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quarta-feira, março 29, 2017

Coitado, tão feio. Mas uma ternura.




Sofria -- sofreu. 

Amachucado, traído, aos empurrões de todos, sucedeu-lhe a pior coisa que pode acontecer à matéria: veio-lhe fastio. 


Grotesco, feio, com a existência aos baldões, sem um bocadinho de ternura (a morte leva-lhe todos os amigos), rei ainda por cima, as suas anedotas, a sua vida, a sua figura, são ainda hoje motivos de grotesco... 

E no fundo, sob essa capa ridícula, por baixo da barriga, da papeira, da beiça, do olhar desconfiado, havia, houve sem dúvida uma ternura enorme. 

A mulher traíu-o; os filhos enganaram-no e mentiram-lhe; teve de fugir, de se livrar do veneno, das revoltas, da intriga, sempre a encostrar-se à amizade deste, daquele, dos generações, dos embaixadores, dos ministros, dos criados.. Não foi uma grande inteligência nem um grande carácter, mas foi uma extrema bondade. Passou a vida a afligir-se. 

Por qualquer lado que se encare é um motivo de chacota. 

É o senhor D. João VI -- é o pataco -- é o rapé  -- é a beiça... 


É -- mas é também o melhor homem da sua época, e, sob o grotesco, encontras uma grande beleza escondida, sumida, escarnecida. 


Sofria -- sofreu.

[in 'El-Rei Junot' de Raul Brandão]

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[E agora, depois de tanta maldade -- sim!, que, francamente!, não é bonito troçar do aspecto físico de tão clemente e régia figura -- aliviemos a consciência bailando uma chaconnne. E nada de trazer para a dança a memória desse herege do Raul Brandão que aquilo não são modos de falar, em especial a propósito de um rei tão determinado e formoso, tão gastronomicamene alavancado em coxinhas de galinha.]



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E depois deste meu momento bem comportado, de cariz histórico/literário, queiram, por favor, descer até onde esclareço um ou outro ponto relacionado com ilusões de óptica e outras cenas.

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sexta-feira, setembro 02, 2016

De novo, a observar os outros






O lugar do pequeno-almoço é amplo: estende-se entre a sala de jantar, o largo terraço coberto com um telheiro de madeira onde grandes ventoinhas suspensas agitam o ar, transmitindo a ideia de fresca aragem, e a varanda sobre o jardim. Pode estar muita gente em simultâneo que não se dá por isso.


Vimos o irmão de grada figura de Estado, quase igual ao mano nos gestos, na camisa dez números acima e igualmente descontraído. Ninguém o conhece, presumo, pois, que me aperceba, há pouquíssimos portugueses. 

Há um rapaz que está com o que deve ser a mãe e que é, nos modos, tal e qual o tal da Little Britain, the only gay in town.


Fisicamente é extremamente parecido com James Corden. Ao princípio pensei que fosse mesmo ele e surpreendi-me por ser tão gay já que Corden é casado e nunca lhe vi tiques abichanados. Depois vi que são apenas sósias.

Apresenta-se todos os dias com calção curto e justo, blusa justa de alças e com os chinelinhos turcos que estão no quarto para uso com o roupão após o banho. Como são muto leves, se ele andar com passo mais largo, as chinelinhas caem-lhe dos pés. Então, anda com passinho miúdo, como se fosse uma gueixa. E anda com as mãos levantadas, todo a dar ao rabo e só não sacode o cabelo porque não o tem para isso. A mãe também é grande e bem nutrida e usa o cabelo liso, presumo que pintado de preto, e veste-se toda de negro, num curioso look gótico. O filho deve ser muito divertido porque, quando ele fala, ela frequentemente desata a rir-se à gargalhada.

Ontem à noite alguém tocava piano no grande hall do hotel mas, pelo aspecto, e pelo que tocava, fiquei na dúvida se não seria um hóspede. Muito bom e completamente inesperado.

Quem lá vimos a escutar a música com ar encantado foi aquele curioso casal cuja nacionalidade ainda não conseguimos identificar. Inclino-me para que sejam israelitas. Vestem-se de forma ocidental. Os três filhos muito bonitos e modernos, um rapaz de uns 17 ou 18 anos com um daqueles cortes de cabelo muito na moda em que parte é curta e parte, no alto da cabeça, é maior, depois uma miúda linda de uns 14 anos e uma que terá uns 12.  O homem tem um aspecto também ocidental e é alto e bonito. A mulher é que é o elemento especial da família. Parece uma adolescente mas, olhando bem, vê-se que adolescente não é. É magra, tem corpo de miúda. Usa vestidinhos justos e curtos. E tem traços diria que levemente árabes. Usa rabo de cavalo, um cabelo escuro e liso como o das filhas. E anda muito direita, sempre com um meio-sorriso, e frequentemente põe a cabeça de lado, com um ar zen. Nunca a vejo a conversar com o marido nem ele com ela, mas andam sempre juntos, ele muito sereno e ela em estado de quase levitação. Ao pequeno almoço, os filhos vão buscar o que querem que os pais nada dizem. A mais pequena apenas traz mini-bolas de berlim, bolas e mais bolas, e a mãe olha com ar de flamingo suave como se o tema não lhe interessasse. A do meio apenas come fruta. Traz melancia, uvas, laranja, melão, taças de fruta e nada mais. O rapaz traz uma tigela de cereais secos, sem leite ou iogurte. E para os pais tudo bem. Os miúdos conversam uma língua que desconhecemos e riem entre eles e os pais olham-nos sem nada dizerem, suaves e sorridentes, como se observassem uma realidade que lhes é estranha. Na piscina, o rapaz lê, está sempre a ler, as irmãs mergulham e brincam, o pai olha para o céu ou dorme e a suave jovem mulher de vez em quando lê, de vez em quando olha para a copa das árvores e parece sorrir.

