de ética e de respeito pela regulação são reprováveis e que, conforme os jornais noticiam, indiciam comportamentos que podem vir a ser considerados ilícitos criminais - a maioria dos seus responsáveis ainda está em funções.

Saíram os membros da família mas os outros, que também puseram em prática ou foram coniventes com essas práticas, ainda lá estão.

Note-se que o buraco brutal não é apenas um rombo no património da família Espírito Santo, porque, se fosse só isso, azarinho o deles já que tudo isto resulta da gestão que sancionaram  - o brutal buraco é também, e sobretudo, um rombo no património de muitas famílias e empresas. E parece que se anda a brincar com isso.


Agora as contas:

Vejo que todos os rácios que aferem a solvabilidade bancária baixaram para níveis que não cumprem os mínimos recomendáveis e vejo que a exposição às empresas do Grupo é escandalosa. 

Sabendo-se que são empresas falidas ou em vias disso, prudentemente foram consideradas provisões para encaixarem o incumprimento. 

Vejo que foi reconhecida a imparidade entre o valor contabilístico da participação da PT e o seu real valor. 

Em relação a Angola, assumiu-se a opção benigna (isto é, que o governo de Angola vai chegar-se à frente).


Claro que muito mais há a dizer e, claro, se cada dia que passa se vão descobrindo mais cadáveres em decomposição, é difícil saber se o que está espelhado nas contas é tudo o que há a espelhar. O perímetro de consolidação é grande, disperso, muitas empresas fora e, portanto, parece difícil apurar todas as práticas desviantes em tão pouco tempo. Tomara que não apareçam mais desgraças nas auditorias que estão em curso mas é difícil que não apareçam. Talvez não sejam é da monta das que apareceram em catadupa nestes últimos dias.

Ou seja, admitindo que o 'grosso' da porcaria já veio ao de cima, parece ter havido a vontade de evidenciar grande parte das ligações perigosas entre as empresas da família (e que perigosas elas são!) e de contabilizar já tudo o que é buraco. Ora isso é benéfico. O que se pretende é transparência pois só assim se poderá restaurar a confiança. E a confiança é o motor que faz mover a economia e o sistema bancário.


De notar, contudo, que o trabalho de evidenciação dos 'podres' parece ter-se cingido ao crédito concedido às empresas do Grupo, isto é, dinheiro canalizado do BES para financiar empresas falidas do Grupo Espírito Santo. Penso que não foi feita uma análise do mesmo género a outras empresas que receberam financiamentos e que dificilmente vão poder cumprir com as suas obrigações.

No entanto, admito que o Banco de Portugal (que andou ceguinho no que se refere às transferências de dinheiro do BES para as empresas do Grupo) tenha andado minimamente atento no que se refere a crédito concedido em geral (a outras empresas ou organismos). Por isso, não vou entrar por aí. Mas era bom saber-se que isso está sob vigilância não vá terem sido concedidos avultados empréstimos a empresas que não apresentaram as correspondentes garantias, não vão somar-se novos grandes buracos a um buraco que já não é passível de ser tapado 'às boas'.

Era também bom que fossem rapidamente detectados quem foram os responsáveis, mandantes e executores, de práticas gravíssimas como as de desviar dinheiro dos clientes, sem o acordo deles, para financiar empresas falidas do Grupo. Isto, a ter mesmo existido, é crime e grave e, dados os montantes em causa, é mesmo muito grave. Era bom saber-se que essas pessoas iam ser afastadas e o mais brevemente possível. O sistema bancário só vive com agentes acima de qualquer suspeita.

É que as práticas muito graves de que se tem tido notícia são tanto mais graves quanto afectaram pessoas que tinham as suas poupanças no BES, pensando que era um banco de gente séria, e que, quando deram por ela, o dinheiro tinha sido convertido em obrigações ou títulos que valem bola, zero, coisa nenhuma.

Mas, partindo já para as conclusões, uma coisa é certa: o banco precisa de se recapitalizar. Como já aqui vos tinha dito, reinava o nervosismo no Banco de Portugal ao perceber-se que, de facto, não sabiam de nada e que tudo o que Carlos Costa andava a dizer não passava de andar a vender refrescos. Que a almofada chegava, que o banco estava blindado, que a exposição estava contida. Ele a dizer isto e os factos a transvasarem para a opinião pública, denunciando a incorrecção do que ele dizia. entretanto remeteu-se ao silêncio - e ainda bem. Quando fala e a gente uma hora depois vê que ele se voltou a enganar, só desprestigia ainda mais o papel do BdP na regulação bancária a que se tem vindo a assistir em Portugal.

Diz Carlos Costa que há privados interessados interessados em acudir ao BES. Acredito que sim mas apenas em abstracto. O Banco vale uma ninharia, as acções estão a preço de uva mijona. Tentador. Mas, na prática, nas presentes circunstâncias, quem é que se arrisca a meter-se numa 'furada' destas sem saber ao certo as contas, com a maltinha da equipa de Salgado toda ainda dentro do Banco? 

Ou isto havia um raide, com aquela gente toda dali para fora e uma equipa experiente a tomar conta de tudo, e a chegar a conclusões em tempo recorde, ou não vejo como é que o BES escapa sem uma injecção de apoios de outra ordem (ou a verba que a troika tinha reservado mas cuja utilização agora vai ser penosa pois vai exigir cortes em quem não os esperava ter, ou qualquer outra figura que se arranje).


Parecer-me-ia razoável que a família vendesse rapidamente a sua participação no BES para com, o fruto da venda, saldar algumas dívidas, e que os novos donos convocassem uma Assembleia Geral para nomear nova administração. Se isso não acontecer, não terá o BdP poder para impor uma administração completamente 'limpa' do passivo reputacional que esta carrega?

Os novos depósitos baixaram consideravelmente e tenderão, nesta fase de incerteza, a reduzir-se à mínima expressão. Tomara que os clientes não acorram aos balcões. Ora sem depósitos, o banco não se aguenta. E se não se aguenta isso será uma desgraça impensável para o País.



