Dispensam-se discursos cheios de tacticismos. Leitura de poesia seria preferível. Dispensam-se cortesias e pró-formas. O melhor mesmo é encher ruas e praças, atirar foguetes e fogo de artificio, tocar tambor, cantar e dançar nas avenidas, andar com crianças pela mão, às cavalitas ou em carrinhos, exibir cartazes coloridos ou flores.
A liberdade não pode ser espartilhada, condicionada, ajustada ao calendário. A liberdade tem que ter a cor e o som e o cheiro e o sabor e o toque da felicidade.
Continuo ocupadíssima. É assim que gosto de estar. Gosto de fazer coisas que nunca fiz antes, gosto de aprender a fazer. De forma geral, gosto de aprender por mim e, espero que percebam que o que vou dizer é fruto da minha sinceridade e não da minha imodéstia: é que acho que aprendo depressa e não tenho muita paciência para as formações ministradas por outros, step by step, demoradas e repetitivas. E, quando estou neste processo, entusiasmo-me e, imoderada como sou, ponho o pé na tábua, acelero e é de sol a sol.
Claro que não será totalmente assim pois há as caminhadas, as lidas da casa, as conversas, seja por telefone seja por mensagem, há tudo o resto que faz parte da vida. Mas, no resto do tempo, estou atirada ao que agora me mobiliza e de que, um dia destes, vos contarei.
Claro que, sendo isto tudo novo para mim, de vez em quando tropeço. Mas como tenho impresso nas minhas células aquela velha máxima de que para a frente é que é caminho, reajusto-me, corrijo, refaço, e bola para a frente.
Claro que, com isto, não tenho grande disponibilidade e, sobretudo, disposição para me pôr a falar da delirante pinderiquice de um deputado larápio ou, sobretudo, muito, muito, muito menos, da desordem mundial a que provavelmente estamos a assistir. Ainda por cima faltam-me bases para poder perceber se é normal, de vez em quando, o mundo desatar aos soluços ou aos coices e mandar a ordem às malvas, colocando tudo num caldeirão em que a insensatez, a ganância, a malvadez, a arrogância, o medo, o ódio, o disparate, tudo, tudo se mistura sem se saber o que, no fim, se aproveitará. Mas, na minha ignorância e com o meu optimismo, custa-me muito ficar assustada e pessimista a achar que nos aproximamos a passos largos do fim dos tempos. Quero acreditar que desta caldeirada meio infecta a que assistimos haverá de nascer uma nova ordem, mais harmoniosa, mais generosa, mais inclusiva, bondosa, mais influenciada pela ciência e para verdade.
Mas, portanto, chego a esta hora e, antes de voltar à minha vida, passo os olhos pelas notícias ou espreito a televisão. Por exemplo, neste momento vejo e ouço um programa (Em Casa d'Amália) conduzido por um tipo muito castiço, o José Gonçalez, que pode não ter um jeito por aí além para apresentar programas de televisão (ou para se vestir) mas que leva gente incrível para cantar. Tenho conhecido ou revisto cantores fantásticos, tenho visto malta nova a cantar maravilhosamente, muitas vezes ali meio à desgarrada. Por exemplo, neste mesmo momento está o Luís Trigacheiro, maravilhoso Trigacheiro, a cantar a Chamateia em conjunto com o que creio que se chama Tiago Nogueira dos Quatro e Meia. Que momento lindo.
Mas, ao mesmo tempo vou espreitando vídeos e hoje vou partilhar um que não tem nada a ver com nada disto mas que sabe bem, aligeira, põe as ralações para lá.
Fernanda Torres conta os segredos de sua pele | Superbonita
Os cuidados com a pele ganharam um novo nome nestas duas décadas: é a rotina de skincare, alavancada pelas influencers do mundo digital. Os tutoriais de maquiagem também criaram uma nova cultura no universo da beleza e a pele negra foi valorizada. Isso sem falar em todos os modismos e cores de make! Todos estes assuntos são abordados por Taís Araújo, que revisita os arquivos do SuperBonita ao lado de Fernanda Torres.
