Um bocado de paz
Peace piece - Bill Evans
*
E então, depois, há a terra, a que me recebe nos seus recantos de sombra, a que, bravia e arisca, se deixa amar.
. . |
Nos dias de calor, longe do mar e do rio, aqui in heaven, procuro as dobras de frescura, os lugares em que o cheiro das árvores, a caruma dourada, os langores de verão, se deitam na mesma cama, aqui onde uma outra mulher, uma mulher azul, se reclina, olhos fechados, apaziguada. Ou lê, silenciosa como eu, para que os pássaros não parem de cantar.
Percorro, depois, os caminhos de terra e pedra enquanto as cigarras cantam, ignorando quem passa. Vou sempre em silêncio, muitas vezes descalça. Se é ao fim da tarde, quase ao lusco-fusco, quase me assusto pois, de dentro dos arbustos ouço ruídos, parece alguém que se esconde, passos que correm. Mas olho e apenas vejo os ramos a agitarem-se. Penso que são coelhos. Outras vezes os ramos agitam-se com força, parece alguém a querer desembaraçar-se e fico em suspenso mas, depois, vejo que são os pássaros a soltar-se, erguendo-se num rompante em direcção ao céu.
Sigo então. A grande figueira está carregada. Os figos este ano estão miúdos, parece que o calor forte de há dias atrás os amadureceu precocemente. Mesmo os que agora vejo ainda rijinhos, pequenos, para a semana estarão já muito maduros, senão até caídos.
Uma constante este ano. Mas na natureza nada se perde, tudo se transforma, e as formigas têm tanto direito a eles como nós |
Mas a figueira não dá só suculentos figos. Dá sombra e tem um cheiro delicioso. Não há melhor do que ler um livro debaixo de uma figueira sentindo o delicioso cheiro do leite e do mel que escorre dos figos.
Este é o amor das palavras demoradas/ moradas habitadas/ Nelas mora/ em memória e demora/ o nosso breve encontro com a vida |
Este é um lugar habitado por poetas. Quem aqui costuma vir já os conhece. Muitos dos poetas que amo estão aqui presentes. É ao lado deles que me sento e são as suas palavras que me acompanham. A poesia não é só para ler nos livros ou nos computadores. É também para mexer e tanto que eu gosto de passar as minhas mãos por estes poemas, e é para cheirar pois não há poema que soe melhor do que os que cheiram a figos, a pinheiros, ou a erva molhada. Dentro de mim os poemas têm voz, sabor, cheiro, conheço-lhes a pele, sei como sol incide neles, conheço-lhes as consoantes em que a sombra se resguarda.
O alfazema também já está maduro e hoje apanhei alguns ramos para casa e para oferecer.
O perfume do alfazema maduro é doce, limpo, macio.
Tenho um bule muito antigo, que era de uma avó do meu marido. É de esmalte lilás e tem amores-perfeitos pintados. Todos os anos apanho alfazema e ponho-o lá. Perfuma a sala e a cor das espigas condiz com a sua cor suave.
. Está na parte mais alta de uma estante, quase junto ao tecto. É a única maneira do ganguezinho da desarrumação não esfarelar as espigas pois, vá lá saber porquê, adoram tirar-lhes as sementes. |
E, por falar em ganguezinho, hoje voltou a haver festa e, como de costume, não fica pedra sobre pedra. Brincam, descobrem, desafiam-se, ajudam-se, protestam, riem, riem, riem, brincam.
O ex-bebé apareceu ao pé de mim com uma coisa que eu nem percebia o que era. Ele levou-nos ao local: tinha retirado uma peça de uma bicicleta de ginástica que está lá num canto. E, muito compenetrado, concentrado, ali esteve a tentar colocá-la de volta. Temos engenheiro. (Oxalá a tenha deixado no sítio).
A bonequinha mais linda não pára. Espreita em todo o lado, tira do sítio, quer perceber o que é, vai mostrar, volta a arrumar mas onde ela acha mais conveniente, sempre decidida, sempre atarefada. Os primos adoram-na. O mais crescido mostra-lhe o funcionamento das coisas, explica tudo e ela ouve com a atenção que se dedica aos crescidos. Afinal ele tem quase mais dois anos que ela...!
O ex-bebé, então, acha-lhe uma graça especial e só quer mexer-lhe, fazer-lhe festas; ela quer brincar, não percebe aquela 'melguice' e sacode-o incomodada, sem paciência para bebés. Afinal tem mais sete meses que ele...!
O menino grande da família (sim, grande, já fez 4 anos, já vai para a sala dos grandes) tem o papel de explicar as coisas aos pequeninos.
Aqui, enquanto o irmão, o ex-bebé, não pára um minuto, a prima está intrigada por já ser Natal. Ele talvez lhe esteja a explicar que não é 'já', que é 'ainda'.
De facto, duas pequenas árvores de Natal estão ainda aqui, lado a lado. Eles acham-lhes tanta graça que não tenho coragem de as desmanchar ou retirar (ou é por isso, ou é por preguiça, não sei bem). A mais estilizada já muito depauperada pois é local habitual de recolha de estrelinhas e bolinhas. Anda sempre algum deles com um desses maravilhosos objectos coloridos e brilhantes na mão e eu descubro estrelinhas destas em todo o lado.
E depois há o bebé, o que nasceu há três semanas e que, por enquanto, ainda não desarruma nada. Mas já por aqui anda, participando na festa embora, para já, durma a maior parte do tempo. A maior barulheira, a maior confusão, luzes acesas, toda a gente a falar e a rir à volta dele, e ele, sossegado, na maior das tranquilidades.
Há sempre uma mão que lhe faz uma festa; uma ou mais, que o carinho é muito. Há sempre um sorriso ao olhar para o mais novinho da família, há sempre um gesto de ternura.
A maninha espreita-o, protectora, e os primos espreitam-no curiosos. O ex-bebé, então, pelas expressões de admiração que faz, dá ideia de não saber o que pensar de uma coisa tão pequenina. Olha para ele com ar intrigado e depois olha para nós como se esperasse uma explicação para aquele fenómeno. Como não obtém explicações satisfatórias como que encolhe os ombros, desiste e parte para outra.
E depois há o fascínio da bonequinha mais linda pela fotografia. Quem sai aos seus... Pega na minha máquina, que é grande e pesada mas que ela manipula com uma facilidade espantosa, tira a tampa da objectiva, liga-a, aponta maravilhada para cada pequena coisa e dispara. Muitas vezes chama-nos, encantada com os pormenores que vê - e pode ser um livro, a lareira, uma cadeira- : 'Olha!', diz-nos ela, aponta e dispara. Agora aprendeu também a fazer zoom e faz grandes planos. Outras vezes aponta na nossa direcção, diz 'Cu-cu...!' e, quando nós olhamos, dispara. Outras vezes não sabemos para onde apontou mas o resultado são peças abstractas com uma cor e um movimento que nos encantam.
*
Aqui sou eu em tudo quanto amei.
Não pelo meu ser que só atravessei,
não pelo meu rumor que só perdi,
não pelos incertos actos que vivi,
Mas por tudo de quanto ressoei
e em cujo amor de amor me eternizei.
*
Em itálico, no fim, o excerto de um poema de Sohia, senhora de muitas sábias palavras. As 'palavras demoradas' que se ouvem sob a figueira são também dela.
*
A todos vós, Caros leitores, desejo que o vosso encontro com a vida seja feliz, demorado. E que esta segunda feira seja um dia muito bom.