O BES não é o BPP. O BES é um Banco cuja queda feriria de morte muitas famílias e muitas empresas. Como o disse aqui quando Passos Coelho - armado em farroncas, acompanhado pelo seu séquito de papagaios - disse que o Estado não se iria meter neste assunto, acho que é preciso prudência nas palavras e sangue frio e muita cabeça na análise das implicações de cada acto.


O que ele deveria dizer é justamente o contrário: que o Governo e o BdP tudo farão para que o BES não vá ao fundo, ou seja, o equivalente ao que o Draghi fez quando, ao dizer que o BCE tudo faria para combater a especulação e a crise financeira, estancou a especulação, isto é, a crise.



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Entretanto, vi que saíu um outro Comunicado, um Plano de Reestruturação do BES, Plano do BES para o Futuro, este já assinado por Vítor Bento. Não acrescenta muito, claro, nem poderia acrescentar (não houve tempo para ir mais além), mas assume que é indispensável um aumento de capital e uma responsabilização de quem causou tamanha ruína e fala no que é a medida mais óbvia e imediata (se bem que, nestas coisas, nunca é possível o imediatismo): a venda de activos. Já aqui falei nisso várias vezes. Vender à pressa para tapar alguma coisa. Só que, face à dimensão do buraco, não estou bem a ver que activos possam ser vendidos no curto prazo que valham coisa que se veja. Mas, enfim, isso é obviamente parte do que tem que ser feito. 


Falo nisto e tento abstrair-me da aflição em que estão os trabalhadores do GES e do BES. Não mereciam isto. Aliás, nem os trabalhadores, nem os clientes, fornecedores, nem os contribuintes (porque, de uma maneira ou outra, isto vai pesar em todos eles - isto é, em todos nós).

Quanto aos culpados de toda esta infame situação, a justiça que faça o que tem a fazer. Esta quarta feira decorreram novas buscas, desta feita na sede da Rioforte. Tomara que não se embrulhem em infindáveis investigações. Tomara que tudo isto seja rápido para a credibilidade no sistema bancário português se restabeleça rapidamente.



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Caraças. Isto não acaba. Quando vou dar isto por terminado, espreito as notícias e já há novo comunicado. Mas esta gente não me dá tréguas?

Agora parece que Carlos Costa está a acordar. Como sempre, acorda tarde e devagarinho. De qualquer maneira: aleluia!



Banco de Portugal inibiu direitos de voto do grupo Espírito Santo no BES. 


O Banco de Portugal determinou a "inibição dos direitos de voto inerentes à participação qualificada que a Espírito Santo Financial Group e a Espírito Santo Financial (Portugal) detêm no BES", afirmou o regulador em comunicado.


Na prática esta decisão retira à família Espírito Santo qualquer poder de decisão sobre o banco.



Banco de Portugal suspende Joaquim Goes, António Souto e Rui da Silveira


Suspensão de administradores do BES e inibição dos direitos de voto da ESFG são algumas medidas adotadas pelo regulador para garantir estabilidade do banco e a concretização do aumento de capital


O regulador anunciou  em comunicado a "suspensão, com efeitos imediatos, dos membros dos órgãos de administração com os pelouros de auditoria, compliance e gestão de riscos, bem como os titulares do órgão de fiscalização", assim como a inibição "dos direitos de voto inerentes à participação qualificada que a Espírito Santo Financial Group (ESFG) e a Espírito Santo Financial detêm no BES".


O regulador liderado por Carlos Costa  refere que "a substituição destes membros deverá ser assegurada por proposta dos acionistas, com eventual cooptação pelos membros em funções".

Estas medidas juntam-se à imposição da "realização de um aumento de capital por parte do BES" tendo o Banco de Portugal incumbido a administração de "apresentar um plano de capitalização cuja execução permita, a curto prazo, o reforço dos fundos próprios para níveis adequados de solvabilidade".


Aleluia! Aleluia!


Uma vez mais dá ideia que este Carlos Costa anda a reboque do Pedro Santos Guerreiro que esta quarta feira já tinha alertado para o óbvio: os que, na anterior equipa de gestão de Salgado, eram responsáveis pelos pelouros de auditoria, compliance e gestão de riscos ainda estão em funções no banco.

Não seria melhor o Pedro Santos Guerreiro ir tomar conta do Banco de Portugal e pôr o Carlos Costa com dono? Ou assumir que o Carlos Costa passa a não executivo do BdP e que a sucursal executiva é o núcleo duro da Economia do Expresso (Pedro Santos Guerreiro/Nicolau Santos/ e, vá lá, talvez também o João Vieira Pereira)...? A mim parecer-me-ia melhor.



A mim também me teria parecido melhor que o Costa tivesse saído com este comunicado mais cedo para eu não ter tido que gastar o meu latim com o que escrevi acima. A esta hora já podia estar a dormir. É que ninguém me poupa, senhores.

Adiante.

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A música lá em cima é Robert Fripp: 1986 from "Let the power fall".

As imagens são graffitis, fotografias, cartoons - o que, assim à pressa, arranjei na net sobre o tema.

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Ia descansar a cabeça, escrevendo outra coisa qualquer num post autónomo mas vi as horas, quase uma e meia da manhã e amanhã tenho que me levantar mais cedo e começo o dia logo com uma reunião em que tenho que estar acordada, tanto mais que me cabe a mim fazer a despesa. Por isso, fico-me por aqui. Mas, para não me ir deitar a pensar em provisões e implosões, imparidades e barbaridades, é aqui mesmo que junto uma música e um poema.


Com vossa licença, portanto: Stabat Mater

Arvo Pärt





O homem que visou o pássaro no seu voo já não existe.
Nem a sua tosca mão segurando o punho do revólver.
Nem o passo caindo em espiral entre as ervas.

O beijo. O encontro das bocas no seu último degrau.
Nem sequer a escada de caracol
Subindo como volutas de madeira até à varanda,
Nem a varanda onde sonhavas sob o traje de linho.

Não existe a mulher
Que saboreava furtadas cerejas
Nem a ira do ginete no seu cavalo atrás dela
Nem o cavalo como um vento encerrado na sua pelagem.
Chegado o momento, tocados pelos dedos do vazio,
Qual a diferença com o que nunca foi?



