Música, por favor, para vos acompanhar
"Oh! Quand je dors", Liszt - Teresa Cardoso Menezes (soprano) and Andreia Marques (harpa)
No Expresso do sábado passado, havia um apontamento sobre um passeio de Maria José Morgado por Lisboa que incluía uma visita ao Museu Nacional de Arte Antiga.
Isso fez-me lembrar que, durante alguns anos, muitos e bons, trabalhei mesmo junto ao Tejo e que, à hora de almoço, um dos meus locais preferidos era o restaurante e o jardim do Museu de Arte Antiga, museu de que gosto particularmente.
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Tentações de Sto Antão - de tudo o que se pode ver no MNAA esta é, de longe, a obra de que eu mais gosto
Jheronymus Bosch (Hertogenbosch, 1450/60-1516)
Assinado (canto inferior esquerdo do painel central)
c.1500
Óleo sobre madeira de carvalho
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Como já muitas vezes aqui o referi, a arte de que mais gosto é a arte abstracta, quanto mais abstracta mais eu gosto. Acho que é (demasiado) fácil retratar. Difícil é abstrairmo-nos do que conhecemos, tal e qual vemos, e conseguir conceber imagens, figuras, objectos que não são meras representações da realidade. Por isso me emociono muito mais com as manchas cromáticas de Rothko do que com as representações quase fotográficas de tantos pintores. Por isso, de tudo o que de tão belo se pode ver no MNAA, é das
Tentações de Sto. Antão que eu mais gosto. Há ali um fantástico rasgo, uma loucura visionária, um desprendimento da moral e costumes da época; e, portanto, pela intemporalidade, esta é uma obra que atravessará todos os tempos mantendo-se, sempre, uma obra moderna.
De resto, gosto muito do MNAA não tanto pelo tipo de arte exposta mas pelo museu em si, pela arquitectura do espaço (um espaço que é um lugar de contemplação e de meditação, um lugar de serenidade), pela distribuição das obras pelo espaço, pelas cores quentes, pela forma harmoniosa como as peças se integram no conjunto - e como nos convocam.
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Gosto de me passear pelas salas e de olhar as obras, nomeadamente as pinturas, embora, como disse, não seja o tipo de arte que mais cativa a minha atenção. Olho e é como se olhasse com indiferença mas, sem que eu perceba, gosto de lá voltar uma e outra e outra vez. Deve ser o meu lado difícil, gosto que me seduzam persistentemente e gosto de me armar em esquisita até que, finalmente, caio rendida, perdida.
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Não tem conta o número de vezes que já lá fui. Quando os meus filhos eram pequenos (até entrarem na adolescência, isto é, até à idade em que começaram a recusar-se a ir a este museu e a outros que tais), arrastávamo-los connosco e, assim, foram lá muitas vezes. Gostavam sobretudo de subir a escadaria e andar de sala em sala, mais na perspectiva de exploração do espaço do que de apreciar o exposto.
Na altura, achavam uma seca andar quase todos os fins de semana a visitar museus e exposições. Detestavam arte antiga, gozavam com a arte moderna. Tirando o Museu do Brinquedo e, no caso do meu filho, o da Marinha e o do Exército, e isto quando eram mesmo pequenos, tenho ideia que não iam de gosto a nenhum. Achavam também alguma graça ao Palácio de Queluz ou ao da Ajuda ou de ao de Sintra mas, como eram espaços grandes, ao fim de algum tempo já andavam completamente impacientes. À Gulbenkian também íamos quase todas as semanas pois, mesmo que fossemos primeiro a outros, era normal lá irmos almoçar e, claro, aproveitávamos para ver o que havia de novo.
No entanto, apesar de, na altura, protestarem consideravelmente, agora têm grande gosto por arte, visitam e apreciam bastante e têm uma mente aberta e um espírito crítico - e eu penso que, muito disso, se deve à desformatação mental a que foram sujeitos quando eram pequenos.
Mas, voltando ao MNAA, quando lá ia almoçar (e todas as semanas ia, pelo menos uma ou duas vezes), a maior parte das vezes não ia, obviamente, visitar o museu: ficava-me pelo restaurante, pela esplanada, pelo jardim.
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O jardim é um jardim romântico, maravilhoso, e de lá tem-se uma luminosa vista sobre o Tejo, sobre os cais, sobre a outra banda. Almoçar ou lanchar ou simplesmente estar naquele jardim é das boas experiências desta vida. É um jardim abrigado, fresco, onde, querendo, se apanham bons banhos de sol enquanto se lê um livro, se namora, se conversa, se olha sem preocupação de ver. (Estou a escrever isto e já cheia de saudades de lá voltar).
Também já lá estive em eventos fechados, ou seja, eventos organizados por empresas que contratam o espaço do restaurante para encontros e o jardim para almoços volantes ou cocktails. É sempre uma maravilha pois o espaço cria, automaticamente, um ambiente de excepção.
