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terça-feira, outubro 31, 2023

A casa de Bella Freud, filha de Lucien Freud, neta de Sigmund Freud
(para ver se me redimo de vos maçar, outra vez, com os meus problemas...)

 


Estou um pouco esgotada. E o 'pouco' é, claro, uma maneira de dizer. Já passei por tanta crise, tanta situação difícil, por vezes por dentro de situações limite que nunca esperaria viver, e nunca me senti tão exausta e sem saber como dar a volta às coisas como agora.

Ao longo de toda a minha vida, mesmo no meio de furacões ou terramotos, sempre me mantive relativamente serena, com a perspectiva do que fazer para escaparmos o mais incólumes possível. Sempre reconheceram em mim a característica de não perder o pé, não perder o rumo, não perder o sangue frio, não perder o optimismo. Por vezes, eu própria me questionava se isso não seria sinónimo de inconsciência.

Pois, neste momento, isso não acontece.

Quem me veja a lidar com a situação talvez ache que, apesar das circunstâncias, consigo manter o racionalidade, a tranquilidade. De facto, tento manter a argumentação, tento convencer, tento aguentar as coisas, tento mostrar-me calma. 

Mas, por dentro, sinto-me quase derrotada, pois todos os dias, várias vezes durante o dia, sou submersa pela mesma onda, sempre a mesma onda, cada vez mais forte, cada vez mais alta. Como se eu não tivesse dito nada antes, como se antes não me tivesse esgotado em explicações, em argumentações, como se não lhe tivesse feito a vontade e falado com médicos, uma e outra vez, ido a consultas, etc. Sempre a mesma conversa, as mesmas queixas, o mesmo choro, a mesma postura, a mesma respiração de quem está muito mal, e as mesmas reivindicações, a mesma atitude que, sinceramente, já não sei se é genuína ou se é também uma (talvez inconsciente) manipulação para tentar levar-me a fazer exactamente tudo o que quer (e digo isto pois sintomas que eram gravíssimos, insuportáveis, no dia seguinte, por milagre, já desapareceram dando a vez a outros, ou desaparecem se falo com os médicos conforme ela queria, embora no dia seguinte possam reaparecer, já que os médicos nunca dizem o que ela quer ouvir). 

Por mais que lhe evidencie que nada disto faz sentido, que nos últimos tempos isto repete-se diariamente e que a resposta que obtém de todos quantos a examinam é sempre a mesma, não se convence. Ninguém presta, ninguém sabe, ninguém quer saber, nem quem a examina e, certamente, nem eu.

Hoje foi a um outro médico, um que não tinha nada a ver com nada disto, mas a quem, inacreditavelmente, foi contar a mesma história, recorrentemente contada, a de que os medicamentos estão a acabar com ela. O médico, certamente pensando que isto não tem sido objecto de não sei quantas idas a médicos e urgências, disse que ela devia pedir uma segunda opinião. E, então, a seguir, a conversa era esta, a de que este médico tinha aconselhado isto e que era isto que se devia fazer. Ora isto como se já não tivesse pedido mais de umas vinte opiniões. 

Quando, já exausta, lhe digo que, em vez de andarmos nisto, nesta insanidade, se ela quer deixar de se tratar, que tome ela essa decisão pois, como já constatámos, nenhum médico lhe retira ou altera a medicação pois é a indicada (todos o confirmam). E, se os médicos o dizem, não sou eu, que não sou médica, que vou fazê-lo.

Nessa altura, aconteceu o que acontece também frequentemente: que ela não quer fazê-lo, eu é que percebi tudo mal, eu é que não presto atenção ao que ela diz, que eu é que invento coisas. 

E não saímos disto. 

Porque, de facto, o que se passa é que anda obsessivamente a arranjar sintomas e argumentos para justificar que, com carácter de urgência, continuemos a tentar descobrir um médico que faça o milagre de a pôr vinte anos mais nova, sem necessidade de qualquer medicamento. Ora como não sei onde descobrir tal médico, vou continuar nisto. 

Os meus filhos dizem-me que não ligue, que não me deixe abalar. Dizem-me até que lhe diga que não quero falar mais de doenças ou que, se é para continuar com a mesma conversa de sempre, não estou disponível para isso. Ou seja, acham que não devo alimentar a conversa pois é um loop do qual não saímos. Mas é impossível fazer o que sugerem pois ela chora, simula que mal respira, queixa-se de tudo como se estivesse numa fase terminal, sendo que os sintomas, como já aqui referi, vão literalmente da cabeça aos pés e, segundo ela, tudo indicia uma coisa de gravidade extrema. Ora, perante este cenário, como é que posso dizer que não quero falar mais disto? Até porque sei lá se é a pancada de sempre ou se, algum dia, está mesmo doente. 

Hoje voltei a perceber que o que queria mesmo era voltar a ser internada para ser examinada  em contínuo, todos os dias, exames integrais, de todo o tipo. Mas isso não existe, não vou chegar às urgências e dizer um disparate destes. Então fica num desespero como se eu não quisesse que se soubesse o que tem para poder tratar-se como deve ser.

Receio, sinceramente, dar em maluca com isto. 

Mas, enfim, hoje tinha resolvido não falar deste mesmo tema, ninguém tem que estar a levar com coisas tão chatas. Mas como a última cena foi mesmo há pouco e como estou deveras apreensiva sem saber como resolver esta situação, voltou a sair-me esta prosa... 

Garanto que amanhã não vou reincidir... Já dou com cada seca aos meus filhos... Era o que faltava terem vocês que estar também a ser sacrificados. 

Não falo no meu marido pois ele assiste diariamente a esta crise permanente, cada vez mais aguda, cada mais consecutiva, e, portanto, não o massacro a relatar o que se passa pois ele, coitado, também anda a passar por ela. E se, por um lado, é adepto do que os meus filhos dizem, que não devo alimentar a conversa, pois acha que se eu me recusar a falar sobre o mesmo de sempre talvez ela acabe por 'atinar', por outro, percebe que é praticamente impossível, concretizá-lo. Talvez algum psicólogo saiba desviar a atenção de alguém que obsessivamente se alimenta destes medos. Eu não sei. Mas já andou uns meses numa psicóloga e não descansou enquanto não a largou, achando-a incompetente, com conversas parvas que não levavam a lado nenhum. Por fim até ficava quase agressiva quando eu lhe recomendava que lá voltasse.

Bem. Calo-me já. Caraças. Peço mesmo desculpa. Vou arranjar um automatismo para, se um dia destes me der para voltar a falar do assunto, um martelo automático entrar em acção em cima das minhas mãos.

Nem eu já me aguento... Sorry.

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Para ver se me redimo, vou partilhar um vídeo em que Bella Freud (que aparece nas pinturas lá em cima), filha do pintor Lucien Freud (com quem aparece na fotografia aqui mesmo acima) e bisneta de Sigmund Freud, mostra a sua casa e fala do pai. Tem peças interessantes e até tudo muito engraçado.

Está legendado mas algumas palavras, na tradução, saem um bocado ao lado, há que dar o devido desconto.

Inside this Designer’s Eclectic London Home Filled With Sentimental Objects | Vogue

Cult fashion designer Bella Freud's west London abode is filled with playful details that speak to her eclectic circle of friends and collaborators. While taking us throughout the home, Bella talks about her late father, her great grandfather (the legendary Sigmund Freud), shows off a mini golden replica of Nick Cave's hand, and more.


Desejo-vos um dia bom
Saúde. ânimo. Paz.

segunda-feira, setembro 18, 2023

Histórias de uma Colecção

 

Acordei de madrugada com a chuva e depois custei a readormecer. Mas, apesar de alguma dificuldade, lá consegui.

Quando acordei de manhã já não chovia. 

Começámos o dia ao ar livre. A caminhada foi boa. Cheirinho a terra molhada, chão fofo pela caruma amolecida. O cão doido com os cheiros, a parar de centímetro a centímetro.