Era uma vez um passarinho. Pousou em cima de uma pedra grande ali às portas de uma igreja pequenininha. E eu pus-me a olhar a ver se percebia que passarinho era ele. E depois, como não percebi, pus-me a olhar para a pedra, a ver se percebia se ele estava bem ali e achei que não, que haverá de lhe faltar algum conforto, parece que falta um assento àquela pedra.
Quando eu era pequenina, havia uma pedra grande ao pé da casa da minha avó, mas não tão grande quanto a do passarinho. Saía do chão, tinha uma leve elevação à frente e outra atrás e, para mim, era como se fosse uma mota igual à dos meus tios. Eu gostava de andar de mota mas os meus pais não queriam que os irmãos mais novos me levassem. Mas eles, por vezes, desobedeciam e, às escondidas deles e das minhas avós, levavam-me. Eu ia atrás, agarrada a eles, se o passeio fosse só na rua, ou à frente, eles dobrados sobre mim, se o passeio fosse maior. Na altura, não devia haver isso dos capacetes. Eu, pelo menos, não me lembro de eles me porem capacete. Agora que escrevo, tenho ideia que talvez eles tivessem mas devia ser grande demais para mim. Lembro-me bem, isso sim, dos meus cabelos compridos a voarem e do ar frio que tanto me agradava quando me varria o rosto, as pernas, os braços.
Então, porque eu gostava tanto de passear, eu ia chamar o meu grande amigo, inseparável amigo, um ano mais velho que eu e um deus de paciência, e fazíamos de conta que íamos passear de mota. Sentava-me atrás dele -- a pedra era plana entre as duas elevações, fazia um banquinho mesmo bom e à nossa medida -- abraçava-o pela cintura e imaginava que íamos por montes e vales, o vento a fazer voar o meu cabelo, a levar-me para longínquas paragens. Nessa altura eu era muito conversadora, passávamos tempos naquilo, eu fazia perguntas, ele respondia, eu contava alto o que a minha imaginação ditava e ele escutava.
Era tímido e reservado, ele. Eu era alegre, namoradeira, desde pequena assim. Fazia-lhe ciúmes, fazia de tudo para ele reagir, para ele se zangar, para ver se ele se manifestava, se ele pedia para eu não ser assim. Mas ele nunca se zangou, nunca se queixou. E eu não conseguia estar longe dele. O nosso convívio interrompeu-se por volta dos meus dez anos. Voltei a vê-lo uma ou duas vezes depois disso, ainda jovem adolescente. É que a minha avó mudou de casa e os pais dele também. A última vez que o vi foi no velório da minha tia. Eu estava à porta da igreja entre um grupo que conversava e vi chegar um homem moreno, já um bocado grisalho, e muito alto, encorpado. Ele veio ter comigo. Disse o meu nome, no diminutivo. Eu olhei para ele, perturbada. Era o pai dele. Pensei: 'Não pode ser, já morreu. Ou... não morreu ainda? Mas, se está vivo, teria que ser da idade do meu pai e não apenas um bocado mais velho do que era quando eu o conhecia'. Fiquei sem saber quem podia ser. Ele apresentou-se. Fiquei bloqueada. Não podia ser. O meu amigo não podia estar assim, um homem já daquela idade, tão igual ao pai. E como tinha crescido. Ele disse: 'Eu conheci-te logo, o teu sorriso é o mesmo'. Com ele vinha uma mulher, uma senhora da idade dele. Ele apresentou-a: 'A minha mulher'. Pensei: 'Nunca andará de mota com ele.'. Ela, simpática, disse: 'Finalmente conheço-a. Tanto que tenho ouvido falar de si'. Eu acho que não fui capaz de dizer nada. Provavelmente nem fui capaz de sorrir. Mas, como estava abalada pela morte da minha tia, talvez a minha perturbação tivesse passado por ser tristeza. E era.
