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quarta-feira, maio 15, 2019

O Expresso de sábado passado: belos textos
de Pedro Mexia [As bruxas de Allen],
de Tolentino de Mendonça [A mais antiga flor do mundo],
de Ricardo Costa [Um dia a casa vem abaixo]
e até, imagine-se, um bom editorial de João Vieira Pereira [E sobre a educação nada?]


Já no outro dia abordei o tema; agora vou falar dele.

Desde que me conheço, sempre que ia de férias e parávamos na estação de serviço para atestar o depósito, eu comprava uma revista. Comprava a Vogue ou a Art et Décoration, cheguei até a comprar a Hola. Era o que, no escaparate, mais chamasse a minha atenção. Apesar de ir sempre carregada de livros, as férias tinham sempre que começar com uma coisa atípica e ligeira.

Agora, para quatro dias em Lagos, foi a mesma coisa -- só que desta vez a coisa atípica e ligeira foi o Expresso.

Depois de ter sido fiel leitora durante mais anos do que aqui seria decente confessar, fartei-me: o Expresso tornou-se pasquim, coisa sectária e nada rigorosa, instrumento ao serviço de uma agenda que a mim me desagradava demais.

O meu marido desistiu antes de mim. Passei a ser eu, sozinha, a dar a volta àquilo, e cada vez mais contrariada; por fim um exercicio que já mais parecia puro masoquismo. Até ao dia em que decidi: nunca mais. E mandei o Expresso catar-se. Depois disso abri umas duas ou três excepções. E este sábado foi uma delas. Não só, como sempre, me apetecia algo como fiquei curiosa com a capa da Revista: aquilo do Bannon interessou-me. Esta sinistra criatura intriga-me (e assusta-me).

O meu marido é mais firme e radical que eu, recusa-se a tocar no Expresso. Eu sou mais moderada nas minhas antipatias.

Ainda não li tudo e creio que não lerei pois, ao espreitar algumas colunas, vi que continua a ser mais do mesmo, conversa vazia, conversa mascarada de coisa de jeito, treta, manipulação, ainda a mesma desagradável manipulação. Encolhi os ombros e passei à frente.

Mas, verdade seja dita, eu que sou céptica, e ponham céptica nisso, sobre o João Vieira Pereira -- jornalista que se especializou em avisar que vem aí o lobo e cujos ódios de estimação frequentemente toldam a sua capacidade de isenção -- até gostei de ler o seu editorial sobre a crise dos professores ('E sobre a educação nada?'). Fui até ao fim a ver quando é que apareciam aqueles seus velhos tiques de sectarismo mas cheguei ao fim a pensar que alguma coisa nele mudou. Na volta, está mais homenzinho, já vê as coisas de uma maneira mais esclarecida, aprendeu a sobrevoar a espuma e a olhar melhor para a raiz das coisas. Não sei. Não é por um editorial que posso tirar conclusões mas lá que me espantei, espantei. 

De qualquer maneira, concentrei-me na Revista que é aí que habitam aqueles de que mais gosto, e, tenho que confessar, gostei do que li. Sobretudo o Mexia, o Tolentino, e, surpresa das surpresas, o Ricardo Costa. É que, se não me admirei de gostar do Mexia ou do Tolentino, a verdade é que pasmei com a qualidade do artigo do Ricardo Costa.  

E, embora ainda mantendo severas reservas mentais, tenho a dizer que gostei de matar saudades dos bons velhos tempos.

Se um dia me der para isso ainda aqui hei-de transcrever um pouco do texto do Pedro Mexia sobre a perseguição a Woody Allen, 'As bruxas de Allen', texto no qual me revi, e também sobre o belo texto escrito pelo Pde. Tolentino de Mendonça e dedicado a Maria Teresa Horta, 'A mais antiga flor do mundo'

E gostava de ter coragem e tempo para aqui fazer um resumo do bom artigo de Ricardo Costa , 'Um dia a casa vem abaixo' mas temo que isso nunca aconteça pois é um texto longo e todo ele suculento. 

E para atestar a sua qualidade conto-vos que no outro dia à tarde, à beira da piscina, estive a ler o artigo em voz alta e o meu marido, interessado do princípio ao fim, a ouvir. E, volta e meia, interrompíamos para comentar. No fim, ele disse: 'Ora aqui está uma boa coisa: tu lês em voz alta e eu ouço'. E eu disse: 'Ser a tua diseuse, querias...'Mas a verdade é que gostei da experiência. 