Depois de anos esforçados, agora temos sempre a vontade de ficar a borregar em casa, sossegados.

Mas a minha filha perguntou no outro dia se não estamos a ficar mongas e essa pergunta deixou-me a pensar. Contei ao meu marido. Ficou arreliado. Não gosta de ser confrontado com umas certas verdades. O meu filho também está sempre a perguntar quando é que saímos, também acha que não devemos enclausurar-nos.

E, portanto, de certa forma sensibilizados com as censuras e apelos deles, resolvemos dar-lhes ouvidos e deixar de ficar aqui a ronronar no conforto e quentinho do ninho. 

Tendo a minha filha alertado para que esta segunda feira já seria o último dia da exposição Histórias de uma Colecção na Fundação Gulbenkian, resolvemos inverter a ordem dos factores a alguns compromissos familiares para não deixarmos a visita para a última. E, portanto, este domingo lá fomos. 

Soube-me que nem ginjas. E almoçámos por lá e comprei uns livros que são um mimo. Estou mesmo contente com os meus livros. A ver se amanhã mostro. E até comprei, imagine-se, dois ímanes para a parede lateral do frigorífico. 

E a exposição é extraordinária. Adorei, adorei, adorei. Muito boa.

E ao fim do dia voltámos a fazer outra caminhada. Uma energia mesmo boa. 

Deixo aqui algumas fotografias da exposição. Mas, acreditem, ao vivo é outra coisa e a amostra que aqui deixo não é seguramente a melhor. 

Se conseguirem, aproveitem. Vale mesmo a pena.


Para nos acompanhar na visita, Maria João Pires interpreta Clair de Lune, Debussy




















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Desejo-vos uma bela semana a começar já nesta segunda feira

Saúde. Ânimo. Paz.

domingo, janeiro 01, 2023

Está feito. O 2023 já cá canta.

 


E, para já, é isto. Já estou de volta a casa e a roda do tempo avançou mais um passo. Já estamos em 2023. 

A passagem foi boa. Comeu-se, bebeu-se, houve música e dançou-se, bateram-se tampas, houve abraços e beijinhos. E largou-se a pele do ano velho -- que afugentámos o melhor que pudemos -- e abriram-se as portas para que o ano novo entrasse e se sentisse bem acolhido.

Tirando isso o que tenho para dizer é que podemos não saber ou não conseguir fazer grande coisa mas se, pelo menos, não estragarmos ou não nos desviarmos por maus caminhos já não será mau. Seja lá o que isto quiser dizer.

E bora lá. Que o 2023 seja bondoso, não nos pregue más partidas, que nos traga esperança, capacidade de acreditar, vontade de querer. E saúde. E alegria. E todas essas coisas boas.

E não vou ficar aqui a repetir-me até porque estou a dormir em pé. E daqui a nada tenho que estar a saltar da cama para me ir atirar aos tachos.

Por isso, está dito. E feito. Aqui já chegámos. Agora é ir avançando até chegarmos ao próximo. E depois ao próximo. E ao próximo. E por aí fora. Vida longa e feliz!

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Desejo-vos um dia (e todo o ano!) bom

Saúde. Boas vibes. Paz. 

Paz. Paz, Paz. Paz. Paz (da boa, paz em liberdade).

terça-feira, março 09, 2021

Compartimentos secretos, momentos mágicos, mulheres

 


Ando naquela fase em que, depois de um dia de trabalho tão preenchido, chego aqui e só me apetece pôr-me a ver televisão, seja lá o que for -- ou, melhor, não prestando atenção a nada -- ou ver os vídeos que me apareçam à frente. E não é só isso, confesso: é que, ao fim do dia,  colocaram-me questões que não sei bem como resolver e não me apetece pensar nisso pois as soluções costumam aparecer sozinhas mas, por outro lado, acho que devo pensar nelas pois as implicações são tantas que receio tomar decisões erradas por me ter esquecido de alguns factores. Depois, a noite passada dormi mal.  Fui para a cama sem sono e isso é trágico. E é igualmente trágico passar um dia com défice de horas dormidas (e logo a uma segunda feira).

E agora tenho sono. Sono, temas rodopiando na minha cabeça, e, pairando, vontade de ir ver como se pintam móveis de madeira, vontade de me entreter com coisas que me ocupem sem me trazerem preocupações. Estou aqui com a cabeça nas nuvens e os pés a quererem puxar-me para chatices terrenas. 

Não tenho respondido a comentários e bem sei que isso parece impossível. Deveria ter tempo de sobra para tudo e o que me parece é que não estou a saber geri-lo bem. Desculpo-me dizendo a mim própria que isto se deve à minha nova ocupação, àquela que abracei há uns meses, e que sabia de antemão que seria assim, tomador de todo o meu tempo e energia. Mas o facto de esta fase coincidir com este período de teletrabalho é propício a que o trabalho se expanda absorvendo toda a minha disponibilidade.

Por isso, chego a aqui e sinto-me quase vazia, sem nada de nada nada para dizer. Não sei de assuntos dos quais se possa fazer conversa. Das notícias que leio em diagonal pouca coisa me suscita vontade de opinar. Há aquilo de o medicamento que tem estado a provar bem no combate ao corona ser um que é usado no combate aos piolhos. Acho isso de uma ironia extraordinária. Pois não se está mesmo a ver que o corona é um bicho tinhoso, piolhento? Mas, para falar do assunto, deveria ter pedigree e não tenho. Farmaceuticamente falando, sou rafeira. Por isso, mais vale que fique caladinha.

Também li hoje que uma mulher, em Nova Iorque, sentindo frio em casa e sentindo que o frio era maior quando estava na casa de banho, como que uma aragem que até lhe fazia esvoaçar um ou outro cabelo,  resolveu tentar descobrir de onde vinha. Parecendo que a aragem vinha de dentro da parede, resolveu investigar. Até que percebeu que parecia vir do espelho. Então, resolveu tirá-lo. E aí, para sua surpresa e susto, descobriu um buraco. E, de lanterna na cabeça e esquecendo todos os riscos, fez o que não devia: entrou. E foi dar a um apartamento secreto de três divisões. Ao ver uma garrafa de água ainda mais se assustou. Mas depois percebeu que ninguém poderia sobreviver num apartamento sem janelas. Claro que não sei se será bem assim já que alguma corrente de ar deverá haver, senão não sentia a aragem. Mas, enfim, façamos de conta que sim.

Parece que quem lhe vendeu a casa também não tem explicação. Nem a empresa de construção a tem. 

E esta história verídica, sim, esta dá-me alguma vontade de me deter um pouco.

Quando viemos aqui visitar esta casa, caí de amores à primeira vista. Assim caio sempre quando caio de amores: à primeira vista, de caixão à cova, sem apelo nem agravo. Não há cá isso de não ficar muito convencida e de a coisa só lá ir aos poucos, à medida que se vai conhecendo melhor. Treta. Comigo não, eu sou mais de cair de amores na base do desconhecido. Total blind date com um instantâneo coup de foudre. Saímos daqui, fizemos logo uma proposta, passado um bocado veio a resposta e, assim, na hora, a coisa deu-se. Mas, dizia eu: estavam a mostrar a casa e tudo batia certo, o santo da casa a cruzar-se com o meu, tudo na mouche.

Na segunda vez, já o negócio feito, viemos para a minha filha conhecer e para eu tirar dúvidas. O meu filho tinha podido vir na primeira vez. Mas eu estava baralhadíssima. Queria descrever a casa e não atinava. Na minha cabeça, tudo se tinha misturado do ponto de vista geográfico. Não sabia onde estavam os quartos, onde estava a porta, como se ia para o piso de cima. Então, a dona, que eu estava a conhecer nessa altura (na primeira visita não estavam cá), ao mostrar-me tudo, ao chegar ao sótão, perguntou se eu já tinha visto um certo compartimento. Eu achava que não mas não sabia. E, então, para meu espanto, dou com um compartimento que parecia secreto, a biblioteca privada do marido, uma biblioteca toda feita por ele. Estava cheia de documentação técnica ligada à profissão dele. Foi a última coisa que foi esvaziada, contaram-nos eles depois. Quando os meninos vieram conhecer a casa, fui logo mostrar-lhes aquilo: deliraram. Parecia coisa de filme, um compartimento mesmo secreto, só quem sabe dá com ele. 