Ele ainda ficou por ali, penso que a tentar conversar. Mas acho que não fui capaz. A ocasião não era propícia a que eu lhe perguntasse se se lembrava dos nossos passeios de mota, montados naquela pedra, eu abraçada a ele. Ou das tardes que passávamos a conversar na cabana que o avô lhe tinha construído ao fundo do quintal. E a minha avó a comentar com o avô dele, 'Mas que é que estas duas alminhas tanto têm para conversar...? Horas a fio...'
Naquela altura, ele era um menino muito inteligente, tinha recebido o prémio de melhor aluno do país. Sempre reservado, nunca o evidenciando, assim se manteve enquanto estudou, um aluno brilhante. Fui sabendo disso pela minha avó, assim como fui sabendo que, enquanto eu ia alegremente namorando, ele se mantinha sozinho.
Podia ter tido uma 'carreira' de sucesso, ele. Trabalhou na banca, teve funções de responsabilidade. Mas, há algum tempo, uma depressão séria levou-o a largar tudo antes de tempo. Presumo que tenha recebido uma indemnização, talvez boa. Comprou uma quinta e, segundo me conta a minha mãe, é lá que passa grande parte dos dias, sozinho. De vez em quando vai à casa na cidade, de vez em quando a mulher vai lá ter com ele. A minha mãe diz: 'No fundo, é do que ele sempre gostou'. Deve por lá andar a trabalhar a terra, se calhar a cuidar de animais, ou, então, a ler, a ouvir os passarinhos. Não sei de nada disso de anjos mas penso que tomara que um anjo o guarde. Quanto mais não seja, o anjo das boas memórias.
Mas, enfim, nem sei a que propósito veio isto.
Ah, sim, já sei. Mas aquela nossa pedra era mais pequena, com umas curvas suaves, e toda a pedra era mais macia que esta em que o passarinho de pedra pousou.
Nem sei porque é que me deu para me pôr com estas recordações. Na verdade, nem sei se ainda existe aquela pedra ou, sequer, aquela casa da minha avó. Provavelmente não, já nada. Mas também não quero ir lá ver. Prefiro apenas recordar -- enquanto aguardo que os passarinhos comecem a cantar aqui na varanda.
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E agora permitam que vos convide a continuar o passeio por esta bonita cidade. Desçam, por favor, que primeiro, iremos de visita ao Henrique Pousão e depois até à da Florbela Espanca.
Pensei que ainda iria visitar o Bento de Jesus Caraça mas o safado deste passarinho desviou-me. Talvez amanhã (e tentarei, como hoje, fazer orelhas moucas às rolhas que o láparo anda a pedir que lhe enfiem -- pela boca, disfarça ele).
A Leitora Rosa Pinto, que eu muito prezo, ontem escreveu num comentário: "Já que gosta de fotografar... umas fotos dos lagos do alqueva...coisa maravilhosa."
E eu, que sou bem mandada, cá estou a ver se as fotos fazem jus à beleza daqueles lugares.
O tempo esteve incerto, ora levemente toldado ora levemente ensolarado. Acho que as fotografias se ressentem com a incerteza da luz, parece que a refracção entorpece. De qualquer forma, aqui estão algumas das que fiz.
Este Alentejo após Alqueva é outro, ainda mais belo que antes, todo ele subtilezas, as terras a moldarem-se ao frescor das águas. E o rio tem requebros de ancas, todo ele curvas, as ilhas despontando da superfície azul como seios atrevidos, e as terras estão verdes, floridas, e há muitos pássaros, muitos cantos, especialmente ao entardecer. E depois há as lonjuras, as suaves elevações estendendo-se até onde a vista alcança, o horizonte sempre mais além, uma extensão desenhada entre águas, margens, lagos, árvores aqui e ali, silêncios, uma paz muito doce.