Não sei qual a prática do Expresso, se ao fim de algum tempo, os conteúdos exclusivos a quem tem assinatura ou compra em papel ficam abertos. Se ficarem, sugiro a sua leitura. 

Os riscos do populismo, as manobras dessa criatura tenebrosa que dá pelo nome de Steve Bannon, agora apostada em destruir o edifício europeu, as emergentes figuras de ultra-direita em ascensão no panorama político e que ameaçam dinamitar o frágil equilíbrio existente entre os partidos com assento parlamentar, tudo ali aparece fundamentadamente descrito. 

Tinha-me esquecido que Ricardo Costa era jornalista. Afinal é e, se se mantiver como se mostrou neste artigo, arriscarei dizer que é dos bons.

quarta-feira, maio 03, 2017

Sobre a questão religiosa no ano do Centenário das Visões imaginativas (vulgo aparições) de Fátima





Sobre religião ou práticas religiosas já aqui falei algumas vezes mas, com vossa licença, aflorarei de novo o tema. Tendo frequentado a catequese, desde logo não me sent cativada por nada do que tentaram ensinar-me. Tudo era muito focado na noção do pecado e da confissão e, desde que me lembro, tudo aquilo me parecia forçado, artificial ou incompreensível. E ter que ir confessar coisas que não me pareciam pecados era uma violência que me custava suportar. Depois a história contada era toda ela focada em episódios que não me pareciam credíveis. Portanto, ao fazer a comunhão solene, mal me vi liberta da obrigação que, na prática, me era imposta e à qual os meus pais não se opunham, soltei amarras e distanciei-me.

Não me casei pela igreja, não baptizei os meus filhos. Estar numa missa do princípio ao fim --o que acontece muito esporadicamente e porque a situação o impõe -- é, para mim, um tempo que dou por mal empregue e no qual não vejo sinais daquilo que, para mim, é a religiosidade. Tudo aquilo é ritualizado e, não estando eu por dentro, não consigo acompanhar as 'falas' ou a 'coreografia' do ajoelha, senta, levanta. Mais: acho de mau gosto aqueles cantares meio amodernados, com jovens tocando alegremente viola. 

Dito isto.

Em Évora, no outro dia

Não há vez nenhuma que vá de passeio que não entre nas igrejas, em especial quando não há missa (que é, quase sempre, o caso), não me deixe por lá ficar uns momentos, não me sinta bem naqueles espaços de silêncio e paz. Mais: como também já o contei, na minha casa in heaven, não descansei enquanto não arranjei maneira de lá ter uma capela. 

Não me revejo em doutrinas, dogmas, práticas, preceitos, preconceitos. Pelo contrário, tenho em mim um sentimento difuso de religiosidade. Sendo profundamente humanista, quase venero a natureza. Penso que é no maravilhamento pelo milagre da existência de tudo e no respeito pela sua preservação e dignificação que residirá, talvez, o verdadeiro sentimento de religiosidade. Penso eu, claro.

Em Vila Viçosa, no outro dia

E se percebo a necessidade de encontrar um rosto humano ou um nome a quem dirigir os nossos apelos ou preces, não me revejo numa história que, ao longo dos tempos, foi construída sobre preconceitos, sobre exclusões, sobre regras que, se não cumpridas, levam ao castigo. Para mim uma igreja deve ser um lugar de inclusão, de generosidade e tolerância. Sempre me incomodou, mas incomodou visceralmente, que a igreja repudie os divorciados, os homossexuais (ou as adolescentes com calções e tshirt de alças como aconteceu comigo e já aqui o contei). Só esse facto me levaria a não poder colocar-me ao lado desta igreja. Sempre me incomodou que a igreja mostrasse tanto repúdio em defender o uso de preservativo mesmo em situações de risco, ou os contraceptivos em geral. É um pormenor, eu sei. Mas ilustra o que quero dizer. Uma igreja que se agarra a ideias desfasadas da realidade e em nome da qual se condena, se marginaliza, não é lugar que eu ache recomendável.

Mais: não gosto de ver aquelas organizações de jovens que parece que sofreram lavagem ao cérebro e se emocionam perante fenómenos que a pscicologia de grupo explica. Não gosto de ver jovens a falarem como velhos moderninhos. Não gosto de ver jovens que se mobilizam entusiasticamente para actividades sem qualquer utilidade social como, por exemplo, irem em peregrinação a Fátima ou irem a Roma ver o Papa. 