Está vazio. Ainda não pus lá nada. Para já, não preciso, tenho agora muito espaço para livros e para tudo. Mas também é outra coisa: parece que assim tem mais graça, um compartimento secreto, mágico, à espera do seu destino. Talvez seja ali que um dia vou pôr objectos especiais, velharias que resgate por aí, peças que eu construa. Não sei ainda. Só sei que não devemos precipitar as coisas. O que interessa acontece por si. Não temos que forçar nada.

E, pronto, não sei que mais dizer. 

Foi dia da mulher mas não ia pôr-me para aqui a deitar foguetes. Não é um dia que faz qualquer diferença. Mas tinha pensado contar qualquer coisa relacionada com a minha condição de mulher e o que me ocorria era falar do nascimento dos meus filhos. O parto que, das duas vezes, a meu pedido, foi a sangue frio. Eu a sentir o corpo a despedaçar-se por dentro, temendo não conseguir aguentar tantas dores, até que as crianças me foram arrancadas a ferros e vieram para os meus braços. Não há sensação melhor no mundo do que termos nos nossos braços os seres que se geraram dentro de nós. Aliás, há sim. Há sensação tão boa ou melhor do que essa: é vermos o amor, a realização e a sensação feliz dos nossos filhos com os seus filhos nos braços e é, a seguir, termos nos nossos braços os filhos dos nossos filhos. Amor maior, sem explicação, coisa visceral.

Mas depois resolvi que não, que não deveria falar nisso: há mulheres que ainda não tiveram filhos ou que não tiveram nem vão tê-los e que nem por isso são menos mulheres do que as que já tiveram a bênção de os ter. Por isso, deixei-me dessa conversa. E depois, acreditem, estou mesmo cansada, com sono, sem assunto. Que me desculpem os queridos Leitores que generosamente me deixam as suas palavras. Não levem a mal. Leio com gosto mas a esta hora já só dá para deixar que os dedos para aqui andem no vício. A cabeça já está encostada às boxes há algum tempo.

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Pensei: pelo menos podia colocar aqui um vídeo com uma mulher e peras. Pensei: Paula Rêgo. Depois pensei: uma escritora. Depois pensei: uma médica. Depois: uma engenheira. Depois: uma sem abrigo. Depois pensei: uma professora. Depois: uma bombeira. 

Depois deixei-me disso. 

E resolvi colocar a Meryl Streep que gosta de se divertir e que não se leva a sério que é como as mulheres de bem devem ser.

E, portanto, cá está ela.

Meryl Streep's the most iconic moments



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As fotografias foram obtidas em: Women: an exhibition of British press photography.
Fotógrafos -- Teri Pengilley, Lindsey Parnaby, Ray Tang, Kiran Ridley, Katja Ogrin, Charlotte Graham

Maria João Pires interpreta Mozart: Piano Concerto No. 20, K. 466: II. Romance

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Desejo-vos uma terça-feira feliz

segunda-feira, fevereiro 19, 2018

Dois momentos que me marcaram




Contei-o uma vez e, deliberadamente, tentei fazê-lo de uma forma vagamente abstracta. Decorreram uns anos. Sinto-me mais apta a contar agora com maior objectividade, pelo menos tanta quanto a minha memória o permita.

Estávamos a fazer uma caminhada à beira-rio. Era de noite, estava frio e vento, as águas eram ruidosas ao bater contra as muralhas e as correntes que prendiam os barcos ao cais rangiam furiosamente.

Eu fotografava os reflexos das vagas luzes nas águas batidas e as pequenas luzes tremeluzentes nas casas ao longe; e o meu marido, não querendo estar parado, foi seguindo. Faz isso muitas vezes: ganha-me distância e depois volta atrás para me apanhar e puxar por mim. Nessa altur,a eu tinha deixado de vê-lo. Não estava ninguém por perto naquela noite fria. 

Então, quando começava a afastar-me do cais, pareceu-me ouvir uma voz vinda do rio. Assustei-me pois a voz parecia-me vir das águas, de um lugar onde não havia sequer barcos.

Olhei em volta, procurando o meu marido mas não o vi. Um pouco a medo, aproximei-me da muralha de onde me parecia vir a voz. Ouvia-se mal, as ondas batiam com força. Ali a muralha é inclinada. Fui-me aproximando. Ouvi, então, distintamente: 'Ajude-me...'. Uma voz de mulher. Aproximei-me, baixei-me. Com dificuldade consegui perceber, então, lá em baixo, dentro de água, uma mulher, a cabeça tentando manter-se fora de água mas sendo permamentemente submersa pela força da ondulação. Estendia os braços para a muralha, tentando segurar-se. 

Disse-lhe: 'Estou aqui. Vou ajudá-la'. Olhei em volta a ver se via alguém. Ninguém. Tentei ligar ao meu marido. Não atendeu. Com o telemóvel no bolso e com o barulho do vento não ouviu. Debruçada, disse à mulher: 'Tente agarrar-se. Vou à procura de ajuda'. Fui a correr ver se descobria alguém junto aos barcos, a ver se alguém tinha cordas. Ninguém. Até que vi dois homens. Pedi-lhes ajuda: 'Está uma mulher dentro de água. Preciso de ajuda'. Os homens foram a correr comigo. Entretanto, vinha o meu marido que veio também logo ver o que se passava. Tentaram ver se conseguiam descer a muralha mas era impossível, escorregavam. Ela chorava. Durante todo esse tempo fui falando com ela. 'Estou aqui, não tenha medo, vai tudo ficar bem'. Algum deles ligou para os bombeiros. E eu: 'Já aí vêm os bombeiros, tente agarrar-se, força, estamos aqui, não lhe vai acontecer nada, não tenha medo'. Por entre o barulho da água contra a muralha ouvia-se o seu choro. 

Chegaram os bombeiros. Atiraram cordas, ela não tinha força, devia estar exausta. Os bombeiros desceram pelas cordas e trouxeram-na. Era uma mulher de uns quarenta e tal anos. Encharcada, enregelada, tremia, chorava. Deitaram-na na maca, envolveram-na. Perguntaram-lhe por alguém da família. Chorando, trémula, falou no marido. Não se lembrava bem do número. Fui eu que liguei. Enervada com a situação, sentindo-me atrapalhada por não saber como dar uma notícia daquelas: 'Já está tudo bem mas a sua mulher caíu à água mas está tudo resolvido, já foi resgatada e vai ser levada para o hospital'. O homem não mostrou nem surpresa nem grande preocupação. Pelo menos foi o que me pareceu mas, claro, posso ter-me enganado. Afinal, o telefonema durou um breve instante. Disse: 'Está bem. Vou para lá'. Enquanto os bombeiros faziam as manobras de a virar, de a auscultar, tapar, registar o meu contacto, etc, ela esteve sempre de mão dada comigo. A mão estava gelada e toda ela tremia. Perguntei-lhe: 'Mas como aconteceu...?'. Ela apertando-me a mão e chorando ainda mais disse: 'Sou tão infeliz...'. Depois pediu-me: 'Venha comigo... não me deixe... ajude-me... sou tão infeliz'. Fiz-lhe uma festa e disse-lhe: 'Vai tudo ficar bem'.

Não me deixaram ir na ambulância.

Liguei para o hospital e disse que ia chegar uma mulher, e disse o nome dela, que eu suspeitava que tivesse tentado suicidar-se. Disseram-me que estivesse descansada, que teria acompanhamento especializado. 