E há o que não posso trazer aqui: os perfumes, o perfume das ervas viçosas, das flores amarelas ou brancas, cheirosas, o cheiro limpo do campo banhado por águas azuis.
Também não consigo trazer aqui a aragem fria que sopra junto às muralhas dos castelos ou a aragem suave junto às margens dos lagos, ou o voo das andorinhas até aos ninhos de barro nos beirais, ou a tranquilidade das cegonhas no alto das torres, ou a beleza altiva de um cavalo branco que caminha sem pressa pelo monte abaixo.
Mas trago o que posso. Espero, Rosa, que goste. E espero, meus outros Leitores, que sintam vontade de ir ver aquilo que eu não consegui captar.
Mas vamos, uma vez mais, ao som da Gota de Água (uma música tradicional alentejana), num arranjo e interpretação que me encantam
Coros pelo Rancho de Cantares de Aldeia Nova de S.Bento;
Ronda dos Quatro Caminhos;
Orquestra Sinfónica de Cordoba
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E, à noite, num pátio, olhar as estrelas e ficar em sossego, respirando o ar puro, sentindo o tempo a fluir devagar, devagar, muito devagar.
De um de teus pátios ter olhado
as antigas estrelas,
do banco da sombra ter olhado
essas luzes dispersas
que a minha ignorância não aprendeu a nomear
nem a ordenar em constelações,
ter sentido o círculo da água
na secreta cisterna,
o odor do jasmim, da madressilva,
o silêncio do pássaro adormecido,
o arco do saguão, a humidade
- essas coisas, acaso, são o poema.
['O sul' de Jorge Luis Borges]
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Volto aqui para trazer para a linha da frente o poema de Florbela Espanca que Rosa Pinto deixou abaixo, em comentário, aproveitando para vos mostrar uma das árvores que fotografei:
Árvores do Alentejo
Horas mortas... Curvada aos pés do Monte A planície é um brasido... e, torturadas, As árvores sangrentas, revoltadas, Gritam a Deus a benção duma fonte! E quando, manhã alta, o sol posponte A oiro a giesta, a arder, pelas estradas, Esfíngicas, recortam desgrenhadas Os trágicos perfis no horizonte! Árvores! Corações, almas que choram, Almas iguais à minha, almas que imploram Em vão remédio para tanta mágoa! Árvores! Não choreis! Olhai e vede: - Também ando a gritar, morta de sede, Pedindo a Deus a minha gota de água!
Florbela Espanca
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa semana a começar já por esta segunda-feira.
Não falo hoje do Orçamento para 2016, da TAP, da TIA ou do Láparo que tão saudoso anda da TINA. Estou noutra. Há bocado ouvia chover e ventar com fragor, as janelas batiam e eu, aqui no bem bom, enquanto transcrevia parte da entrevista a Mario Vargas Llosa e à sua bela noiva Isabel, ouvia com gosto a manifestação da força da natureza.
Depois, quando já tinha passado as fotografias para o computador e me preparava para começar a dar conta das minhas presentes incursões, vi que tinha recebido um honroso e muito tentador convite, que desde já agradeço. Ainda aqui estou a digeri-lo e a pensar que, se alinhar, por um lado vou conhecer os ilustres tertulianos, nomeadamente um ou outro com quem já tive umas desconversas jeitosas mas, por outro, irei deixar cair o meu tão precioso anonimato. Tenho eu andado para aqui a vender refrescos -- que sou uma executiva avozinha que desfila deixando atrás de si um rasto a Chanel Nº5, uma maluca por livros e outras frescuras (e que só por acaso é que não vai à bola com o Rei das Cagarras ou com o Láparo das Farófias) -- e ia aparecer perante tão ilustres filósofos, politólogos, navegantes, beirões, transmontanos, doutores e sei lá que mais, toda euzinha, sem nada de interessante, incapaz de manter conversa profunda perante tanta erudição. Ainda desatam uns a falar em norueguês, outros em grego, a citar nomes de autores de que nunca ouvi falar e a dizer de cor parágrafos inteiros, logo ao pé de mim que tenho uma memória de galinha... Ainda me arriscava a ouvir algum dos mais destravados a perguntar-me porque é que, para a coisa ser mais coerente, não me tinha apresentado vanessamente com uma nail de cada cor, em vez de ter ousado comparecer num lugar destinado a gente de outra craveira. Pois, não sei. Vou ter que pensar bem.