Haverá -- certamente que há -- actividades organizadas pela Igreja e que são de grande utilidade social. Não digo que não. Tal como se encontram actividades meritórias e solidárias em sociedades desportivas e recreativas.

A Igreja Católica vem perdendo crentes enquanto outas igrejas e credos vão conquistando aderentes e isso tem uma explicação muito óbvia.

O persistir na defesa de 'milagres' ou numa doutrina que apoia a crendice e defende a exclusão não é inteligente.


Li hoje que, nas primeiras descrições das aparições, os pastorinhos falavam que a Senhora vinha de vestido azul pouco abaixo do joelho. Depois, com os anos, a descrição do que a Senhora tinha dito foi sofrendo alterações enquanto o vestido ia descendo e lhe aparecia uma capa pelos ombros. Na altura, os párocos referiam-se ao que se passava como coisa de crianças. Contudo, em cima de uma história destas, sem pés nem cabeça, a igreja arquitectou um edifício de crendices que alimentou um negócio próspero -- e que, em minha opinião, desvirtua o verdadeiro sentido religioso da Fé.

Já no outro dia aqui o disse. Que se escolha um lugar como espaço de meditação ou como espaço de partilha de fé, eu compreeendo. Que, para além disso, se tire partido disso para fomentar o turismo, eu também percebo. O que não percebo é que se fomente a crendice e se deixe que pessoas se arrastem, pés em ferida, joelhos em sangue. O que não percebo é que, ao mesmo tempo que se louvam ídolos religiosos, se fomentem práticas que mais parecem pagãs ou que se fomente que é pelo sacrifício que se conseguem as boas graças de santos, santinhos, beatos e beatinhos.


Que se ensinasse que, em tempos, houve um homem bom, justo, um lutador corajoso que deu a vida pelas suas convicções, um homem que sabia perdoar, que não julgava com sete pedras na mão, que se preocupava com os doentes e com os pobres, isso parecer-me-ia suficiente como aglutinador de uma crença, de uma prática de vida.

Li um texto no Kyrie Eleison intitulado A questão religiosa no qual fiquei a pensar. Terá razão o JCM naquilo que escreve mas não se pode abraçar uma religião e seguir os seus preceitos pelo medo do que por aí pode vir se não o fizermos. Tem que ser porque com ela nos identificamos.

Recomendo a leitura desse texto que começa assim:
O Iluminismo assentou a sua avaliação – claramente, negativa – da religião revelada em três pilares críticos: a crítica do preconceito, da superstição e da autoridade que não advenha da razão. Segundo os iluministas, a religião revelada manteria uma atitude anti-racional fundada em preconceitos e superstições, na ordem do conhecimento, e na autoridade, no que diz respeito a matérias morais e à própria crença dogmática. Esta crítica racionalista tornou-se no Ocidente culto o padrão com que se julga ainda hoje a religião. O que levanta, pelo menos, dois problemas. (...)
Percebo a preocupação expressa na formulação dos problemas e, embora não partilhe o mesmo ponto de vista, acho que o tema merece reflexão.

E não me alongo mais. Não é tema que se aflore num sítio destes pois não é matéria para três pinceladas mal amanhadas. São temas complexos. E compreendo que, se as pessoas não reconhecem em si uma matriz cultural que seja esteio e propósito para a vida, ficarão, talvez, vulneráveis a quem as saiba convencer a arrimarem-se a outros amparos, quiçá destruidores da civilização a que chamamos nossa. Resta saber é se a igreja católica, tal como ela é, tal como chegou aos dias de hoje, é ainda essa matriz, a matriz que nos defenderá de uma eventual destruição.

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A primeira fotografia mostra 'Suspensão', obra de Joana de Vasconcelos que representa um terço. Foi inaugurado esta terça-feira no Santuário de Fátima, tem 26 metros de altura e dá luz.


A música lá em cima é o Hino Fátima 2017 feito para a visita do Papa, com letra de José Tolentino Mendonça e música de João Gil.


Ambos os trabalhos, o terço e o hino, ilustram o que eu acabei de dizer: não consigo rever-me nisto. Em nenhum dos dois reconheço sinais daquilo que para mim tem a ver com um sentimento de religiosidade. Contudo, admito que o problema seja meu.

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E, a quem não é dado a temas religiosos, permito-me sugerir a visão do monólogo de Colbert contra Trump. É de antologia.

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domingo, setembro 06, 2015

O importante não é ser perfeito, o importante é ser inteiro


Desintoxiquei-me do meu vício do Expresso mas este sábado tive uma recaída. Quis ler o artigo sobre a situação na Ucrânia, que a agenda mediática já deixou cair e que, por motivos vários, é tema que me interessa.