Algum tempo depois, voltei a ligar e perguntei por ela e se o marido lá estava. Disseram-me que sim, que já estava com o acompanhamento que situações assim requerem e que sim, o marido já lá estava.

Não fui lá. Pensei que os técnicos de saúde saberiam lidar com a situação melhor do que eu e que a minha presença apenas poderia introduzir confusão. Mas a voz dela a chorar e a dizer-me da sua infelicidade não me sai da cabeça.

Pouco tempo depois, de noite, estávamos a atravessar da Ponte 25 de Abril, quando vimos um vulto sobre a vedação, notoriamente na posição de quem está a pensar atirar-se. Mas, dada a velocidade a que o carro ia, só o assimilámos já o carro estava bem mais à frente. Ficámos apavorados mas percebemos que seria preferível pedirmos socorro do que pormo-nos nós a correr na ponte, podendo assustar a pessoa e precipitar as coisas. O meu marido acelerou e, num ápice. chegámos à casa da Lusoponte. A funcionária estava ao telefone e eu gesticulei, gritei: 'Está uma pessoa em cima da ponte! É urgente!'. Ela com ar de quem lida com uma banalidade disse: 'Já foi accionado o alarme.' E eu, em pânico, 'E já foram para lá?' e ela, 'Sim, claro, descanse' E depois, com um certo enfado. 'Gostam muito de se empoleirar na ponte'. Pelo tom e pelas palavras percebi que não era coisa rara. E tudo aquilo me fez muita, muita impressão. Alguém atravessa a noite com vontade de pôr fim à vida.  Momento único e decisivo. E aquela outra pessoa que ali está todos os dias vê isso como um acontecimento banal e não fica em pânico, aflita como eu estava.
Agora, em especial à noite, quando passo a ponte, vou sempre com atenção. E durante muito tempo, sempre que íamos andar à beira-rio, passávamos por aquela muralha, com medo que estivesse lá alguém e que não a ouvíssemos.
Não sou dada a balanços ou a pensamentos muito aprofundados (especialmente porque intuo que não há maneira de atingir as profundezas da mente pelo que todos os esforços serão sempre escusados). Mas, às vezes, se me dá para aflorar, ainda que ao de leve, isto de se tentar perceber qual o sentido da vida, da minha em concreto, dou por mim a pensar que, para além daquilo da propagação da espécie e de ter ajudado a fazer um bosque frondoso onde antes apenas havia mato e pedras, se calhar devo acrescentar este facto -- que me emociona sempre -- de talvez ter ajudado a salvar duas vidas. E junto ainda as palavras simpáticas de Leitores que dizem que as minhas palavras os têm ajudado em momentos mais difíceis da sua vida. E, por tudo isto, acho que tem valido a pena viver.


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Lembrei-me de escrever isto depois de ter transcrito o prefácio de Agustina sobre o Al Berto (que não se suicidou mas em quem ela via a presença de um certo desacerto com a realidade).

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domingo, janeiro 01, 2017

2017


E já está... Já cá estamos.

Chegámos juntos a 2017. 



Uma noite linda, uma temperatura quase amena, um fogo de artifício a florescer dos dois lados do rio, barcos a apitarem, e as doze passas e os brindes, os beijos, abraços e os votos a quem se ama. Para mim foi assim.

Outros estarão em hotéis ou em concertos de rua, em casinos ou clubes, em festas particulares. Outros em casa como se fosse uma noite igual a tantas outras.  Outros em hospitais, em cenários de guerra. Outros na maior solidão, sem razões para festejar. Outros a trabalharem. Outros a...

Seja como for, 2016 trouxe-nos até aqui.

Se parte do mundo está a ferro e fogo e se grande parte dos países está entregue a doidos varridos, malucos, megalómanos, corruptos, burocratas ou nódoas, a verdade é que em Portugal se dão passos que, por estranho que isso possa parecer aos olhos dos que não conseguem para lá das pálas que trazem agarradas aos olhos e aos neurónios, vão num caminho que não assusta as pessoas nem não rejeita os seus melhores, e parece apontar no sentido de um futuro mais auspicioso. Voltaram a nascer mais crianças e isso é um indicador poderoso do restabelecimento da confiança e, sobretudo, deve ser para nós um motivo de festa. Um país definha se a demografia se afundar -- e era isso que estava a acontecer até há algum tempo atrás. 


Para o Ano Novo, não consigo fazer previsões nem vou pôr-me com grandes dissertações pois o momento não o pede nem eu estou com cabeça para isso. Mas quero crer que aos poucos iremos percebendo que há coisas que devem ser repensadas no modelo de sociedade que temos vindo a construir. 

Seja como for, e profundidades à parte, que tenhamos saúde, que os que amamos se conservem perto de nós, que nos sintamos motivados a enfrentar cada dia que começa, que nos sintamos realizados com o que vamos fazendo dia após dia, que consigamos satisfazer os nossos desejos e concretizar o que nos faz felizes. E que consigamos preservar a capacidade de sonhar. E que acreditemos em rosas eternas a exalar um perfume azul na noite mais escura e em tigres que não vemos mas cujo latejar quente intuimos na nossa pele sempre que sentimos um suave roçar de unhas no nosso coração. E que sintamos o sangue a correr mais veloz sempre que adivinhemos uma palavra mais quente no olhar de quem nos deseja e a pele arrepiada sempre que as nossas mãos sintam o apelo de uma carícia treslida no silêncio de quem nos escuta ao longe.


E uma vez mais saúde -- que sem saúde tudo se torna tão mais difícil -- e saúde também para os que nos são próximos porque ver padecer quem amamos é um sofrimento. E trabalho, e trabalho de qualidade, para quem estiver em idade disso. E inspiração para quem viva dela. E capacidade de criar laços. E capacidade de perdoar. E capacidade de pedir perdão. E força. Força para lutar contra ventos e marés. E muita sorte e muito afecto nas nossas vidas.


E que a beleza não nos passe despercebida e que o sentido de elegância nunca nos abandone. Nem o sentido de decência e de honradez.


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FELIZ    2017

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Lá em cima, a Maria João Pires interpreta o Concerto No. 3 para piano de Beethoven

As fotografias do fogo-de-artifício foram feitas à meia-noite, debaixo de um festivo ribombar e em que o cheiro a pólvora, felizmente, era sinónimo de paz e de comemoração.

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[NB: Se calhar não se vai conseguir ler bem com tanto fogo-de-artíficio por trás das palavras. Eu amanhã logo arranjo um fundo mais normal mas hoje apetece-me estar no meio desta animação. Está bem?]


quarta-feira, dezembro 09, 2015

Somos intrusos, bárbaros amigáveis, e compassivo o deus permite que o sirvamos e a ilusão de que o tocamos


Uma vez, eu falava deste sítio sagrado, no qual eu gosto de andar feita gata da beira-rio ou voar feita gaivota-danseuse, e dizia que é um lugar mágico de onde se vê Lisboa, a cidade magnífica envolta em beleza e luz, dizia que este é um lugar mesmo em cima do Tejo mas onde o rio já cheira a maresia, que é um lugar de silêncios e contemplação. E acrescentei que é também um lugar de decadência: as casas esventradas, as paredes em ruínas. Disseram-me então que em Portugal é tudo assim, que não se cuida de nada. E, ao ouvir isso, eu desejei não ouvir essas palavras porque há muita beleza nesta decadência e tomara que, se um dia alguém transformar este lugar, consiga preservar a sua alma e a sua perfeição. São visíveis as muitas camadas de vida, muitas histórias vividas nestes armazéns antes ruidosos e agora devastados, nestas casas de cujas varandas certamente alguém espreitava o rio e que agora estão abandonadas, quase destruídas, o que antes foram janelas agora parecendo olhos vazios. Mas há harmonia nesta soma de erosões. E há muita beleza no colorido suave deste casario, como se o tempo tivesse suavizado os desgostos, como se as memórias se tivessem aquietado nos recantos, como se os gatos que se esgueiram calassem segredos e apenas as gaivotas que gritam chorassem ausências. Há muita beleza aqui. Muita, muita, tanta.