[Estações de Juan Manuel Roca in Os cinco enterros de Pessoa, numa tradução de Nuno Júdice]


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Nota: Volta e meia transcrevo excertos de artigos, nomeadamente do Expresso online como é o caso vertente. Ora, quando transcrevo, faço copy paste e, portanto, vem como lá está. Se tem erros ou letras a menos ou outras coisecas do AO, é assim que fica. Essas partes acabam por destoar daquilo que eu escrevo, em que escrevo sem ligar ao AO. Posso, além do mais, dada a pressa com que escrevo e o estado de sonolência que, às horas a que escrevo, já me ataca, cometer erros, faltas de letras, vírgulas fora do sítio. Feito este aviso, só posso pedir a vossa compreensão para o pot pourri que aqui vos apresento.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela quinta-feira. 
Sejam felizes, apesar de tudo, está bem?

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quarta-feira, julho 30, 2014

BES - neste dia 30, o dia de todos os medos, as contas do 1º semestre. O BES não era o BPN. O BES não era um caso de polícia. O GES não tinha contaminado o BES. Carlos Costa garantia que tinha blindado o BES. A troika fez testes de stress e o BES era um banco sólido. (A troika agora diz que quem tinha que auditar as práticas do BES era o Banco de Portugal - mas o BdP olhou para o BES como um míope, só uns vagos contornos). Agora vivem-se dias de susto, as surpresas sucedem-se, os problemas são mais velozes que as soluções. O Grupo desagrega-se à vista de todo o mundo. Aparentemente apenas algumas pessoas perceberam o que se estava a passar. Nicolau Santos e Pedro Santos Guerreiro fizeram mais pela transparência financeira do que todas as instituições oficiais juntas. Honra lhes seja feita.


No post abaixo já vos falei de lingerie, assunto importante para todas as mulheres que gostem de ser mulheres e, claro, para todos os homens que gostem de mulheres. Falo de um certo bustier que persegui por quase meia França e de uma linha própria para mulheres carnudas e, inclusivamente, para mulheres em fase pós-maternidade. Que a coisa venha pela mão de Dita, a Dama do Burlesco, apenas acrescenta um certo picante.

Mas isso é a seguir. Aqui, agora, a conversa é outra.


Lancemos Os Búzios, se faz favor - a ver se nos orientamos





Já que estou numa onda de assuntos picantes, volto ao assunto mais picante de que há memória na história financeira portuguesa das últimas décadas. Isto é uma coisa... São umas atrás de outras.

Quando há concursos de cantorias na televisão, fico sempre parva com a quantidade de gente que aparece a cantar bem. Como nunca dei para o dó de peito, aprecio ainda mais os que nasceram com esse dom. E, em Portugal, são aos molhos: resmas, paletes, desde crianças a velhos, todo o mundo canta bem. Fico a pensar: não deve haver outro País assim. Nisto somos os maiores.

Depois, também me espanto com a quantidade de gente que vai a concertos. A crise pode estar no auge que os concertos nunca desiludem os organizadores. Tudo carregadinho de gente, coliseus a rebentar pelas costuras, pavilhões, palcos ao ar livre, tudo cheiinho; e melhor: os artistas estrangeiros que cá vêm dizem que não há público como o português. Levam Portugal no coração e nunca mais tiram o país da rota dos seus concertos. Ou seja, lá está, mais um ponto forte: somos bons a ouvir música.

Ou seja: por um lado, muitos a dar música, e muitos mais ainda a deixarem-se ir na música.

Não sei quantos aldrabões, mas oh quantos, senhores, já tivemos na área financeira. A música que nos deram. Lá está: tem a ver com as facetas acima referidas.


Desde o Alves dos Reis, esse extraordinário burlão, até ao Oliveira e Costa do BPN e ao Rendeiro do BPP, passando pelos artistas do BCP, até agora a este verdadeiro festim do Grupo Espírito Santo... toda uma tropa fandanga que parece ter nascido com vocação para enganar o próximo. E a maioria - pobres otários, alegres e contentes - a ir na cantiga.


Do Ricardo Salgado que mandava e desmandava se dizia que tinha a coisa financeira no ADN, banqueiros por questões genéticas. A maior parte dos humanos tem grandes parecenças genéticas com os porcos mas o Ricardo Salgado não, qual porco, ele era diferente, tinha ouro e moedas a entrelaçarem-se nas cadeias de ácido ribonucleico.

Afinal, sabemos agora, não era bem a entrelaçar-se: era mais a ensarilhar-se.

Um ensarilhanço de todo o tamanho. O verdadeiro enfarilhanço. Milhões e milhões e milhões: uma teia impossível de desensarilhar.

À medida que a caixa se vai abrindo, vão saindo as minhocas. É que nem é preciso cavar para as minhocas aparecerem. Nem é preciso dar tiros para os melros caírem. Eles caem mortos aos pés de Vítor Bento e de todos quantos, em poucos dias, conseguem ver mais do que KPMG, BdP, Troika e toda essa turminha de totós que por aí andou, ao longo de anos, a brincar aos ceguinhos.


Vamos ver se todos esses pequenos papagaios que por aí andaram pelas televisões a dizer que o Governador do Banco de Portugal era de Olhão, uma regulação de detrás da orelha, as águas entre o GES e o BES todas muita bem separadinhas, e, que ideia!, que o BES não tinha nadica a ver com o BPN, e que qual caso de polícia, qual carapuça!... não vão ter que voltar a dar o dito por não dito? Coisa que, de resto, artistas como são, farão com a lampeirice do costume.



Uma vez mais, tiro o chapéu a Pedro Santos Guerreiro e a Nicolau Santos (e, vá lá, concedo: se calhar também devo fazê-lo em relação ao João Vieira Pereira) que, persistentemente, foram puxando as pontas e percebendo o enleio que para ali estava e que, corajosamente, se chegaram à frente e mostraram ao País a armadilha letal que estava a ser estendida aos pés de Portugal.


E a armadilha era, de facto, terrível.



O BES financiou a actividade corrente de vários grupos empresariais na condição de estes contraírem outros créditos para aplicarem em dívida e acções do Grupo Espírito Santo. Em causa estarão algumas centenas de milhões.