E foi com uma certa saudade, tenho que confessar, que antes de me debruçar sobre esse artigo, me atirei aos cronistas que, antes, faziam com que eu, semanalmente, não prescindisse o Expresso. Destes, foi como que a medo que logo procurei José Tolentino Mendonça: ia com receio que, desta vez, não tivesse saído nada de marcante e fosse uma oportunidade desperdiçada já que nem tão cedo conto voltar a compre o jornal. Mas, thanks God, não me desiludiu - muito pelo contrário.






E se o tema da crónica me é particularmente querido, a mim que luto contra o determinismo absoluto que parece alastrar por todo o lado, como se a vida tivesse que ser uma sucessão de factos (ie, de feitos) para atingir objectivos previamente determinados...!
Como me custa que pareça encarar-se o imprevisto como um corpo maligno que deva ser extirpado ou como se o ideal fosse previamente ocupar todo o tempo e todo o espaço para que não haja lugar a acomodar situações inesperadas. 
Ou como me parece fútil que algumas pessoas se apresentem permanentemente como vítimas, como se fossem predestinadas à desventura apenas porque lhes sucedem alguns infortúnios. 
Ou como me custa ver como outras quase desprezam os que valorizam os pequenos nadas como se estes fossem mentalmente desvalidos por não se deixarem abater perante as desgraças do dia a dia.
Ou como há intolerância perante pequenas fraquezas, quase querendo condenar à fogueira do opróbrio público quem não foi capaz de se eximir a insignificantes pecadilhos, como se apenas fossem dignos de respeito os que, de tão perfeitos, se apresentem como anódinos e amorfos seres. 
Tolerância, generosidade, inclusão, disponibilidade para a surpresa dos instantes, maravilhamento: tudo isso para mim são vectores que tento que norteiem a minha vida. Talvez nem sempre o consiga mas tento-o. Humildemente, tento-o.

Durante anos e anos sentia-me estranhamente abençoada: sem doenças, oriunda de uma família saudável, de gente que vivia até tarde, eu era, até não há muito tempo uma pessoa que tinha ainda vivos não apenas os pais mas também os avós (excepto o que morreu de acidente quando eu era pequena), e todos os tios - tudo gente a respirar saúde. Depois, um a um, os avós foram indo e, surpreendentemente, até uns tios saudáveis foram desta para melhor em três tempos. Depois o cerco apertou-se e vi o meu núcleo mais estreito também ferozmente atacado. Do lado do meu marido também tem sido um vê se te avias.

No outro dia, por causa de uma outra situação triste, fui ver as fotografias do casamento da minha filha e reparei como, de lá para cá, já desapareceu tanta gente de um lado e de outro.

Fez-me impressão, por pouco não me punha a contar os que, naquele dia, riam felizes e que, agora, poucos anos decorridos, já não pertencem ao nosso mundo. Mas não contei porque pensei que, nisto, não faz sentido fazer contabilidades até porque, para ser correcta, deveria também fazer a contabilidade dos que nasceram de lá para cá.

É que, ao mesmo tempo, tanta gente que, então, não existia, hoje por aí anda saltando e rindo. Ainda há cerca de um mês nasceu mais um, desta vez mais um filho de um primo meu que já tinha idade para ter juízo - se a memória me não atraiçoa já tem uns 54 anos.

Assim é a vida.

Imprevistos, insucessos, tropeços, sustos, desgostos, ausências que nos esquartejam, mas, pelo meio, alegrias, orgulhos, ternuras, surpresas, momentos de amor e felicidade.

De cada vez que passamos por agonias, mais valor damos aos bons momentos, de cada vez que passamos por sofrimentos e que constatamos quanto é efémera a vida, mais nos apegamos à brevidade imaculada dos instantes.

E eu, de cada vez que levo um abanão, mais sinto necessidade de me encontrar disponível para me maravilhar com as pequenas coisas pois sei que pode vir o dia em que as queira ver e não consiga, em que queira andar e não possa, em que queira abraçar a vida e a sinta fugir-me entre os dedos.

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E, agora que já divaguei, transcrevo, então, uns excertos da crónica de José Tolentino Mendonça na revista E do Expresso deste sábado - e espero que tenham tanto prazer em lê-los quanto eu.




