Mostrar mensagens com a etiqueta Cristina Carvalho. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Cristina Carvalho. Mostrar todas as mensagens

domingo, dezembro 02, 2012

Folha do meu diário: registo de um dia frio, luminoso. Dos gatos e das gaivotas do Ginjal até ao aconchego à lareira in heaven - o tempo passando com vagar e doçura





O frio que estava de manhã... Este vento frio leva-me para junto do rio. Como se descreve o frio em palavras? O frio que enregela as mãos, o frio que entra pelo pescoço, que arrepia as águas, que arrasta canas e árvores para as correntes que levam o rio para o mar? Não sei, faltam-me as palavras.

Lá fui. Pouca gente. Quando o tempo está assim, o Ginjal fica entregue ao tempo. Dois ou três pescadores nos cais, dois ou três no jardim. 

A meio, reparo que um dos armazéns está aberto e, para meu espanto, vejo o ganso do outro dia a dirigir-se para lá. Vou atrás dele, espreito, e ele também. É um espaço amplo, com caixotes, redes, alguidares. O ganso afoita-se, entra. Eu não, fico à porta. O ganso olha, então, para mim mas desinteressa-se logo de seguida, está mais interessado em descobrir o que por lá há. 




Vê então uma alface num caixote que está em cima de uma televisão e atira-se logo a ela. Não sei de onde vem este ganso, se é companhia de algum pescador, se vive por ali, não sei. Mas é engraçado. O Ginjal é um lugar mágico, habitado por seres misteriosos.

Num dos cais, o cão que por vezes vejo por ali lá estava ao sol. O vento frio agitava-lhe o pêlo mas talvez esse seja assim que ele se sente bem pois, tranquilo, olhava quem passava, olhava o rio, os barcos, indiferente ao arrepio que me percorria a pele.





Penso que olhava o ganso indiscreto que espreitava cada recanto do armazém em frente; mas há neste cão uma sabedoria, um saber feito de vida, que o torna indiferente em relação a minudências irrelevantes.

Prossegui o meu passeio, as mãos geladas enquanto segurava a máquina, os olhos lacrimosos pelo frio, os olhos agradecidos por uma beleza tão límpida.

Um pouco mais à frente, entre o gradeamento da beira do cais e o rio, mesmo à beira, como se hesitasse entre voar ou estar ali, prolongando o prazer do momento que antecede o voo, uma gaivota. 

Linda, olhar inteligente. Olhava para mim, depois desviava o olhar dourado, olhava o rio, e, depois, olhava-se de novo, muito tranquila. Eu mesmo junto dela, leva-me contigo, leva-me contigo, e ela serena, sereníssima.




Inclinava a cabeça para me ver bem, talvez para me mostrar a sua compreensão. Fotografei-a de frente, de lado, aproximei-me o mais possível. Não se afastou nem um pouco, talvez tivesse deixado que eu lhe tocasse. Mas num ser belo e livre assim não se mexe, apenas se olha. Talvez um dia eu me deite a voar com ela. Mas não já. Só um dia em que possa não voltar se assim o desejar.

Continuei. Fui até ao jardim. Subi aquelas escadas que não levam a lado nenhum e que têm nuvens pintadas. De lá vê-se Lisboa inteira, o rio inteiro, as margens, as duas pontes, os navios que entram a barra, o céu, a imensidão de um espaço abençoado. Tanto frio, um frio tão limpo, tão azul.

Reparo então numa mensagem amorosa que alguém  lá deixou no princípio do ano, palavras escritas sobre uma nuvem azul, uma nuvem a que o tempo vai acrescentando novas tonalidades.



Amo-te Shochiinhas
:$


Fui à procura do significado de :$ e vi que significa que, quem escreve, está envergonhado. 

Enterneço-me. Vergonha? Vergonha de confessar um amor? 

Alguém confessou o seu amor escavando as palavras numa nuvem azul e isso é de uma enternecedora bravura.

Tomara que o tempo não desgaste este amor envergonhado, antes o enriqueça com as texturas que a vida acrescenta aos sentimentos entre pessoas que se querem bem. 