Adiante, que tenho mais de dois meses para pensar no assunto (e para fazer uma plástica e para me cultivar).
De dia, por aqui, não choveu. Mas esteve frio. Uma vez mais tive que vestir roupa sobre roupa porque, quando vim, não achei que estivesse tempo para a vetusta samarra que lá tenho guardada para as verdadeiras intempéries.
A paisagem por aqui é tranquila. Os campos estão verdes, o rio vai cheio, e os montes despontam por entre as águas. O Alqueva traz a estas terras ainda mais beleza.
O Alentejo é sempre muito bonito. E não é só este rio, que mais parece um mar largo, nem são apenas as suas planícies, o gado que pasta pelas planícies, as árvores, as silenciosas lonjuras. São também as cidades, as vilas e aldeias. São terras sempre tratadas com mimo, limpas, arranjadas. Hoje uma senhora lavava a porta da casa que dava para a rua e, portanto, na prática, estava a lavar a rua. Há vasos na calçada, ninguém os tira ou estraga. Estão tratados com desvelo. A rua parece o prolongamento das casas.
Admiro-me sempre por ver tão pouca gente na rua. Contudo, em alguns passeios vi grandes grupos de homens. Reparei que era geralmente em frente a cafés, tabernas ou tascas. Lá dentro também só homens. Estão na rua a conversar uns com os outros, a ver quem passa. Não vi uma única mulher nesses grupos. E nessas tascas também não vi uma única mulher. Ao contrário das pastelarias em Lisboa ou arredores em que a freguesia é maioritariamente feminina ou que, nas ruas, quase se vêem mais mulheres que homens, aqui parece que as mulheres não usam o seu tempo livre para confraternizar em público.
Em Moura não apenas as casas parecem quase todas pintadas de fresco, como há várias casas cobertas de azulejos e várias muito bonitas, com apontamentos decorativos ou arquitectónicos que apetece fotografar. Por fora as casas têm um ar requintado e, por dentro, imagino-as também assim e luminosas, sóbrias, bem arranjadas.
Como sempre, ando por aqui feita turista acidental, nariz no ar, a espreitar céus e telhados, torres e passarada escondida nas árvores que, ao fim do dia, isto foi um chilreio digno de um grupo coral. Mais: parece que só vejo bem se vir através da lente. Andei a fotografar portas, janelas, varandas. Vejo, por todo o lado, pormenores que me encantam como esta porta aqui abaixo debruada com enfeites de pedra trabalhada.
Ou esta, aqui abaixo, de madeira, tão bonita, nesta casa também tão bonita.
Ou esta outra, cuja perspectiva ficou toda enviesada (as ruas são estreitinhas, não dá para apanhar de longe -- ou, então, é nabice minha). Vasinhos à porta, vasinhos pendurados, azulejos, a harmonia do branco, amarelo e azulejos: tudo tão bonito. Deve ter, lá dentro, tijoleira e soalho, móveis de madeira antiga. Se calhar, cheira a cera.
E vi uma livraria que me comoveu. Já estava fechada quando lá passei, senão ter-me-ia deliciado lá dentro. Há quanto tempo não via uma livraria assim. Habituada que ando a Fnacs, Bertrands e outros grandes espaços cheios de estantes, escaparates e mostruários com livros a metro, ver uma pequena livraria à beira da rua, com montra, deixou-me encantada. E o puxador da porta, que forma um coração, que graça. Se calhar sou eu que sou uma deslumbrada, tudo me deixa assim, nestes encantamentos, mas acho isto tão genuíno, tão bonito. Viver aqui deve ser tão bom, deve haver uma tal qualidade de vida. Não há trânsito, não há barulho, e é isto que aqui vêem, tudo limpinho, tudo arranjado com carinho.