A vida sem mais


Vivemos numa sociedade dominada pelo mito do controlo. E o seu postulado dogmático é este: a receita para uma vida realizada é a capacidade que tivermos de controlá-la a 360º. Ora, não percebemos até que ponto uma mentalidade assim representa a negação do princípio de realidade.

De repente, uma ideia de vida substitui-se à própria vida. A nossa viagem passa para as mãos de um piloto, que só tem de aplicar, do modo mais maquinal que for capaz, as regras previamente estabelecidas. Os nossos sentidos adormecem. Deixa de haver lugar para a surpresa. As nossas expectativas desenham uma determinada arrumação, construímos previsões e esquemas. Mesmo insconscientemente vamos perseguindo essa espécie de guião. Uma coisa, porém tenho aprendido: é importante não condicionar o fluxo espantoso da vida e a capacidade que ela tem de nos surpreender. A nossa vida é um instante em aberto. Somos chamados a cultivá-la, sim, com a paciente humildade que um jardineiro reserva ao seu jardim. Ele trabalha de sol a sol, com todo o afinco, mas sabe que a rosa floresce sem saber como. Felizes aqueles que, em relação à vida, se alimentam do espanto interminável: esses, e só esses, sentirão a sinfonia inacabada do tempo como uma promessa. (...)


Teremos, em algum momento do caminho, de recuperar a sensibilidade à vida, à sua desconcertante simplicidade, ao seu canto frágil, às suas travessias. Por vezes, gostaríamos que a vida fosse mais redonda, mais linear, não tivesse aquele solavanco, aquela ferida, não tivesse passado por aquele estremecimento, não incluísse este contraste. Mas em nós coexiste o próprio contraste e a atitude não é mudar aquilo que não podemos mudar, mas sim compreender que isso também é um dom que somos chamados a acolher. Como ensina Jung, 'o importante não é ser perfeito, o importante é ser inteiro'.

Os pequenos triunfos dão-nos fortaleza para olhar as grandes humilhações, e as dificuldades vividas dão-nos humildade para viver os triunfos. As experiências de liberdade dão-nos a capacidade e a esperança para suportar os momentos de penumbra; e os momentos em que nos sentimos aprisionados dão-nos a resistência, a força e até o sentido de humor para vivermos os tempos de liberdade. (...)

Recorda Rainer Maria Rilke em 'Cartas a Um Jovem Poeta': 'O tempo não é uma medida, um ano não conta, dez anos não representam nada, ser pessoa não significa contar, não se trata de contar o tempo, é crescer como a árvore que não apressa a sua seiva e resiste serena aos grandes ventos da primavera sem temer que o verão possa não vir. O verão há-de vir, mas só vem para aqueles que sabem esperar tão sossegados como se tivessem diante de si a eternidade.'



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E, a propósito da simplicidade que permite amar a vida como as árvores ou os pássaros a amam, deixem que aqui coloque um vídeo muito bonito.

Manoel de Barros :: Auto-retrato falado




Vídeo do CINE POVERO

  • Manoel de Barros (1916-2014) - “Autorretrato falado” in «O Livro das Ignorãças», 1993
Voz de Manoel de Barros em «Manoel de Barros», Audio-Livro, Ed. Cidade da Luz (Coleção Poesia Falada), São Paulo, 2001
  • Música: Ryuichi Sakamoto, “António” in Rodrigo Leão, «Cinema»
  • Mistura de clips filmados pelo Cine Povero no Parque Nacional Plitvice Jezera (Croácia) com outros retirados da internet.
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A música lá em cima é Elegie in C minor, Op. 24 é de Fauré, interpretada por Jacqueline du Pré no violoncelo e por Gerald Moore no, piano

As imagens que escolhi e que mostram o mar, foram pintadas por Ivan Konstantinovich Aivazovsky (1817 – 1900) que pintou mais de 6.000 quadros, metade dos quais relativos ao mar ou a navios.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo dia de domingo.

E viva a vida.
(Sem mais)

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segunda-feira, junho 29, 2015

Saudades para Alberto Vaz da Silva - diz José Tolentino de Mendonça e digo eu, também. Houve certos seres através dos quais Deus nos amou. Talvez seja isso. Talvez todo o mistério comece por aí.






Há uns quantos anos, resolvi fazer um curso de grafologia. Já aqui falei disso algumas vezes e, inclusivamente, já fiz análise grafológica a uns dois ou três leitores que me enviaram textos manuscritos. Quando agora alguém escreve à mão ao pé de mim até, sem querer, corro o risco de passar por mal educada, dou por mim só a deitar o olho para o que escreveram, não pelo que está escrito mas, sim, pela forma da escrita em si. Não sei porquê mas tenho constatado que, de facto, a forma como uma pessoa escreve revela a sua natureza e o seu estado de espírito.