Salgado e Morais Pires implicados em "engenharia financeira" no BES


Empréstimos de clientes do BES ao GES através da Eurofin estão sob suspeita - e por detrás do aumento dos prejuízos do primeiro semestre. Indícios criminais serão reportados. Salgado, Morais Pires e também a diretora Isabel Almeida podem ter de dar explicações.


Quadros superiores do BES terão montado um esquema para financiar o Grupo Espírito Santo com dinheiro de clientes do BES, apurou o Expresso. Em causa está a direção financeira do banco, que operava sob responsabilidade direta de Amílcar Morais Pires. 


A Eurofin, uma "holding" na Suíça, está no centro das atenções. O caso, que poderá ter implicações criminais, é a razão do aumento dos prejuízos no primeiro semestre do banco.




Prejuízo do BES pode chegar aos três mil milhões


O escândalo avoluma-se. Reguladores descobrem mais dívida de clientes do BES ao GES e forçam provisões. O prejuízo semestral galopa para um valor próximo dos três mil milhões. Almofadas financeiras já não bastam. Aumento de capital é inevitável.

O BES vai fechar o primeiro semestre com o maior prejuízo de sempre de um banco em Portugal. Será 15 vezes maior do que as estimativas dos analistas: perto de três mil milhões de euros, sabe o Expresso. Tudo porque os reguladores e os auditores acabam de descobrir mais esqueletos nos armários: há mais dívida de clientes do BES ao GES do que se supunha, através de esquemas de engenharia financeira que se desconheciam. 


Caso pode ter mais consequências criminais.




Upss... Indícios criminais...? Mas então o que é que a gente fina tem a ver com o rebotalho? Pensava que nada.

Não me digam agora que a gestão dos Espíritos escondia afinal práticas pouco abonatórias...? Sério...? Juram...?

Mas o excelentíssimo Carlos Costa não tinha assegurado que Ricardo Salgado estava carregadinho de idoneidade? Então se ele até tinha pago alguns dos milhões que antes tinha escondido, como desconfiar que ele não era gente séria?

Bem. Se também não se lembrava ou não sabia nada de offshores da altura em que era responsável pela área internacional do BCP, como poderíamos querer que Carlos Costa agora percebesse tudo o que via? Além do mais, coitado, se o homem tem algumas limitações na visão, que mal tem isso? Querem lá ver que vamos agora exigir que os reguladores tenham todos visão apurada e que sejam todos uns Einsteins, não? Ora, era só mesmo o que faltava.

Adiante.

E agora?


Pois bem. Quem investiu no aumento de capital do BES, está a arder. Cerca de 60% do que lá meteram já foi ao ar. Muitas fortunas aplicadas nas empresas do Grupo esfumaram-se. Muito dinheiro levou sumiço. Muitas empresas vão abanar. E só não me alongo mais porque já aqui o fiz várias vezes.


Mas, uma vez limpa a casa (tanto quanto é possível em meia dúzia de dias...), descobertas as carecas, assumidas as trapaças e os embustes, o BES deitará mãos à obra, arranjará forma de reforçar o capital, mudará de mãos (se calhar também de nome, como tem vindo a ser referido) e... a vida continua.


Para esclarecer todas as dúvidas, o Jornal de Negócios, preparou um esclarecedor conjunto de perguntas e respostas que recomendo a quem quiser perceber melhor as implicações do que está a acontecer. Serviço público.

Os resultados negativos esperados no BES no primeiro semestre são motivo de alarme? Os contribuintes podem ser chamados a apoiar o banco? Os novos desenvolvimentos trazem dúvidas para os depósitos dos clientes do BES? Os clientes de retalho do BES que investiram em papel comercial do GES podem estar tranquilos? Porque é que a queda das acções pode ser um problema? Etc.


Tudo respondidinho, e bem, no Jornal de Negócios, em mais um belo trabalho de uma das mulheres de quem se tem falado a propósito do best seller do momento, o Último Banqueiro: Maria João Gago.

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E mais não digo porque já passa das 2 da manhã e amanhã a alvorada é cedo e quero ver se ainda consigo dormir qualquer coisinha.

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A música é Os Búzios na voz de Ana Moura.

Os graffitis são do meu muito amado Banksy. O cartaz da senhora que já admite nada lhe restar para comer senão os ricos, não sei por onde desfilou.

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Nota: No outro dia, escrevi uma letra mal e a palavra transformou-se num erro grosseiro. Não estou livre de que isso me volte a acontecer. Aliás, é mais do que provável que isso aconteça aos pontapés. Estou a escrever quase a dormir e já não consigo rever o que escrevi. Caso detectem erros, por favor, não se acanhem, corrijam-me, está bem?


E, se me permitem, relembro: se quiserem descansar a vista ou apimentar um pouco a vossa vida, avancem, por favor, até ao post seguinte.


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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela quarta feira. 
Saúde, sorte e sonhos bons é o meu desejo para hoje.


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Uma lingerie para mulheres que gostam de ser mulheres. Von Follies por Dita Von Teese, a Dama do Burlesco.


Gosto de lingerie.

Tenho ideia de que já aqui contei: uma vez, no sul de França, descobri uma lojinha Soleil Sucré. Agora acho que a marca decaíu e as lojas de que aqui falo, ao que me parece, até já fecharam. Na altura, talvez há uns cinco ou seis anos, não sei bem, os modelos eram uma graça e as boutiques um apetite.

Como é lógico, abasteci-me.


Mas havia lá um corpete lindo, um espartilho de tipo Marie Antoinette, todo em renda barroca, que achei que não era prático, com colchetes nas costas de alto a baixo. Não o trouxe. Mas, mal nos pusemos a caminho para Cannes, já eu ia arrependida. Por razões diversas, em Cannes, onde também há uma boutique Soleil Sucré, nunca consegui coincidir com as horas em que a loja estava aberta já que tínhamos um preenchido programa de festas. Só me apetecia mudar tudo mas, claro, não ia sacrificar o programa alheio. Por isso, roída, conformei-me. 

Mas eu não sou bem assim. Vários dias depois, depois de termos estado de férias na costa mediterrânica, não descansei enquanto não voltei ao local do crime, Arles. Azar: a loja fechada. Chegámos lá talvez à 1, tinha acabado de fechar e só abria, creio, às 4 da tarde. Almoçámos, tentei fazer tempo mas, uma vez mais, o programa de festas não era compatível com andar às voltas numa rua à espera que a loja abrisse. Escuso de dizer: o meu marido furioso.