Depois desatou a tocar o sino. Acho que era uma gravação, uma coisa exagerada, como se fossem vários sinos ao mesmo tempo, sem grande harmonia. Estava perto e dirigi-me para lá. Mas, como eu, muita gente. Era o chamamento para a missa. Admirei-me por, do nada, aparecer tanta gente. A igreja ficou cheia, uma igreja muito simples, austera, bonita. As fotografias que fiz lá dentro não ficaram boas, não me senti muito à vontade em andar ali a fotografar quando as pessoas se estavam a preparar para assistir à missa.
De qualquer forma, ainda me aventurei a fotografar os altares.
Para terminar, uma palavra para a simpatia das pessoas com quem falámos. Quando chegámos a Moura, certos de que, numa terra pequena, daríamos com o hotel logo às primeiras, não nos informámos sobre a sua localização. E a verdade é que demos com um e, convencidos que só havia um, a ele nos dirigimos. Mas afinal havia outro. Metemo-nos, de novo, no carro e, preguiçosos, também não nos deu para usar o gps. Por isso, encostámos o carro e informámo-nos junto de uma jovem mulher que passava com uma criança pequena pela mão. Ela explicou-nos num belo sotaque alentejano e, no fim, quando lhe agradecemos, respondeu-nos, resplandecendo um belo sorriso: 'Nada, ora essa. Obrigada nós!'. Ficámos espantados pela resposta 'obrigadanós'. Nós? Será que nos estava a agradecer por estarmos a visitar Moura? Não sei. Mas a verdade é que todas as pessoas com quem temos falado têm sido assim, de uma simpatia tocante.
Gosto cada vez mais do meu País.
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E agora permitam ainda que relembre: sobre a paixão que vive o nobelizado Mario Vargas Llosa pela porcelanosa Preysler falo no post abaixo. Falo eu não, falam eles, todos enamorados, mão na mão.
Domingo tranquilo. Caminhada de manhã junto ao rio, almoço cedinho numa esplanada com larga vista e, logo de seguida, ala moço que se faz tarde para o campo.
Sempre tive o hábito de, antes de sair de casa, a deixar limpa e arrumada. Mas não há hábitos que sempre durem. Hoje, quando, in heaven, abri a porta e cheguei à sala só me apeteceu fechar os olhos e fazer de conta que não estava a ver o lindo panorama que se me deparava.
Mas, se não se importam, vamos com o passarinho.
Dizia eu: uma bagunça total, brinquedos por todo o lado. E, reparo agora vendo a fotografia acima, até uma das almofadas está suja, na volta algum acidente com algum iogurte.
Pensei: como é possível uma barafunda destas? Mas logo me lembrei. A última vez em que lá tinha estado, tinha sido no dia dos meus anos, a casa cheia, almoço, lanche, meio mundo sempre a comer ou a beber, meio mundo a brincar, gente a entrar e a sair, um reboliço pegado. E, para nos virmos embora, foi aquele festival de sempre, um a querer chichi, outro a querer água, os sapatos de um desaparecidos, o boné de outro sabe-se lá onde, e reunir os pertences, e outro que também quer ir à casa de banho e outro que se esqueceu do carrinho e uns cá fora e outros nem se sabe onde e, no meio daquilo, a preocupação é que todos saiam de casa e que os que entram no carro sejam em igual número. E, no meio daquela logística complicada, há lá tempo de ficar a arrumar a casa...? Nem pensar! - até porque basta que haja uma pessoa dentro de casa para alguém mais ter motivo para lá voltar e lá se ensarilha, de novo, toda manobra de retirada.
Por isso, coração ao alto, fecha-se a porta -- e paciência para a desarrumação que fica para trás.
