Nestas coisas nunca ninguém pode dizer que foi melhor assim. Eu, pelo menos, sinto-me incapaz de avaliar. Sei lá. Uma partida, ainda por cima quando a pessoa gosta de viver e tem muitas ideias na cabeça e força no corpo, é sempre a amputação de um percurso. De qualquer maneira, quando li que foi um AVC, não pude impedir que me ocorresse que ainda bem que não ficou cá para assistir à sua própria decrepitude, ficando dependente, incapaz de ser senhor da sua vontade. Independente como sempre foi, haveria de sofrer tremendamente se ficasse sem andar, se calhar com problemas na fala, se calhar sem mexer um dos braços, sujeito a ter que ser lavado, alimentado, movimentado por outros. Mas, lá está, isto sou eu a falar e, claro, influenciada pela situação do meu pai.
Mas como posso eu ter um pensamento assim a respeito de José Mário Branco se, a propósito do meu pai, mais velho, com uma dependência avaliada em mais de 90%, todos nos assustamos se ele piora e tudo fazemos para que fique bem? Quando estava mais lúcido e conseguia falar, chorava e dizia que queria morrer. E nós interrompíamos esses lamentos, não queríamos que ele dissesse isso, custávamo-nos muito. Mas a natureza é benevolente e vai retirando a consciência à medida que a dependência aumenta e, por isso, agora já nem do próprio estado em que se encontra ele deve ter perfeita consciência.Mas, portanto, sabe-se lá o que é melhor. Melhor teria sido se não tivesse tido o AVC. Mas, mesmo isso, é daquelas coisas. Queremos a vida eterna. Custa-nos aceitar a interrupção da vida, em especial quando é uma vida tão pródiga em talento. Mas ninguém cá fica. Por isso, tenho para mim que mais do que chorar a partida de alguém, devemos é festejar que tenha acontecido o milagre de existir e que tenhamos tido o privilégio de termos sido contemporâneos para testemunharmos as maravilhosas manifestações da sua vida.
A minha memória musical não é grande coisa. Depois de ter sabido da triste notícia, durante todo o dia andei com o Eu vim de longe na cabeça. Ouvi falar na Inquietação e recordei-a. Mas foi sempre o Eu vim de longe que se manteve instalado. Mas agora, em casa, ouvi várias cantadas pelo meu marido. Sabe incontáveis canções de fio a pavio, a letra e música inteiras. Cantou umas atrás de outras. Sempre foi admirador de Zé Mário Branco e temos vários discos e CDs. E eu também gosto muito.
Nestas coisas tendemos a ser injustos, fixamo-nos numa fase ou numa faceta da vida artística destas pessoas que, em dado período, tiveram grande visibilidade. Mas a vida de Zé Mário Branco foi muito mais do que esse período antes e a seguir ao 25 de Abril: tem sido compositor e produtor e grandes trabalhos saíram das suas mãos. Dizem dele que era genial e eu acredito que sim. Mas, por ser fraca conhecedora, não arrisco encómios.
Não gosto de elogios fúnebres, acho sempre que tudo o que se diga é incompleto, omisso, injusto. Por isso, nem pensar em ousar ir por aí. Mas há quem o faça bem: o país encheu-se de saudade, de recordações e de palavras que procuram o consolo para partidas assim, tão inesperadas.Por ora, fico-me, pois, por aqui.
E José Mário Branco também ficará, só que para sempre. Enquanto tivermos memória, poderemos sempre encontrá-lo nos muitos e belos trabalhos que nos deixou.
Eu vim de longe....José Mário Branco.
Nov. 2010. Vídeo: Felizarda Barradas