Depois desci e continuei. Ninguém. Nem gatos. Tinham-se abrigado do vento frio, certamente. 

Já me sentia desolada, quando, mais à frente, o meu amigo negro de olhos verdes atravessou uma parede e, com um miar amoroso, veio ter comigo, veio encostar-se às minhas pernas, seguiu-me miando, olhando-me com ar cúmplice.




Não sei o que fazer com este gato. Fico encantada. É lindo, vadio, terno. Eu fico parada a olhar para ele, tento perceber o que espera de mim e ele senta-se, paciente, olha para mim, espera. Fotografo-o uma e outra e outra vez, e ele espera. Depois afasto-me e ele segue-me, chamando-me, miando, um miar arrastado, quase silencioso. Hesitante prossigo, olhando para para trás, olhando para ele que me segue, desculpo-me, oh gatinho, mas que queres tu que eu faça...? Bsshhhh, bsshhhh, bsshhhhhh. E ele olha-me, tolerante, espera que eu um dia compreenda.

Mais à frente, reparo que sob uns arbustos que se agitam com o vento, uns olhos me olham. Espreito. Abrigado da maresia gelada, um gatinho colorido defende-se do frio.




Lindo, lindo, os olhos quase tão verdes quanto a verdura que o aconchega, olha-me, a princípio com alguma suspeição. Não sabe se há-de esgueirar-se para mais longe, se se deixe fotografar. Treme um pouco, é ainda novinho. Depois acaba por confiar em mim.

Semicerra os olhos percebendo tudo muito bem, reconhecendo o seu homem amigo e considera vagamente sobre a manhã, a tarde e a noite que há-de vir.

O gato, a gata, os gatos, as gatas. O animal que Rómulo ama e admira e observa como se nele visse uma entidade fabulosa, o mais veemente deus, a espécie perfeita!

Como este gato tem sorte! Não tem que procurar comida, nem água, nem sítio onde dormir, e é amado, é um gato amado.

Lá isso é verdade!

Isto seria se Rómulo tivesse tido um gato...

Na sua idade adulta, nunca houve nenhum gato. Só escrito com as letras no papel.


Quase assim eu. Nenhum gato meu. Mas estes maravilhosos gatos vadios de beira de rio que me olham com olhares profundos, meigos, compreensivos, meus irmãos, são bem mais do que isso, são exemplos de independência e liberdade. Alguma vez se pode possuir um gato para se poder dizer 'o meu gato'? 

Depois regressei, estava muito vento, muito frio. Como vos poderei dizer em palavras o frio azul, o vento carregado de limpidez e maresia?

Passou um casal. Fotografei. O meu marido puxa por mim, chama-me,  impacienta-se, já chega, anda, vamo-nos embora, e o que tem aquela mulher para que tu a fotografes...?

Explico, tem o cabelo no ar.




E, assim, já que não sei que palavras usar para vos dizer do vento e do frio, mostro-vos esta imagem, ambos encolhidos, ela sem mão nos cabelos.

Depois, escusava até de vos dizer, depois vim até cá, abriguei-me junto ao calor da lareira, o aconchego habitual aqui in heaven, o meu ninho, o ninho da gaivota vadia, da gata de beira de rio. Mas, antes de me aninhar junto ao fogo amigo, fui até lá fora, estava a apetecer-me uma coisa madura, doce, uma carne tenra e macia com sabor a flores. 




O medronheiro está carregado de pequenas flores e, também, de belos frutos vermelhos, doces, bons.

Fotografei este medronho, macio, envolto em cor e luz. Depois comi-o.


*

A música é 'Mar Estranho' do álbum 'A Montanha Mágica' de Rodrigo Leão.

O trecho em itálico é um excerto do livro 'Rómulo de Carvalho/António Gedeão - Príncipe Perfeito' de Cristina Carvalho, a filha.

*

Dizer-vos mais o quê? 

Que muito sinceramente vos desejo que este domingo seja um dia feliz.

E que desejo que, para o ano e nos seguintes, o 1º de Dezembro continue a ser Dia de Feriado. 
Temos que saber honrar a memória de Portugal.