Pronto, rendi-me. Desolada, com a cabeça no bustier beige e rosa champanhe, tentei retirar daí uma ilação: não voltar a virar costas a uma tentação. É que depois arrependemo-nos e já não há nada a fazer.

Até que, uns dias depois, já estávamos noutra ponta, desta vez em Bayonne, e a ideia era jantar, dormir e zarpar. Estávamos, nessa noite, no dia 30 de Abril e, quando fomos jantar os petiscos do costume, demos uma volta pelas redondezas e... que vejo eu...? Pois. Uma perseguição: uma lojinha Soleil Sucré e, na montra... o bendito corpete. Fiquei passada. A loja fechada e o dia seguinte, 1 de Maio, feriado. Nem queria acreditar.

No dia seguinte, mal acordei, resolvi: vou lá. O meu marido decretou a sentença de sempre: 'És maluca'. Dizia ele que as lojas estavam todas fechadas. Acreditei, dia feriadíssimo. Mas não desisti. Não quis foi arrastá-lo comigo até porque não queria que ele constatasse de perto a minha mais que certa flagrante derrota. Fui sozinha.

O comércio todo fechado. Uma manifestação do 1º de maio na rua, palavras de ordem, bandeiras, os bascos em luta.

Rua a rua até lá chegar, a pé, e tudo fechado. Podia ter desistido. Mas não desisti. A rua, que é uma rua estreita, com as lojas todas fechadas. Fui mesmo até à porta. E não é que estava aberta...? Juro. Nem queria acreditar. A única loja aberta!

Quando passado um tempão cheguei ao hotel com um saco do Soleil Sucré o meu marido ficou estupefacto. E eu, claro está, vitoriosa e radiante.

Claro que raramente visto o dito bustier.

Quanto o coloco, fico uma elegância, cinturinha de vespa, e sexy, as poitrines a rebentarem quase debaixo do queixo. Convenhamos que não é peça para usar no dia a dia. É uma verdadeira pièce de résistance.

Mas é lindo, mesmo que apenas para ser contemplado dentro de uma gaveta, no meio de balconnets e outras obras de arte.

Vem isto a propósito de uma sofisticada gama de lingerie para mães de família, balzaquianas, mulheres de carnadura generosa que gostem de se sentir mulheres. Há até modelos dedicados à maternidade.

Felizmente parece já lá ir o tempo em que os soutiens para a altura da amamentação eram mal jeitosos, assexuados.

Não sei se a linha de que falo existe em Portugal e, se não existir, aqui fica a dica para quem quiser obter uma representação. Caso contrário, talvez se consiga mandar vir através da internet. Um charme, acho eu.



Dita Von Teese apresenta alguns modelos da sua colecção de lingerie Von Follies






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Un plaisir.

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terça-feira, julho 29, 2014

Uma história muito estranha


No post abaixo já mostrei uma produção caseira de moda a la Chanel com os meus achats nos saldos (pode ler-se achados que também se lerá bem).

Penso, sinceramente, que não preciso de mais roupa. Mas isto, senhores, não é uma questão de precisão, isto é mesmo uma questão de vaidade feminina. E é um outro disparate ainda mais grave: é aquela sensação absurda de que estou a fazer um grande negócio, a poupar imenso dinheiro (please, poupem-me... sei bem que não estou a poupar coisa nenhuma, que estou é a gastar... mas, volta e meia, não quero disfarçar que não sou uma loura burra, e esta, quando vou ver o que há nos saldos a fazer de conta que vou poupar dinheiro, é uma delas). Note-se que, estando perfeitamente ciente que devia era não comprar qualquer peça de roupa nos próximos 10 anos, apenas frequento lojas onde sei que posso comprar pechinchas. Já ninguém me apanha em lojas caras. E só não vou à Primark porque fui lá um dia espreitar e até me assustei. Uma coisa claustrofóbica: gente e roupa por todo o lado, uma pessoa mal consegue respirar, quanto mas escolher como deve ser.

Bem.

E, por contraponto, também lá mostrei Chanel à séria

Mas isso é a seguir. Aqui, agora, a conversa é outra. Ainda não sei qual é mas no fim logo se vê.


Música, se faz favor: Für Alina.





Por vezes, quando lá estou, ouço um vago ruído, como se alguém falasse em surdina. Espreito pela abertura do velho muro que há ao fim do pátio. Vou até lá, pé ante pé, cheia de medo. Receio sempre que, ao encostar a meu rosto, encontre do lado de lá um olho assustador, alguém a espreitar também para o lado de cá. Ou uma boca aberta, terrível.

Mas esses receios revelam-se sempre pueris. Geralmente não há nada. Um terreno baldio, o que em tempos terá sido um jardim, agora um matagal. Mal se vê a porta da casa. Chega-se a essa porta alta e com a tinta caída por uns degraus cheios de folhas secas, vasos partidos, ramos secos. Em tempos terá sido uma varanda, agora não se sabe o que há ali. Se calha ouvir-se algum som, o meu coração dispara, descompassado, mas logo se percebe que será um qualquer bicho perdido.

Não sei a quem pertence aquela casa que mal consigo perceber como é. Da rua não se vê, está mais para dentro e deve estar rodeada pelo arvoredo denso que se vê de longe. Pergunto, por vezes, a quem por lá passa, o carteiro, a mulher da carrinha do pão. Não sabem. Nunca lá viram ninguém. Ouviram dizer que os donos a abandonaram mas, ao certo, ninguém sabe.

No outro dia, fui até ao portão, vi se estava aberto. Não estava. Espreitei. Nada. Mato e desolação. Afastei-me com um certo receio. Mas, enquanto me afastava em silêncio, ia pensando que não fazia sentido ter medo. Não passa ninguém por ali, a estrada está sempre deserta excepto quando passa a carrinha do pão, de manhã, a apitar, ou o carteiro duas vezes por semana. De resto, nunca há ninguém.