Hoje até uns sapatos de um deles lá apareceram. Ora, descalços não foram pelo que deve ter sido algum par suplente que ficou esquecido.
Dizia eu que cheguei e fiquei durante um instante em estado de estupor catatónico. Ia com vontade de me estender a ler e deixar-me ir pelo sono; mas como fechar os olhos a tanta desarrumação? Até folhas secas havia no chão. Devem ter entrado quando a porta esteve aberta e por lá ficaram a definhar.
Pois bem... Pensei: se me ponho com arrumações, lavagens e limpezas, nem à noite a casa está em condições, e chego ao fim do dia mais estafada do que no início do fim de semana. Então, mulher corajosa, virei costas à barafunda, peguei no meu livro, deitei-me noutro sofá e passados uns minutos estava a dormir o sono dos justos.
Quando acordei, a bagunça lá estava, quieta. Para não a ver, fui para a rua.
Matagal que deus o dá. Segui o mesmo salvifíco princípio da procrastinação e pensei: faço de conta que nem te vejo, ó mato, e logo trato de ti quando estivermos de férias.
Nasce erva por todo o lado, e eu, que gosto de tudo o que há por aqui, em vez de me pôr a mondar o que nasceu indevidamente, entretenho-me a fotografar.
Vejo os marmelos ainda pequenos, felpudos e dourados, vejo as diferentes tonalidades de verde, o milagre da natureza que renasce, e tudo sempre tão perfeito, tão belo, a um tempo tão efémero e tão perene.
E as amoras. Estava de saia, arranhei-me nas pernas, as silvas estendem as suas guias ariscas por todo o lado, e eu devia pôr umas calças ou desistir das amoras mas juízo não é o meu nome do meio.
Estão docinhas, crocantes, sumarentas. Ao jantar, juntei uma dúzia delas ao iogurte e mais umas sementes e nozes e soube-me que nem ginjas.
As uvas também prometem: é com cada cacho mais jeitoso. A videira trepa pela ameixeira e por outra árvore de que não sei o nome e há cachos pendurados por todo o lado. Não tarda estarão os bagos dourados e doces e, aí, será aquela velha luta que travo com os pássaros, eles a levarem-me sempre a melhor.
Mas não me importo muito: assim tenho-os sempre por lá, cantam, cantam, fazem ninhos, sentem-se em casa. Que comam, pois, as uvas, as ameixas, as maçãs, as nêsperas, os safados -- se, depois, me retribuírem em trinados felizes..
Depois fui para o banco de pedra que está num recanto abrigado, onde o sol, entre a sombra do pinheiro, me acaricia a pele. Ao fim da tarde, o sol está brando, a aragem sopra muito ao de leve, e eu ali estive a ler o meu livro, encantada, olhando o céu, as grandes árvores -- que, em tempos, plantámos e que regámos com carinho até que vingassem e se tornassem independentes dos nossos cuidados -- e ouvindo os pássaros. Pensei: este é um momento de pura felicidade.
É preciso tão pouco para eu sentir esta felicidade intensa, breve e intensa.
Depois, sempre com alguma nostalgia da minha parte, viemo-nos embora. Há quem diga que o que é bom pouco basta mas tão pouco a mim custa-me um bocado. Mas é o que é, o tempo não estica.
E, depois, ainda estivemos durante um bom bocado na esplanada de uma gelataria a deliciarmo-nos com um dos melhores gelados de Lisboa. Lambona como sou, bati-me com uma conchanata à maneira. O meu marido gozou comigo, que depois não me admirasse eu por estar tão pouco magrinha. Expliquei-lhe que, com aquilo, já ficava jantada. E, de facto, quase foi: tirando o iogurte e uma peça de fruta já cá em casa, não comi mais nada (pelo que talvez não engorde uns dez quilos à conta das quatro bolas de gelado com molho de morango com que me deliciei).