[NB: Gostavam que lessem o poema em voz alta mas não muito alta, quase como se estivessem a contar um segredo. Eu também vou lê-lo assim]


À minha volta tudo envelheceu
como se fosse eu, e no entanto
uma casa, ou um espaço em branco
entre as palavras, ou uma possibilidade de sentido.

Pois nada
surge com a sua própria forma.


Digo 'casa', mas refiro-me a luas e umbrais,
a lembranças extenuadas,
às trevas do corpo, lúcidas,
latejando na obscuridade de quartos interiores.

E digo 'palavras' porque
não sei que coisa chamar
à mudez do mundo.

E digo 'sentido' sufocado
sob o pensamento
tentando respirar
a golpes de coração,
agora que se desmorona a casa
sobre todas as palavras possíveis.

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O título deste post faz parte de 'Os gatos' e o poema que escolhi para juntar às fotografias é 'Talvez de noite', ambos de Manuel António Pina in 'Como se desenha uma casa'. 

Maria João Pires (que, no outro dia actuou em Londres, levando o público ao delírio e emocionando um ilustre conterrâneo que assistia) interpreta Chopin, Valsa no. 7 

As fotografias foram feitas esta terça-feira no Ginjal

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela quarta-feira.

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domingo, abril 26, 2015

Foi para isto...!






De tarde, como todos os fins de semana, fui buscar a minha mãe a casa e fomos as duas à clínica ver o meu pai.

Nos outros dias ela vai ou com o meu tio, irmão do meu pai, ou com uma amiga que foi colega na mesma escola e que mora perto. Essa professora é viúva, não tem filhos, já teve cancro em várias partes do corpo mas parece vender saúde e é de uma alegria e jovialidade inacreditáveis. Ela e a minha mãe fazem uma dupla que tem sido benéfica para as duas: trocam livros, confidências, fartam-se de rir uma com a outra. Quando não tem a companhia da amiga ou do cunhado, a minha mãe vai sozinha mas também não se importa.

Quando lá chegámos, o meu pai estava na sua cadeira de rodas, na sala, a cabeça tombada, a dormir. Custa-me ver o meu pai assim, parece que ainda não me habituei à ideia de que jamais voltará a ser o homem independente, enérgico, opinativo, bem conservado, que era antes do AVC.

À volta da sala estão outros convalescentes também em cadeira de rodas. À volta da mesa grande no centro da sala estão os outros, os que se locomovem por si. Hoje havia cravos encarnados em cima da mesa.

Acordámos o meu pai e começou logo a queixar-se, que queria descansar, ir para a cama. Como sempre, dissemos que não pode estar muito tempo na cama, que, se dorme durante o dia, depois não dorme de noite e que, se passa muito tempo na cama, perde massa muscular. E dissemos que íamos dar uma voltinha.

A voltinha foi a de quase sempre, para o piso de baixo, para a grande entrada que tem muita luz porque tem o tecto abobadado todo em vidro, e tem plantas e quadros coloridos. Mas ele não liga, diz que tem frio e que quer é descansar.




Depois a minha mãe faz-lhe a barba com a sua Philips portátil. Adquiriram esse hábito e têm-no mantido apesar dele estar internado e de as funcionárias poderem fazer isso. E depois dá-lhe um iogurte líquido que ele bebe de gosto. Depois volta a queixar-se, que se quer ir deitar. Então eu ando com a cadeira por ali, passo junto às flores, levo-o junto à porta e ele, como acontece com os bebés, acalma-se, dormita.

A maior parte das pessoas que lá está não tem visitas, a minha mãe diz que se calhar as famílias vivem longe.

Mas, ali, estava outra família: um senhor pequenino, magrinho, ar consumido, numa cadeira de rodas, e uma senhora da mesma idade, e um homem de uns quarenta e tal anos que era a cara chapada do pai e uma mulher que devia ser a sua mulher. A minha mãe diz que o senhor teve um AVC e perdeu completamente a fala. Percebi melhor porque é que o senhor tem sempre um ar tão triste.

Enquanto eu ando a passear com o meu pai, reparo que a mulher mais nova se levanta e se aproxima da minha mãe. A mulher fala, a minha mãe sorri, percebo que diz que não, a mulher continua a falar, a minha mãe a sorrir ao de leve, abanando a cabeça. Depois a mulher afasta-se da minha mãe e volta para junto da sua família.

Quando volto a sentar-me ao lado da minha mãe, o meu pai a dormir, pergunto o que queria a senhora. A minha mãe, em voz baixa não vão eles ouvir, diz-me que devia ser de uma daquelas igrejas, que veio com uma conversa do além, que podia levar uma peça de roupa do meu pai para a benzer e que a trazia benzida para a semana, e que lhe disse que ela não levasse a mal mas que não acreditava nisso e ela insistiu, que resultava mesmo. Mas depois lá desistiu.

Passado um bocado, levantaram-se, o filho a empurrar a cadeira do pai, a mulher atrás com um casaco de napa com franjas, umas botas também com franjas, umas calças justas, e, mais atrás, a mulher do senhor (que fazia umas quantas do marido, alta, gorda, possante, até andava de perna aberta, tal o volume). Em voz baixa, digo à minha mãe, Coitado do senhor, sucumbiu sob o peso da mulher. E a minha mãe desatou-se a rir e queria dizer que sim, que devia ter sido isso, mas nem conseguia, tal a vontade de rir.

Depois, passado um bocado, ficámos sérias e a minha mãe disse: 'A gente ri-se...', como quem diz que nada daquilo ali dá vontade de rir. E não dá. Qualquer um daqueles doentes podia ser uma de nós - mas fazer o quê?, temos isto de tentar espantar as tristezas com o riso.




A seguir levámos o meu pai para a sala do lanche. As empregadas tratam alguns doentes por tu. No outro dia o meu filho não achou graça a isso, achou que era infantilizar os doentes e que isso era falta de respeito. Mas eu não sei: não sei se aos doentes, dependentes, frágeis, não lhes sabe bem sentirem que são tratados com algum carinho, e aquele tratamento por tu parece-me ter carinho lá dentro.

Reparei que um dos senhores que eu nunca lá tinha visto não tem parte da perna. É um homem de meia idade e fez-me impressão, um ar saudável, e ali, numa cadeira de rodas com uma perna das calças quase vazia. Também lá está uma senhora sem uma perna. Da senhora a minha mãe sabe que sofre de diabetes.

Tento encarar tudo isto com algum distanciamento porque me faz muita impressão. A minha mãe não, cumprimenta todos, fala com as pessoas já com alguma proximidade.
A semana passada estava lá uma senhora que eu nunca tinha visto, numa cadeira de rodas, toda entre almofadas. A minha mãe explicou que ela pouco sai do quarto. Magra, magra, magra, só pele e osso, aspecto cadavérico, acho que nunca antes tinha visto uma pessoa naquele estado. Nem consegui perceber se era nova ou nem por isso. A minha mãe pôs-lhe a mão no braço e perguntou-lhe como se sentia. Ela nem conseguiu falar, apenas pestanejou, e a minha mãe fez-lhe uma festa.
Depois, fomos deixar o meu pai na sala de estar, despedimo-nos, eu disse 'até para a semana, pai', e beijei-o, e a minha mãe, como sempre, disse que eu ia para a semana mas que ela ia amanhã, todos os dias, e deu-lhe muitos beijinhos, fez-lhe festas na cara, ajeitou-lhe o cabelo. Sinto que fica sempre com pena de o deixar lá ficar, por ela já o tinha levado para casa há que tempos. Mas já falta pouco, daqui a nada faz três meses que lá está internado (e, infelizmente, os progressos são escassos).