Mas a minha ligação a este museu vai um pouco para além do que referi. A irmã de uma grande amiga minha e com quem eu, na altura, também me relacionava é historiadora de arte, pessoa com ligação a museus (e com filhos ligados, de várias formas, às artes); e, em especial, tinha uma colaboração regular com o MNAA. Uma das coisas que também fazia (tenho ideia que, por vezes, com o apoio de algum dos filhos) era desenhar jóias a partir de motivos pertencentes a obras expostas. Podia ser um pendente para um fio que reproduzia o desenho de um bordado de uma figura que integrava um certo quadro, podia ser um pregador que tinha o desenho de um pormenor de uma peça em prata exposta, etc. Muitas vezes, quando fazia as provas, levava-as e eu via-as e ela gostava de saber a minha opinião. Tenho várias peças dela em prata, peças que eram, depois, vendidas na loja do museu. Durante esses anos, eu geralmente usava gargantilhas ou fios com pendentes em prata branca ou dourada ou pregadores feitos por ela.
Com ela aprendi a reconhecer nas obras os motivos que a inspiravam, com ela aprendi a ver com uma atenção especial tudo o que estava exposto.
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Custódia de Belém
Gil Vicente (ourives com actividade conhecida entre 1503 e 1517) |
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Com ela aprendi a não me deixar impressionar apenas pelo conjunto mas a reparar também em cada pequeno pormenor.
Cada pessoa tem a sua forma particular de reagir à arte. Há quem tenha uma abordagem académica, racional, sistemática.
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Painéis de S. Vicente
Atribuído a Nuno Gonçalves (activo 1450-antes de 1491) |
E há os que, como eu, se regem pela reacção quase sensorial, uma reacção emocional às coisas.
Gosto e não sei porque é que gosto, nem me interessa saber, nem sei nem me interessa descrever o que vejo porque não sei nem me interessa decompor o todo nas suas partes. O que registo é o conjunto, a cor, o movimento, a luz, é o qualquer coisa de indefinido - e é esta abordagem holística que eu, aos poucos, vou aprendendo a domesticar, tentando pixelizar o todo e analisar cada pequeno fragmento.
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Tapete do século XVII.
Este é um dos tapetes que fiz mas, neste caso em particular, e é o único caso em que isso acontece,
com cores diferentes destas |
Foi também lá, no MNAA, que me deixei tentar pelos motivos originais dos Tapetes de Arraiolos e, por isso, com excepção dos que faço à mão livre com desenhos que se vão formando enquanto bordo, todos os outros são desenhos originais do século XVII, alguns deles expostos no MNAA.
Para quem não conheça o Museu e não tenha possibilidade de vir conhecer, aqui deixo a ligação para uma visita virtual. Clique
aqui e depois vá escolhento com a setinha o que quer ver e, uma vez lá estando, (ex: escultura portuguesa), use as setas laterais para ir vendo à volta o espaço em que está.
Finalmente uma referência à Loja do Museu. Nesses tempos em que lá ia assiduamente, ao ir para o restaurante ou para o jardim, passava inevitavelmente pela loja. Era uma tentação. Adquiri lá uma série de peças mas aquela de que mais gosto é a que vos mostro aqui abaixo.
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Peça de madeira maciça, de razoável dimensão, pesadíssima
(andei à procura do certificado porque agora tive uma branca e não me lembro
qual a figura representada mas também não o encontrei.
Quando me lembrar ou encontrar o certificado, venho aqui e rectifico a legenda).
[À esquerda uma peça pela qual tenho particular carinho, oferecida quando nos casámos] |
Resumindo: agora que é (para muitos) altura de férias e de dolce fare niente, se não souberem onde hão-de ir de passeio, se vos apetecer uma tarde bem passada, se vos apetecer o contacto com uma beleza intemporal que se entranha, com um silêncio que suaviza as almas, com uma cor envolvente e íntima, e com uma emoção tranquila, se vos apetecer elevar (ou aligeirar?) o espírito no ambiente de um museu muito especial, então não deixem de vir ao Museu Nacional de Arte Antiga.
Eu, de certezinha absoluta, lá irei, de novo, um dia destes. E sempre lá hei-de voltar uma e outra e outra e outra e outra e sempre ainda mais uma outra vez.
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Amanhã é outra vez um dia de festa na minha família. Não tenho aqui referido todos os dias de celebração para não me tornar maçadora mas, como há tempos vos disse, por estes meses de Verão, é semana sim, semana sim e, pelo meio, por um ou outro motivo, os dias são quase sempre de festa e alegria também.
E o que vos desejo a vós, meus Caros Leitores, é que tenham também um belo dia. Mesmo que sintam que não têm razões para festejar, por favor pensem que estar vivos é uma bênção. E, havendo saúde, a bênção é ainda maior. E se, em cima disso, houver trabalho ou o dinheiro da pensão ou do subsídio pago no fim do mês, melhor ainda. E se, em cima disso, houver família ou amigos (mesmo que apenas virtuais), melhor ainda. E, porque vivemos em paz, a bênção é ainda maior.
Cada dia merece ser vivido com agradecimento - é o que eu penso. E, por isso, muito sinceramente vos desejo, um dia bem vivido, sejam quais forem as vossas circunstâncias. Há que
honrar a vida.