Gostava de os conhecer porque me intrigam.

Hoje calhou coincidirmos ao pequeno-almoço, embora em mesas relativamente distantes, com o indiano/paquistanês/inglês. Afinal usa óculos de ver e, assim e vestido, fica ainda mais interessante. Estava só com os filhos. Ele conversa com eles, vigia o que comem, de vez em quando faz-lhes um pequeno gesto de carinho, sempre atento. O meu marido disse-me: 'As duas ficaram a dormir'.

Voltei a encontrá-los na piscina. Ele sempre com aquele seu ar diligente, dobra a roupa, tira o protector solar do saco e põe nos filhos, ajeita o chapéu de sol, ajeita as toalhas nas espreguiçadeiras. Depois foi tomar banho com os filhos, brincou com eles na água. Quando o meu marido chegou da sua caminhada, ao vê-lo só com os miúdos, perguntou-me com ar de gozo: 'Então? As louras continuam a dormir, não...?'. Pelos vistos.

Voltei também a ver um curioso casal que já no outro dia tinha visto na praia: ele, alto, bronzeado, corpo cuidado, diria que já pelos 70 mas ainda muito bem. Cabelo completamente branco, penteado quase para trás, corte que as entradas favorecem. Uns calções de banho de risqunhas finas verticais em cinzento claro e branco. Tem um ar distinto. Com ele, uma que deve ser modelo, escultural, talvez nos trintas. Ele passa a vida a fotografá-la. Hoje ela usava um bikini cor de rosa vivo, tem cabelo louro muito claro pelo meio das costas e presta-se, proactivamente, às sessões fotográficas que ele, embevecido, faz. Parecem um casalinho apaixonado.

As duas miúdas lourinhas lá estavam hoje também: a ler, a beber cerveja, a conversar, a irem nadar. Inseparáveis. Também não percebo. A cada dia usam bikinis e túnicas diferentes, elegantes, vê-se que tudo de boa qualidade. Olhei-as bem. São mesmo muito miúdas ainda. Decididamente não percebo que duas jovens adolescentes venham de Inglaterra, sozinhas, para passar férias num hotel destes, limitando-se a circular entre a piscina e a praia e sem procurarem a companhia dos muitos outros jovens que por aqui circulam.

Na beira da piscina, entre pessoas que me parecem 'normais' e que não despertam a minha atenção, reparei também em três new-balzaquianas louras, que falam sem parar, riem, segredam, conspiram. Uma tem um bikini muito bonito, preto com bolinhas pequenas brancas e com um folhinho em baixo, na pequena tanga, e em cima, no cavado soutien. Muito sexy. Ela tem generosa carnadura mas nada de mais e, muito bronzeada, fica bem com aquele modelo. As unhas são em pink brilhante. E está sempre a escrever no telemóvel. As mãos ágeis como nunca vi, escreve com as duas mãos, com as unhas grandes, e sem quase olhar para o aparelho, pois conversam ininterruptamente. Não sei como o consegue, ao sol, com as grandes unhas e sem olhar para o que escreve. E o que será que escreve tão copiosamente?
Vou para lá sempre bem intencionada, de livro na mão, com muita vontade de me deixar estar ali a ler naquele cenário tão tranquilo. Contudo, passado pouco tempo, estou nisto: a observar os outros. E agora persisto: a relatar-vos o que vejo. A ver se me inspiro noutra coisa qualquer para não vos voltar a maçar com isto.


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Lá em cima a companhia de dança barroca "Neveux de Rameau" interpreta uma passacaglia. Pertence à ópera Armide de Jean-Baptiste Lully.

As duas últimas imagens mostram peças da autoria de ​Alyson Mowat nas quais cristais (duradouros) são colocados em flores (efémeras).

As ondas de vidro são peças da autoria do casal Marsha Blaker e Paul DeSomma

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E queiram, por favor, descer até a uma verdadeira amazing Grace. Tomara que não seja daqueles sucessos precoces que ficam pelo caminho.

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segunda-feira, junho 27, 2016

Futebóis, Ronaldo in The Last Game, Eleições em Espanha, Passacailles, Fotografias de Rua, Metáforas.



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Depois de ter partilhado convosco o vídeo que a grafómana Gina G. fez para mim, pus-me por aqui a circular pela net.