Quando íamos a sair da sala, a entrada estava barrada por uma cadeira de rodas onde estava um homem ainda relativamente novo, uns quarenta e tal anos talvez, muito moreno, bigode, e com um cravo cujo pé estava preso atrás da orelha, a flor encarnada tombando-lhe sobre o rosto. E tinha um ar irónico. Eu e a minha mãe a queremos sair da sala e ele ali, aquele meio sorriso, cravo atrás da orelha, e então, quando eu disse: 'Dá um jeito, dá?', ele sorri e diz com aquele ar meio zombeteiro, 'Foi para isto...!' e nós ficámos a olhar, à espera que ele desenvolvesse mas não, limitou-se a rir, ajeitou o cravo, e disse de novo 'Foi para isto...!'. E depois deu um toque na cadeira, chegou-se para um lado e deixou-nos passar. A minha mãe perguntou-me 'o que é que ele quereria dizer com aquilo?' e eu disse que, às tantas, ele estava a interrogar-se se foi para isto que se fez o 25 de Abril.

(Ou, então, - penso agora - se é para isto que nascemos)



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  • A música é de Chopin: Nocturnos nr. 8 and 19, numa interpretação de Maria João Pires
  • A primeira e a terceira fotografias são de Mikko Lagerstedt, a segunda é de Andreas Athan e a última de Meshari Aldulaimi e referem-se a 'Céus estrelados' e descobri-as no sítio do costume, ou seja no Bored Panda.
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Permitam que vos diga que abaixo há um vídeo muito bonito com a Índia como pano de fundo e, mais abaixo, um vídeo da Porta dos Fundos sobre o vício das redes sociais e do uso de smartphones.

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Apesar de toda esta chuva e deste tempo tão cinzento, desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo e luminoso dia de domingo.


terça-feira, novembro 26, 2013

Leonor e Afonso





Uma casa com história, grande, escondida do exterior por um grande muro, paredes cobertas de hera, pátio interior, escadaria de pedra com fetos tombando dos vasos, lá dentro grandes pinturas a óleo, tapeçarias, mesas com toalhas de linho, copos de cristal, uma grande lareira acesa.

As vozes são civilizadamente alegres, fala-se baixo, há cumplicidades antigas no ar, uns sentam-se nos grandes sofás, outros olham as estantes enquanto conversam, encadernações antigas, e os tapetes são de lã, e são macios os pesados cortinados, e tudo parece abafar o ruído e o ambiente fica íntimo, e há jarrões brasonados e janelas por onde se espreita o frio húmido do exterior. Tudo transmite a ideia de conforto com muita patine.

Não tarda, duas empregadas servirão os amuse-bouche, depois, então, o consommé, as excelentes iguarias, a perdiz é sempre uma delícia, o vinho apropriado, e as conversas evoluirão entre sorrisos, palavras soltas, gestos discretos. 

A mulher não merece mais atenções que qualquer dos homens, está habituada a ser uma entre iguais.

Se alguém olhasse de fora perceberia, contudo, que há amizades desiguais, jogos disfarçados, interesses a serem negociados entre sorrisos, e talvez algo mais.

Quem será esta mulher que parece estar em casa, sorridente e afável, distribuindo palavras distendidas, no meio de um grupo de homens?, talvez se perguntasse esse alguém.

Contudo, minutos antes, quando circulava pela casa procurando um telefone fixo, Afonso viu numa outra divisão, num relance que não soube interpretar, alguém que parecia querer alcançar o braço desta mulher. Mas logo a porta se fechou e ele não conseguiu ver nada mais. Depois, à medida que se afastava, pareceu-lhe ouvir vozes quase em surdina, como que querendo abafar uma discussão.

Distraído que ficou, perdeu-se pelo casarão e, quando regressou, já ela estava sentada na sala, calma, bem disposta, petiscando e sorrindo enquanto conversava.

Afonso tentou reconhecer o braço que a queria agarrar mas todos os braços lhe pareceram iguais e em nenhum dos presentes percebeu qualquer inquietação.

À mesa, uma grande mesa redonda com um grande e alto castiçal de prata aceso a meio, a conversa fluíu com naturalidade, um ou outro toque de jocosidade: a recente reunião em Zurique, depois a conversa com o ministro que pouco acrescentou (é melhor que o outro?, e risos), as parcerias em análise, o parecer que, afinal, é tudo menos conclusivo pelo que será melhor pedir outro, e os financiamentos, e o recurso a fundos: isso anda ou não anda?, e a fiscalidade que é de gente doida, e ainda algum futebol (o Ronaldo, o Mourinho, o Blatter, mas também o João Moutinho, quem diria?), e sempre o frio e a humidade que aqui sempre se sente, e umas intrigas de salão sobre o orador que dentro em pouco se lhes juntaria, e também o jantar de Natal que se avizinhava. O costume, portanto.

Enquanto isso, as empregadas deslizavam em silêncio servindo, retirando, repondo. No final, cumprindo o ritual, a cozinheira veio à mesa perguntar se estava tudo bem e todos disseram que, como sempre, estava tudo óptimo, que não se come melhor em lado nenhum do mundo. E ela retirou-se feliz, faces coradas, a sensação de reconhecimento perante um dever mil vezes cumprido.

Durante todo o almoço, Afonso tentou descobrir em Leonor alguma alteração, alguma troca de olhares suspeita com qualquer dos presentes. Mas nada. Ela participou nas conversas, tranquila, sorridente, como se nada a afectasse. Tentou também detectar algum nervosismo em algum dos homens mas, identicamente, todos pareciam bem dispostos. De todos, o único que parecia estar nervoso era ele próprio, Afonso.

Quando se levantaram, Afonso abeirou-se de Leonor. Aquele perfume tão seu conhecido, aquele sorriso tão dúbio, aquela segurança vagamente intimidante. Então, tudo bem? Ainda não falámos…

Leonor respondeu, sorridente, despreocupada. Não? Não falámos? Não dei por isso. Achei que já tinha falado com toda a gente. Mas está tudo bem, sim. E consigo também?

Quem a veja nestas situações e ainda a não conheça pode pensar que se trata de uma mulher frívola, mesmo ela parece gostar de induzir nesse sentido, por vezes finge que não percebe, pergunta, faz-se de ingénua. Mas a frivolidade em Leonor é apenas aparência, toda a gente sabe disso muito bem. Afonso atalhou a conversa de circunstância, Há bocado, lá dentro, pareceu-me vê-la e ouvi-la a discutir com alguém. Passa-se alguma coisa? 

Leonor arqueou as sobrancelhas, abriu os olhos como que de espanto, A mim? Viu-me…? Que disparate! Depois alisou a interjeição, não fosse ele ofender-se, Olhe que não, doutor, olhe que não. Não saí da sala. Na volta sonhou. E em voz mais baixa, como que simulando uma indiscrição, Anda a ter sonhos comigo, doutor…?

Afonso ficou de semblante carregado. Não tinha dúvidas de que era ela que tinha estado naquela outra sala mas percebeu que não valia a pena insistir.

O convidado tinha chegado, veio sorridente beijar a mão de Leonor, cumprimentar os restantes e todos se dirigiram à pequena sala onde iria decorrer a prelecção e a troca de impressões.

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A música é de Brahms, Sonata Nº 1 para Violino interpretada por  Augustin Dumay e Maria João Pires.


Leonor é representada por Kate Winslet. Afonso é representado por George Clooney, aqui fotografado por Annie Leibovitz.


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Já agora: descendo um pouco mais poderão ler, ver e ouvir: Santa Joana Princesa. Momentos de suavidade em tempos de agruras.

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Convido-vos ainda a visitarem-me no Ginjal e Lisboa onde Benjamin Schmid interpreta Korngold. E José Gomes Ferreira faz-me sentir saudades como se, de facto, tivesse eu saudades.

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E, por hoje, fico-me por aqui. Desejo-vos, meus Caros Leitores uma terça feira muito agradável.

quarta-feira, novembro 06, 2013

A viajante viajando sobre a minha cabeça, Alfabetos, a Dama e o Unicórnio, a graça de Banksy e outros - sejam bem vindos a minha casa, deixem que os meus livros saltem para o vosso colo como crianças cheias de afecto. E o génio de Maria João Pires.