Quando me sento à sombra a ler um livro, sento-me de costas para o buraco do muro que separa a minha quinta da quinta abandonada. Tenho medo que alguém me vigie do outro lado.

Desde há algum tempo e de vez em quando, geralmente quando a penumbra do fim do dia começa a encher de sombras o espaço que me rodeia, há um gato que salta do muro e vem ter comigo.

Ao princípio vinha a medo, espreitava-me, estudava-me. Eu ficava transida de medo como se o gato não fosse um gato mas um qualquer bicho disfarçado de gato. Ou gente.

Mas o gato foi-se aproximando, meigo, e eu fui-me deixando cativar. Agora, muitas vezes, quando vou para debaixo da grande figueira, levo um prato de leite e fico à espera. Mas estou ansiosa enquanto ele não chega. Depois, se sinto um roçar vadio, um deslizar descarado, sinto-me arrepiar. Tenho medo de me virar, que não seja ele. Ou que ele venha transformado, me ataque.

Depois ele chega, olha para mim com aquele seu olhar profundo que parece o fundo do mar, eu sorrio nervosa e digo-lhe 'demoraste'. Ele limita-se a beber o leite. Depois lambe-se, espreguiça-se, e deita-se perto de mim.

Se, do lado de lá, vem um ruído, reparo que o seu pêlo se eriça. Levanta-se inquieto. E eu fico ainda mais inquieta.

Quando anoitece, eu cheia de medo, medo que ele se transfigure, vou sorrateiramente para dentro de casa. Por vezes, ouço-o a miar, parece um choro. Fico arrepiada, parece um gemer de gente.

Um dia ele não apareceu. Esperei. Fiz bchchh, bchchh, mas fiz baixinho com medo que alguém me ouvisse. Parecia-me ouvir ruídos do lado de lá. Como uma gata cheia de medo, fui até ao buraco do muro, quase a tremer, silenciosa, a respiração quase suspensa e, a medo, espreitei.

Então fui surpreendida por uma visão irreal. O meu coração disparou, o meu coração sempre tão ansioso.

Na varanda, uma mulher muito velha, com longos e fracos cabelos grisalhos, estava sentada com uma toalha pelos ombros. Uma mulher mais nova, cujo rosto não consegui ver, parecia estar a cortar o cabelo à idosa. Mas depois, quando se desviou do meu ângulo de visão, vi que não era a cortar, era a pentear, tinha-lhe feito uma trança e enrolara-a atrás. Depois colocou a mão no ombro da outra e afastou-se e, de dentro da casa, começou a sair uma música solta, ao de leve, piano. O cenário perturbava, era inquietante, como se estivesse para acontecer uma qualquer tragédia.

Então, a mulher velha levantou-se a custo, abriu os braços e a custo fez como se dançasse, mas muito lentamente, ao som da lenta música. Depois sentou-se de novo e ficou de frente para mim. Assustei-me. Tive vontade de fugir. Mas não consegui, estava paralisada. A mulher parecia fitar-me. Vi então que talvez não fosse velha, que talvez o cabelo não fosse branco. Era uma mulher estranha.

A música continuava a sair de dentro da casa, uma nota, outra, notas soltas como gotas de chuva, como breves e silenciosos soluços.

Reparei que o gato andava sobre o muro da varanda, como se conhecesse a mulher. Depois, inquieta, reparei que o rosto e pescoço da mulher pareciam cobertos por bichos, mas bichos que não a incomodavam.

A mulher não pestanejava, apenas olhava o muro. Afastei-me ligeiramente para a poder ver sem que ela me visse. Reparei, então, que com uma das mãos tocava o rosto. Pensei que estava a afastar os diabólicos insectos mas depois vi que não, parecia afagar o próprio rosto, como se, com compaixão, limpasse lágrimas escorrendo.

O meu coração estava assustado, mal respirava com medo que, de alguma forma, a minha presença fosse pressentida, estava com medo do que se passaria naquela casa tão estranha, com muito medo, com um medo irracional. Tanta inquietação naquela casa que me já me parecia assombrada.

Então, ouvi uns passos, um salto. Quase perdi os sentidos, tal o medo. Poderia ter corrido para casa mas não fui capaz, estava incapaz de me mover. Fechei os olhos, aterrorizada.

Algum tempo depois, a medo, a tremer, abri os olhos.




Do outro lado, ameaçador, o gato espreitava. 


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Querem crer que estou mesmo arrepiada...? Bolas para o gato, que me assustou mesmo.

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A música é de Arvo Pärt - Für Alina.

A fotografia de Kate Moss é da autoria de Steven Meisel. A dos gatos não sei.

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Adiante. Relembro: se descerem até ao post já a seguir, poderão ver o belo negócio que fiz com as minhas compras nos saldos deste ano e poderão ver o que é moda a sério.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela terça feira. 
Sem medos, mas com subtis mistérios, doces fantasias. E saúde. E alegria.


Era uma vez...Coco Chanel. E era uma vez eu, que comprei umas coisas 'a la Chanel' e que estou desejando de as estrear. Venha daí uma reunião especial em dia fresquinho, se faz favor.


Não sei fotografar roupa. Penduro as coisas num cabide e fica tudo pendão, sem graça. Parece que faz falta o meu recheio para que as toilettes ganhem graça (aqui a minha avó, diria com ar gozão: gaba-te cesto). 

É mais fácil apanhar uma borboleta em pleno passe de ballet abeirando-se de uma madressilva do que um casaco que não se mexe e fica onde eu o puser.

Depois, sou sempre coarctada nestas minhas démarches. Andava eu aqui na sala a ver como haveria de dispor o casaco, as luzes todas acesas, e o meu marido, deitado no sofá, a ver o futebol e incomodado com aquela luz toda. Parece que ainda não se habituou a estas minhas produções fotográficas porque olhou muito admirado, 'O que é que andas a fazer?'. Disse-lhe que amanhã logo veria, quando viesse cultivar-se aqui no Um Jeito Manso. Como de costume, não disse nada, limitou-se a concluir: 'És maluca' e 'apaga mas é essa luz'.

Portanto, tive que me deixar de fantasias, pendurei-o, ajeitei a écharpe, coloquei o colar e pronto, lá vai disto.