O meu dia foi tranquilo, praia de manhã, depois arrumações em casa, cozinhar, tratar da roupa, passeio a pé ao fim da tarde. Não vi televisão, não li jornais. 

Só há pouco soube que o ensarilhanço em Espanha se mantém -- e isso dá-me vontade de rir.

Quando a nossa comunicação social se faz eco das bocas que os ex-pafs vão passando e que tentam fazer-nos crer que em Bruxelas aqueles artolas andam preocupados com as medidas do governo português, só mesmo gente descerebrada é que pode cair nessa: com uma Espanha com um governo em gestão há meses, com um Reino Unido tem-te não caias há meses, com uns países a serem corroídos por dentro pelos vermes do xenofobismo e do populismo, só mesmo totós é que iam acreditar que alguém de bom senso se preocupa com as contas orçamentais portuguesas que, no meio de todas as dificuldades (em especial do sistema bancário), até se vão aguentando bastante benzinho. Talvez se preocupem, isso sim, com a forma tranquila como a governação está a decorrer 'apesar' das rédeas estarem na mão dos socialistas que contam com o apoio de comunistas e bloquistas, heresia que tende a chocar as cabeças acéfalas e burocráticas.

Mas não estou agora virada para me pôr a falar disto.


Hoje recebi um mail em que o Leitor referia o facto de eu também não me ter pronunciado sobre a passagem de Portugal aos quartos de final. Pois foi, não comentei. A noite ontem foi agitada cá por casa.

De facto, este sábado tive um dia cheio, cheio. De tarde, a família reunida. Os caranguejos começaram a atacar e agora vai ser de seguida. Depois, parte da família veio cá para casa: jantar, futebol.

Por isso, vi o jogo, sim senhor, mas, quem tem crianças pequenas em casa sabe bem como é difícil estar concentrada em qualquer coisa. O meu marido acho que ontem, por acaso, até conseguiu. Deita-se no sofá dele e foca-se, não janta ao mesmo tempo que nós para não perder tempo, e, quando nós regressamos à sala vai ele até à copa, onde vê o futebol enquanto janta. Regressou à sala, salvo erro, para o prolongamento. Nessa altura tinha-me eu alapado no sofá dele, de onde se tem uma melhor visão para a televisão -- mas fui logo corrida. Obedeci porque já sei que em dias assim, em que quer ver o futebol sossegado, fica arreliado se há muita perturbação ambiente e, portanto, dadas as circunstâncias, não quis acrescentar factores de distracção que o deixam amofinado.

Fui para outro sofá. Mas por pouco tempo.

Pelo meio, os demais também viam o jogo, mas depois os mais pequenos queriam o jogo que estava em cima do móvel que eu já nem fazia ideia o que era, depois queriam que eu ligasse o computador para verem um vídeo que metia o Ronaldo transformado num boneco atoleimado (e que agora descobri para vos mostrar), depois outro queria escrever e, pelo meio, eu ia tentando perceber a quantas paravam as modas com o esférico entre as quadro linhas.

Do que vi, pareceu-me um jogo morno, desengonçado, uns moços desfocados, uma falta de graça. Finalmente, com o golo do Quaresma lá vibrámos e houve saltos e palmas - e pronto, lá se passou à próxima. Mas falta garra. Já no outro dia o disse: falta testosterona à equipa portuguesa. Não têm instinto guerreiro, aquilo não desenvolve. Uma seca.

Claro que ainda bem que passaram à fase seguinte mas, com este nível de jogo, ninguém dirá que têm mística que chegue para se igualarem aos artistas do Fado ou ao poder de atracção de Fátima. Os três F's passarão a ser FF e um f muito pequenino. 

Para quem goste, aqui vos deixo, então, o vídeo que os pimentinhas estiveram a ver todos entusiasmados e que, na volta, consegue ser mais animado do que foi o fastidioso Portugal-Croácia.


Nike Football: The Last Game



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De notar que quando falo no défice de testosterona da selecção portuguesa, não me baseio em nenhuma constatação médica nem estou a insinuar nada. É, digamos assim, uma metáfora. E eu gosto de metáforas. Tal como gosto de ironia. Tal como gosto de subtilezas - mesmo que possa não parecer. Muito do que digo é assim um modo de dizer mais do que uma coisa verdadeiramente dita. Posso é não ter a arte para dissimular o entretexto ou as costuras do texto.

Já agora, para os que também gosta do assunto:

A arte da metáfora -- por Jane Hirshfield com animações de Ben Pearce




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As fotografias que usei ao longo do texto são da autoria do fotógrafo Bill Cunningham que trabalhou para a The New York Times e que se foi este sábado, com 87 anos. Pode ver-se em acção nestas duas últimas, ao praticar um dos seus prazeres, a Street Photography.


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A Passacaille de Jean-Baptiste Lully (em  Armide) pode parecer aqui deslocada. Se calhar está. Mas a mim apeteceu-me ouvi-la enquanto escrevia. Era como se estivesse a ver reflexos de luz, cintilações, revendo memórias, intangíveis pontos de luz. Espelho no espelho.

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E queiram, por favor, aceitar o meu convite e ver, já aqui abaixo, o vídeo que recebi de presente.