A seguir, cá em casa, já estive nas arrumações, já estive a fazer comida e a passar a ferro pelo que estou quase a dar a jornada por finalizada.
E aqui chegada, interrogo-me: mas isto que para aqui estive a escrever e estas fotografias terão interesse para alguém? Hoje ao almoço, numa outra mesa, toda a conversa girava em volta do facebook, do que um tinha posto, do que outra tinha dito, e do que o outro tinha comentado, e sei lá que mais, e eu e o meu marido estávamos divertidos com tanta parvoíce. Mas será que não é igual parvoíce eu estar para aqui com esta conversa toda? Na volta, é.
Olhem, meus Caros, se foi uma maçada para vocês lerem este relambório, as minhas desculpas - a sério - por tomar o vosso tempo com coisas que não interessam para nada. Isto é uma espécie de mania diarística, é o que é, mas é como se estivesse a fazer um diário a céu aberto. E isso, vendo bem as coisas, é um hábito meio sem jeito (acho eu).
Quando ouvi que a UNESCO tinha reconhecido o Cante Alentejano como Património Imaterial da Humanidade fiquei feliz e, como ando em maré de emocionar, deixei que as lágrimas me chegassem aos olhos assim que ouvi aquela boa gente a cantar.
É um canto que tem raízes na terra e que brota da alma das pessoas.
Gosto muito de ver e ouvir aquela gente, em comunhão, unida no canto tal como se une perante as adversidades da vida ou se une para festejar os momentos felizes.
O Alentejo é especial e belo em todos os meses do ano e as suas gentes, pelo menos as que conheço, são genuínas, francas, gente com quem se está sempre muito bem - e o seu canto é o espelho do Alentejo, da sua cultura despojada e das suas gentes.
Festas das Cruzes - Rancho de Cantadores de Aldeia Nova de São Bento
Pudesse eu fazer uma grande, grande festa, juntando todos os meus Leitores (... bem, todos não, só os que não me insultam e gostam de por aqui passar), e teria como convidados Cantadores Alentejanos para nos irmanar a todos, não apenas entre nós mas também entre nós e a terra.
Mas convidaria também um Senhor que engrandece Portugal: Carlos do Carmo.
Há dias Carlos do Carmo subiu ao palco grande do mundo do espectáculo e, dedicando-o aos portugueses, recebeu um Grammy. Não é coisa pouca e é uma honra que alguém que se tem mantido fiel à sua arte, à tradição do seu País, leal às suas convicções, veja reconhecido o seu talento desta forma tão brilhante.
Já antes tinha dado a cara aquando da bem sucedida candidatura do Fado a Património Imaterial da Humanidade de que foi grande impulsionador. Portugal deve-lhe muito. Faz mais pelo prestígio de Portugal do que mil Cavacos Silvas* ou Paulos Portas - mas, enfim, não quero agora falar desses vendilhões da Pátria que por aí andam a vender o meu País dizendo que tem sol, mulheres bonitas e uma companhia aérea em cima da mesa.
Adiante.
O vídeo que convosco partilho aqui abaixo é muito bonito, muito íntimo, Carlos do Carmo e Bernardo Sassetti a nu, vivendo em sintonia e total entrega a beleza da música.
Carlos do Carmo e Bernardo Sassetti na gravação da música "Cantigas do Maio"
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Já agora, os azulejos são outra das maravilhas do património artístico de Portugal. Estes que usei neste post encontram-se no Palácio dos Marqueses da Fronteira - de que aqui já falei a propósito de um maravilhoso dia de fim de verão em que festejámos o lançamento de um novo painel de azulejos da Paula Rego e de um livro conjunto, dela e de Antonio Tabucchi - , palácio habitado até há pouco por outra figura ímpar da cultura portuguesa, Fernando Mascarenhas.
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Caso vos apeteça um pouco de humor negro envolvendo Passos Coelho, alentejanos, porcos e motoristas, e os Cavacos vendendo Vistos Gold desçam, por favor, até ao post seguinte.