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  • Casaquinho a la Chanel que pode ser usado no verão ou na meia estação. Comprado nos saldos da Zara por 40 euros. 

Claro que não são 40, devem ter sido 39,9. (Isto dos ,99 são os do comércio para irem de encontro àquela coisa da oneomania conforme aprendi com o ilustre Plúvio)
  • Écharpe comprada num vendedor de rua no Chiado - 5 euros

  • Colar comprado nos saldos da Parfois - 8 euros (isto é, 7,99€). Uns brincos de tipo pérola, comprados por 4€ também nos saldos da Parfois, ficarão mesmo a fazer pendant.

  • Ficará bem com blusinha branca fininha, sem mangas ou, quanto muito, de manga curta. Decotada, claro. Em azul claro ou em verde água também será boa ideia.
  • E poderá ser usado com calça justa, afunilada, pelo tornozelo, em azul escuro (comprei um par, impec, por 20€ também na Zara) mas também ficará bem com umas calças justinhas brancas ou uma saia branca.
  • Em qualquer dos casos, sapatos azuis escuros com saltos bem altos (ou uns que tenho em dois tons de azul, um dos quais a atirar para o esmeralda, que condiz bem com os tons do casaco e da écharpe)





Bem, mas isto sou eu armada em madame que veste Chanel. E não se pense que é nonsense total da minha parte - não senhor. Coco era também assim (mais coisa, menos coisa, claro): reinventava, ousava, atirava-se para a frente. Desavergonhada como eu mas com um talento e um jeito para os negócios que a mim, para mal dos meus pecados, não me assiste (já que não passo de uma mera proleta).


Gabrielle Chanel - Inside CHANEL






Já agora, para os que apreciam o estilo, aqui fica o Making of relativo à campanha Pronto a Vestir 2014/2015, "Coco Coach",  com a irreverente mas, de facto, muito expressiva Cara Delevingne e com Binx Walton. Karl Lagerfeld comanda a operação.




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segunda-feira, julho 28, 2014

Joana Lopes, J. Rentes de Carvalho, Carlos Azevedo, Luís Filipe Castro Mendes, Angélique Kidjo e Jiří Kylián - para estarmos atentos e para não nos esquecermos de sentir solidariedade e compaixão, para compreendermos melhor o mundo, para não nos esquecermos dos outros que somos nós e para, apesar de tudo, não nos esquecermos de apreciar a beleza que nos rodeia


No post abaixo já falei da saia justa em que estavam os jornalistas e comentadores numa altura em que Ricardo Salgado era o dono disto tudo, mas como alguns, apesar disso, puseram a sua consciência e competência profissional acima dos receios e entraves e cumpriram com o seu dever de informar na altura certa - correndo todos os riscos e abdicando de todas as prebendas. E, a propósito, falei dos homens do Expresso. E falei, ainda, de algumas relações pessoais entre comentadores e Ricardo Salgado. E falei de partidos. E de férias de luxo pagas como forma de manter os opinion makers ou os decision makers à mão de semear.

Assuntos desagradáveis, preocupantes, revoltantes.

Só espero é que, em breve, o BES esteja de novo sólido, com uma gestão profissional e que inspire confiança, e que a economia em geral e as economias em particular não saiam muito penalizadas. Quanto à família, lamento. 

Mas isso é a seguir. Aqui, agora, a conversa é outra.


Aqui, agora, vou até a alguns textos que, nos últimos dias, despertaram a minha atenção de forma mais marcante. Vou ilustrá-los com fotografias que fiz este domingo in heaven na tentativa de que a beleza da natureza possa atenuar a aspereza dos tempos que atravessamos e que, de alguma forma, se reflectem nos textos que percorrem a blogosfera.



Redemption Song





Desde já agradeço a quem tão generosamente partilhou com os seus Leitores os textos que vou transcrever e perante quem me penitencio pelo abuso de para aqui os trazer na íntegra. Mas a verdade é que tive vontade de juntar os textos. São palavras oportunas, que de certa forma se tocam, e que convidam à reflexão. Muito obrigada.


No Entre as brumas da memória, Joana Lopes escreveu 'O último dia':



João Paulo Baltazar foi um dos muitos jornalistas atingidos pelos despedimentos da Controlinveste. Ontem foi o último dia em que esteve na rádio que ajudou a criar. Deixou no Facebook um texto que abaixo transcrevo, precedido por um comentário de Carlos Vaz Marques.

Carlos Vaz Marques: 
Hoje é o último dia de trabalho do João Paulo Baltazar na TSF, de que ele foi um dos fundadores. O melhor entre os melhores foi despedido. É o fim de qualquer coisa, com certeza. Ainda não sei exactamente de quê, mas seguramente depois disto nada será como dantes. Quero que saibam que amanhã, sábado, quando me ouvirem a editar os noticiários da manhã, não hei-de estar só triste, estarei envergonhado.
João Paulo Baltazar: 
Para acabar de vez com a nostalgia
O matraquear das máquinas escrevinhava o som de oficina – as nossas mãos nas palavras que, cinzeladas, soltavam faíscas. Tac, tac, tac, plim, zzzzzt ... com a cabeça e o coração em cada frase. O magnético cruzamento dos sons, desenrolados das fitas, era parte de uma coreografia que só os melhores dançavam com uma leveza certeira. A rádio era muito física nesses oitenta, derramados nos noventa. Saíamos a correr para a rua, voltávamos com a urgência da notícia (era preciso contá-la melhor, depois do directo), com o desejo de modelar e polir uma história. Tac, tac, tac, plim... zzzt, zzzt, mais um bailado de sons e palavras, com a cabeça e o coração. Gritávamos em uníssono: abaixo o Portugal sentado!!
Antes e depois de cada turno, discutia-se tudo. Era importante criticar, aperfeiçoar, ir um pouco mais longe, vigiar o rigor, desafiar os golpes de asa – amanhã sai melhor! Dávamos os corpos às balas, sim. Por vezes, queimava; depois, sarava. Tudo era muito físico, vibrante, à flor da pele da rádio. Tantos erros, quanta paixão!
Depois (muito depois), o mundo inteiro na ponta dos dedos (ou uma ilusão desse espanto sem fim). Das cassetes e da fita ao quotidiano património imaterial mas sempre com o mesmo apetite de sons, fome de verdade impossível: há que tirar as medidas ao mundo em cada esquina desta aldeia. “Continuamos a discutir isto?” Sim. Vai e volta. Na rede, sem rede. Ligados, sem fios. Tantas voltas. Analógico, digital, cabeça, coração.