Não descansei o suficiente no fim de semana. Passa da uma da manhã e os meus olhos teimam em fechar-se, tanto o sono. Tinha vontade de aqui vos falar de tantas coisas, quero sempre dizer-vos tantas coisas. Coisas que me contaram, ideias que me ocorreram, passeios que dei, palavras que ouvi, livros que li, livros que comprei, livros que tenho agora aqui quase ao meu colo como meninos que não me largam. Podia sentar-me aqui, começar a escrever e encher páginas e mais páginas. Mas isto também não é nenhum livro nem um magazine para se ir folheando e vocês também têm mais que fazer. Deveria aprender a moderar-me mas não tenho vontade de o fazer.

Aliás, a limitação do tempo é o melhor antídoto para esta minha vontade de me pôr aqui na conversa convosco. Hoje alguém me disse que a minha escrita é acolhedora e eu fiquei contente como se me tivessem oferecido um ramo de rosas. Ou um bolo ainda morno, a cheirar bem como os bolos mornos sempre cheiram. Ou como se tivesse recebido uma carta de verdade escrita em papel macio, à mão. 

Gosto de saber que a minha escrita é como a minha casa e que vocês gostam de estar nela. 

Gostava de poder ter-vos aqui comigo, vocês a verem os meus livros, a espreitarem as minhas molduras onde há sempre sorrisos lá dentro, ou a olharem para cima, para verem a fadinha que aqui esvoaça sobre mim, ou a bailarina da saia comprida e colorida que rodopia à mínima deslocação de ar. Ou a viajante. Esta é recente, foi a minha filha que me chamou a atenção para ela, estávamos no Mercado do CCB.



estou aqui em ti
para viajarmos
ao infinito do tempo
descobrir a essência
de cada estrela cadente
de cada nuvem colorida
e vibrando
sempre vibrando
arco-íris de luz


Texto que acompanha esta senhora de óculos
que agora viaja aqui sobre mim -

figurinha da autoria de 'Senhor de ti, espaço aberto de criatividade'



Mas como vocês estão aí, tão longe de mim - mesmo que eu abra agora a janela para vos deixar entrar, temo bem que vocês se acanhem - vou mostrar-vos estes meus últimos livros. Quando poderei lê-los com o vagar que merecem? Não sei. Folheio-os, passo-lhes a mão, leio-os salteadamente, de vez em quando espreito-os, percebo de que matéria são feitos mas tenho, depois, que os deixar. Talvez por não poder já consumar o acto, sejam sempre tão desejados, talvez por isso ainda mais me apegue a eles.


Do Luis Quintais já no outro dia aqui coloquei um pequeno poema. Agora estou com especial curiosidade no 'Alfabetos' do Claudio Magris (tem uma capa magnífica). Logo antes de começar tem um texto sobre 'o melancólico' que tenho que aqui o transcrever. Não hoje que estou tão cansada. Todo o livro me parece ser muito interessante. 



Imaginem vocês que hoje descobri um livro do Banksy, 'Wall and Piece'.

Dia grande o de hoje, só coisas boas.
Fiquei como se tivesse recebido um presente muito desejado pelo Natal.

Quase não tem palavras, só imagens, mas tem uma breve introdução.
Começa assim 'I'm going to speak my mind, so this won't take very long'.

(O delicioso sentido de humor dele).

Na contracapa, onde costumam aparecer as referências elogiosas de críticos e assim,
aparece apenas um ramo de flores que vem da figura da capa e a seguinte citação
 "There's no way you're going to get a quote from us to use on your book cover"
- Metropolitan Police spokesperson

(o que eu gosto de coisas assim...!)


E 'A Dama e o Unicórnio' da Maria Teresa Horta, de onde hoje divulgo um poema no Ginjal
e
'Art is...' - The Metropolitan Museum of Art



Gostava de me debruçar um pouco mais sobre cada um destes meus livros preciosos mas não consigo. Talvez vocês possam sair do vosso conforto, atravessar os vastos espaços e vir até aqui. Quando eu estiver a adormecer podiam vir ler-me umas páginas destes livros. Eu pensaria que estava a sonhar mas seria de verdade - vocês, meus Leitores, falariam junto a mim, ler-me-iam os meus livros, palavras encantadas como histórias de ninar.

Mas vocês são uns comodistas, já sei que não vão atender ao meu pedido. Vou ter eu que inventar palavras enquanto o sono não chegar.

Mas antes de me ir deitar vou aqui deixar um pequeno vídeo que as televisões já mostraram mas que, ainda assim, faço gosto em que aqui fique. Maravilhosa Maria João Pires.




***

Sobre o porco que encontrei caminhando no parque, desçam por favor até ao post seguinte. 
E vejam o nome que o dono lhe deu...!

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Muito gostaria ainda de vos convidar a virem até ao Ginjal e Lisboa. Tal como acima referi, hoje por lá temos a 'Dama e o Unicórnio' e a poesia sensual de Maria Teresa Horta. As minhas palavras tentam fazer pendant. A música que se lhes segue é a de Mayra Andrade. Morninha, claro.


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E, por agora, é só. Desejo-vos, meus Queridos Leitores, uma quarta feira mesmo muito boa.

quinta-feira, agosto 15, 2013

António Lobo Antunes, o menino Antoninho, o Senhor António, o 'doutor dos malucos', o escritor que escreve em letra miudinha e que começou a escrever quando um doente lhe disse que o mundo foi feito por trás, o homem de quem as mulheres querem tomar conta - todos juntos vão ultrapassar todos os duros obstáculos, vencer todas as batalhas. Quanto mais não seja para que nós, os seus leitores (uns melhores que outros...), nos continuemos a enternecer com as suas palavras [... e o tema do divórcio entre a Judite de Sousa e o Fernando Seara passa para secundaríssimo plano]





A ver se consigo escrever alguma coisa. Não vai ser fácil. Aliás nem estou com vontade de escrever. Há pouco fervilhava de vontade de vir para aqui armar o fuzué do costume. Estava a ler a Lux e a cada página me ocorriam ideias.

Hoje à hora de almoço fui ao supermercado. Muitas vezes, quando tenho que esperar a minha vez nas caixas, pego numa das revistas que está ali ao lado, no escaparate, e enquanto não chega a minha vez, leio-a de uma ponta a outra. Adapto a rapidez da leitura ao tamanho da fila. Basta ler em transversal para se perceber o filme todo. Uma namorava e já não namora mas continua amiga do ex, outra está bem sozinha, outra está repleta de felicidade com o filho do mais recente casamento, o outro tem uma namorada nova e foi visto numa discoteca. Não passa disto. Acabo de ler, já não me lembro de nada e, de resto, não conheço quase ninguém daquela gente, quase tudo actores e actrizes das telenovelas que não vejo, ou modelos que também nunca vi antes. Mas não me interessa, enquanto espero a vez estou entretida e comprovo que continua a existir uma realidade paralela àquela em que eu vivo.

Hoje, mal entrei no supermercado, vi a Judite de Sousa na capa da Lux a dizer que já tinha pedido o divórcio. 




A Lux com a Judite a anunciar ao mundo que está livre e boa rapariga


Fiquei muito admirada. No outro dia numa estação de serviço tinha-a visto, radiosa, a sair da água de bikini, toda contente com a sua boa forma. Não me passava pela cabeça isto. Achava que ela e o candidato de direita (como o Prof. Marcelo se refere a ele quando, ao domingo, ele e ela falam do Seara sem que nenhum deles diga o nome do homem) eram um casal para todas as estações. Curiosa, fofoqueira, agarrei logo na revista na esperança de perceber o que se passava. Mas, afinal, depois de ter feito as compras, em vez de ir para uma caixa normal fui para uma daquelas caixas automáticas. Por isso, dei por mim com a revista por ler e sem ter como fazê-lo. 