Mas, incerto dia, dás-te conta: um pouco mais de silêncio na oficina – tic, tic, tic... Um pouco menos de calor. Gestos um pouco mais em câmara lenta. Até que um dia, perante uma crítica, atiras: “É a tua opinião... cada um por si, topas?”. A economia (a nossa, mais íntima, nos bastidores das notícias) sempre em plano inclinado. Até que um dia te pedem para seres "brand journalist" ou uma merda do género, “ganhas uns trocos extra, não é bom?” E seres... pouco mais, afinal. Até que um dia te dizem que não há outra saída: é preciso organizar mais um "evento" e outro ainda, “fazes nas folgas, ok?”. Até que um dia, o estatuto editorial acorda encolhido numa quase-palavra: EBITDA. Até que um dia nada te dizem, durante semanas, meses, anos a fio. Até que um dia te dizem (ou tu percebes): acabou.
Esta sexta-feira, cumpro o meu último turno na TSF, depois de 26 anos, quatro meses e 25 dias de trabalho nesta rádio.




No Tempo Contado, J. Rentes de Carvalho escreveu "The human touch":


De uma entrevista com o sociólogo Carl Rhode (1953), publicada no semanário neerlandês Elsevier no passado dia 12, traduzo o final: 

"Num mundo em que se torna vaga a fronteira entre o verdadeiro e o falso, o real e o virtual, sentimos cada vez mais a precisão de 'a little bit of human touch'. 
Mais do que nunca iremos ansiar por um muito pessoal e sincero apreço, reconhecimento, atenções, serviço, tudo, enfim, o que reconhece e acentua o nosso valor como indivíduo e como ser humano. 
Essa necessidade é intensificada pelo facto de que, neste momento, vivemos numa cultura mundial de desconfiança e desespero, causada pela profunda crise económica. 
Não acreditamos na integridade nem nas boas intenções dos políticos, dos banqueiros, dos administradores, dos empresários. Temos nojo de toda essa gente que, sem escrúpulos, destrói a nossa prosperidade e o nosso bem estar. Sentimo-nos inseguros, remetidos a nós próprios. 
O que nos leva a ansiar por atenções e sinais que, sinceramente genuínos, nos falem à alma e ao coração. 

- É isso válido para todos? 
– É um sentimento generalizado. Nas longas pesquisas que temos feito sobre o ADN social das diversas gerações, constatamos que essa necessidade de 'human touch' se repete com notável frequência, revelando um importante 'soft spot'. Esse anseio de um trato humano que se constata em todos as camadas da sociedade, é algo que seriamente deve ser levado em conta."




No The Cat Scats, Carlos Azevedo escreveu An empire of ugliness:


Num dos ensaios que integram The Hall of Uselessness: Collected Essays (New York
Review Books, New York, 2013, p. 42), Simon Leys conta um episódio que presenciou há uns anos. Leys encontrava-se num bar onde um aparelho de rádio tocava música banal que não merecia a atenção de ninguém. A dada altura, começou a passar o Concerto para Clarinete de Mozart e todos os clientes ficaram em silêncio. Subitamente, um deles levantou-se e sintonizou noutra estação de rádio. De seguida, começaram todos a falar novamente, sem prestar atenção à música. A palavra ao escritor: 

"At that moment the realization hit me – and as never left me since: true Philistines are not people who are incapable of recognizing beauty; they recognize it to well; they detect its presence anywhere, immediately, and with a flair as infallible as that of the most sensitive aesthete – but for them it is in order to be able better to pounce upon it at once and to destroy it before it can gain a foothold in their universal empire of ugliness. Ignorance is not simply the absence of knowledge, obscurantism does not result from a dearth of light, bad taste is not merely a lack of good taste, stupidity is not a simple want of intelligence: all the are fiercely active forces, that angrily assert themselves on every occasion; they tolerate no challenge to their omnipresent rule. In every department of human endeavour, inspired talent is an intolerable insult to mediocrity. If this is true in the realm of aesthetics, it is even more true in the world of ethics. More than artistic beauty, moral beauty seems to exasperate our sorry species. The need to bring down to our own wretched level, to deface, to deride and debunk any splendour that is towering above us, is probably the saddest urge of human nature."

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E a poesia. No Tim Tim no Tibete, Luís Filipe Castro Mendes - desculpe, Alcipe - escreveu Insónia de um velho:



Tinha acabado de ler um mau romance. Francamente mau.
A difusa irritação que me impedia de dormir
levou-me a sair da cama e a ir reler velhos papéis,
memórias de alegria, passados textos,
fotografias de pompa e circunstância
e algumas recensões antigas, em fotocópias baças.

Nenhuma vida é feita só de passado:
vejamos, eu estou ainda aqui!
O novo mundo desperta-me tanto nojo quanto perplexidade,
mas os meus filhos espalhados por dois continentes e quatro países
e a minha persistente curiosidade
pelo acontecimento que forçosamente há-de vir,
do meio de todo este horror e de toda esta mesquinhez
(que não são, oh não, de modo algum, um exclusivo deste tempo..)
levaram-me enfim a fechar a luz sobre tantos papéis velhos
e a vir dirigir-me aqui aos meus quinze leitores, meus irmãos,
meus hipócritas como eu.



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E, para ver se trago para aqui um pouco mais de luz, termino com dança, com Petite Mort (que não deve ter tradução literal) numa coreografia Jiří Kylián, pelo Nederlands Dans Theater.





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A música lá em cima, no início, era Angélique Kidjo interpretando o clássico Redemption Song de Bob Marley com o Kuumba Choir Singers.

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Relembro: sobre os Homens do Expresso a propósito de Ricardo Salgado, sobre os presentes e deferências com que este tratava jornalistas, empresários (e partidos?), e sobre mais umas quantas coisas, desçam, por favor, até ao post já a seguir.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela semana a começar já por esta segunda feira.

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