Comprar a Lux é coisa que não me está no ADN, digamos assim, mas abandonar a revista sem perceber o que se passa com a Judite de Sousa não me agradava. 


Então pensei, levo a revista, depois no fim de semana levo-a para a minha mãe, ela vai achar graça, depois de a ler deve dá-la à amiga, ex-colega e vizinha, que lá vai a casa com frequência e com quem troca leituras e esta também deve gostar de ler. E, de resto, só custa 1,40 € e, assim como assim, há muito tempo que não cometo nenhuma extravagância. Já com uma justificação que apaziguava a consciência, lá trouxe a revista.

À tarde pensei, mais logo, à noite, antes de ir para os blogues, deito-me no sofá e leio o que se passa com a Judite e com o Seara; a ver é se não adormeço antes, com o sono que estou, pôr-me a ler no sofá é meio caminho andado para estar a dormir passado um minuto. Mas eis que recebo uma mensagem do meu filho a perguntar se podia cá deixar os miúdos para eles irem jantar fora e estar com os amigos. Claro que sim.

Mal cá chegou deu com a revista. Muito admirado, Mãe, está ali uma Lux... Lá lhe expliquei que tinha sido um caso de emergência, que a Judite se ia divorciar. Ficou também muito admirado e a modos que até pareceu perceber a necessidade de eu ter trazido a Lux.

Claro que, com os miúdos cá em casa, nem mais me lembrei da revista. Mas há pouco, estando ambos a dormir, lindos, fofos, aqui ao pé de mim, dois bonequinhos mais lindos, lá peguei na revista.

E lá fui folheando, até chegar à Judite. 



Naomi e Diana

A Liliana continua a ser amiga do Zé Carlos mas gosta mesmo é do filho, e gosta tanto que até costuma dizer que até as suas próteses mamárias ela deve ao filho (sic); a Naomi Watts vai fazer de Princesa Diana; o Sócrates está de férias no Algarve, no Pine Cliffs, e continua a gostar de correr e, depois, não resiste a um mergulho; o Professor Marcelo está perto, na Quinta do Lago, com saudades dos netos, mas, menos mal, juntou-se-lhe a Rita Amaral Cabral, a namorada; e o Eduardo Beauté está com o marido, o modelo Luís Borges, e com o filho, também a banhos, e aguardam ansiosamente a chegada de uma irmãzinha para o Bernardo; e o filho do Durão Barroso casou-se com a namorada e o filho foi ao casamento e lá estava o menino ao colo do avô Cherne e da avó Margarida; e depois caíu-me o queixo porque o Cláudio Ramos rompeu com o Pedro Crispim (mas o Cláudio Ramos afinal é gay assumido...? não fazia ideia) e seguem caminhos e objectivos de vida diferentes; etc, etc.




Será que toda a gente sabia menos eu?
E eu a pensar que o Cláudio Ramos era uma daquelas evidências que só o próprio teimava em esconder.



Até que finalmente lá cheguei ao ponto alto: Judite de Sousa pediu o divórcio de Fernando Seara.




O ano passado, quando pareciam formar um casal para sempre

E então lá vi que já viviam uma situação complicada há uns meses, que o Seara já saíu de casa, que ela está a tentar adaptar-se a esta fase da sua vida e que tem contado com o apoio do filho do primeiro casamento, que ao contrário do ano passado em que tinham conseguido conciliar agendas para poderem passar uns diazitos juntos no Algarve, ela estava sozinha, e que até já escolheu advogada e eu leio que a advogada é a temível Maria José Galhardo, a melhor que há para divórcios e penso que, se ela escolheu a Maria José Galhardo é porque receia que o divórcio não seja coisa pacífica, e que na TVI ninguém tinha desconfiado de nada, tal o profissionalismo dela.


E continuo. A Pimpinha Jardim tem um novo bebé. E as ex-top models continuam com um corpo de se lhes tirar o chapéu e vou continuando. 


Até que, mais para o fim, chego ao funeral de Urbano Tavares Rodrigues, e leio sobre o filho de apenas 7 anos da sua actual mulher, Ana Maria, e vejo os amigos, e conheço-os, não preciso de ver a legenda. Manuel Alegre e a mulher, João Soares, Carlos do Carmo, Vitorino, Francisco Louçã, Jerónimo de Sousa, António Vitorino de Almeida, Vasco Graça Moura, Helena Roseta, e aquela meio doida, com uma ar já um bocado estranho, a Clara Pinto Correia, até que vejo um casal que não conheço. Leio a legenda para ver quem são. Cai-me o coração aos pés.


Leio: António Lobo Antunes com Cristina Ferreira de Almeida. 




Não é esta a fotografia a que acima me refiro.
Nesta também estão António Lobo Antunes com a sua quarta mulher,
Cristina Ferreira de Almeida,
o quarto casamento para ambos

Não sei se ainda continuam casados.
Aqui ele estava muito bem ou , pelo menos, assim parecia. 


Angustiada, olho com atenção. É ele mesmo. Aquele rosto inchado, sem um único cabelo, talvez nem sobrancelhas, o aspecto típico de quem anda a levar horríveis doses de quimioterapia. Fico quase sem um pingo de sangue. Outra vez? Uma recaída? Fui confirmar à Visão. Continua a escrever e não tem falado nisto. Volto a ver a fotografia. Mas não, o aspecto não engana. Fiquei e ainda estou numa angústia.


Não consigo ler os seus romances desde há uns anos. Gostei muito dos primeiros e depois, quando a escrita começou a enovelar-se, deixei de conseguir. Mas gosto muito das crónicas, acho que é aí que ele é melhor. Ele odeia que lhe digam isso. Acha as crónicas uma coisa menor, um ganha pão. Mas é o que é. E gosto dos livros com entrevistas suas, tenho e li vários. Acaba por se repetir um bocado mas acho normal, se lhe fazem as mesmas perguntas, não vai inventar coisas diferentes só para parecer criativo. E acho graça ao ar blasé de quando dá entrevistas. E simpatizo com ele. Ele, conhecido através das suas crónicas, é um homem interessante. Tenho todos os seus livros porque acho que talvez um dia eu consiga perceber a sua arte, acho que o que eu gosto dele justifica que tenha ali tantos livros dele por ler. 

Não quero pensar que está outra vez sob ameaça. Lembro-me das suas crónicas escritas no hospital quando foi operado ao cancro, ou as crónicas sobre a imensa dignidade dos seus 'colegas' de quimio, sobre a sua própria fragilidade, sobre a importância das manifestações de estima na sua recuperação, mesmo que essas manifestações fossem uma mão sobre o braço ou o silêncio. Se escrevo agora, aqui, sobre isto é porque é a minha forma de lhe colocar a minha mão silenciosa sobre o seu braço. O afecto que talvez ajude a voltar a ficar bom.


Mas ainda não quero pensar que a ameaça voltou. Tomara que eu me tenha equivocado. Tomara que ele esteja bem. Tomara que, se não está bem, o fique rapidamente. Que ultrapasse outra vez as provações, que vença o bicho mau. Que continue por muitos, muitos e bons anos, a escrever.

Que o menino Antoninho continue dentro dele, curioso, irrequieto, feliz, que o menino Antoninho e o senhor António nos contem as muitas e ternurentas peripécias que se passavam no bairro de Benfica, o que se passam agora com as meninas que atacam ali por perto da leitaria do novo bairro, essas coisas, tantas coisas sempre, tantas coisas que queremos ainda saber.


António Lobo Antunes, um homem bonito, inteligente, polémico e que escreve (crónicas...) muito bem
E um gentlemen. E um lutador.
E um vencedor


Fique bom, António Lobo Antunes


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Juro que não vou esquecer
António Lobo Anunes


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A música lá mais em cima é o Impromptu Op.90 no.3 de Schubert interpretado por Maria João Pires

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um bom dia feriado!