Por todos os motivos, guardo do tempo em que fiz esse curso as melhores recordações. Nesses dias, às terças-feiras, salvo erro, saía do trabalho um bocado mais cedo, deixava o carro no parque do Chiado e depois ia para o Centro Nacional de Cultura. Tentava sempre chegar um pouco antes para poder dar uma volta por aquelas ruas que tanto amo, em especial ao fim da tarde. Depois havia o lugar onde decorriam as aulas, aquele edifício tão bonito, aquele soalho, aquelas luzes, todo aquele ambiente. Mas, sobretudo, o professor, o querido e especial Dr. Alberto Vaz da Silva. Aquelas aulas, dadas ao lusco fusco, eram momentos extraordinários. Culto, amoroso, de uma delicadeza extrema, todo ele memórias, referências, gestos de afecto - ouvi-lo e vê-lo era um privilégio. Eu assistia maravilhada, tudo aquilo era bem mais do que eu esperava.



Hoje, ao ler a crónica de José Tolentino de Mendonça falando dele, senti a emoção de ter tido a sorte de ter conhecido, ao longo de meses, aquela pessoa tão especial.

Transcrevo alguns excertos:

(...) não é estranho que [Alberto Vaz Silva), sendo licenciado em Direito, ele se tenha tornado um poliédrico e colossal humanista; que tendo exercido advocacia, por mais de trinta anos, ele se tenha sentido renascer no encontro com Rosaline Crepy, sua iniciadora no saber da grafologia, e a partir daí mudado de vida; que tenha viajado pelo hemisfério sul (e por um sem-número de hemisférios interiores) para ver grupos de constelações, como outros viajam pelo interior de bibliotecas ou de árduos e fascinantes problemas matemáticos. 

Ele vislumbrou uma nova relação com o real, feita não já de oposições e distâncias, como se a vida não fosse um mistério único, mas sublinhando corajosamente os traços de união, os hífens inesperados, as continuidades. E assim nos mostra que não há pequeno ou grande, não há cósmico nem quotidiano, não há interno ou exterior: por todo o lado e em todas as coisas está, pelo contrário, latente a mesma espantosa proposta que a vida em si mesma é.

(...) O contributo dele é aproximar na mesma visão, numa nova sintaxe, aquilo que se avista de galáxias diferentes. O que o apaixona é o que ainda não existe ou o que começa a emergir sem que a maioria se dê conta.


(...) Para homens como Alberto Vaz da Silva, a italiana Cristina Campo reserva um nome: imperdoáveis. Isto é, aqueles que possuem e definem um estilo, os habitados por uma força profunda, por um carácter próprio, por uma sabedoria irremovível, aqueles que desenham com as suas vidas um mapa de tal forma original que se torna necessário à viagem dos outros. 

Há uma frase de Saint-Martin, que Alberto Vaz da Silva recorda muitas vezes: "Houve certos seres através dos quais Deus nos amou". 

Talvez seja isso. Talvez todo o mistério comece por aí.




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As pinturas são de António Palolo

Horowitz interpreta Schubert - Impromptu in G flat major D899 No.3

A referida crónica de José Tolentino de Mendonça veio publicada na revista E do Expresso deste sábado, dia 27 de Junho de 2015.


Para quem queira conhecer melhor Alberto Vaz da Silva, aqui fica o link para a entrevista que concedeu a Anabela Mota Ribeiro em 2012, entrevista essa que é referida na crónica de José Tolentino de Mendonça.

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E, se quiserem saber das ameixas, orégãos e outras coisas in heaven, aceitem o meu convite e desçam, por favor, até ao post já a seguir.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma fantástica semana a começar já por esta segunda-feira. 
Que a vossa vida vire para melhor. 

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terça-feira, abril 14, 2015

Que a tua mão esquerda saiba o que faz a direita. O silêncio que fica. Tinha uma história para vos contar... Coisas várias, que talvez não tenham interesse para ninguém...


No post abaixo mostro um vídeo sobre a situação desoladora de muitos trabalhadores precários japoneses, uns desgraçados, explorados até à medula, que têm que viver de forma ultrajante (talvez seja este o objectivo de Passos Coelho quando diz que, em Portugal, ainda é necessário reduzir mais os custos do trabalho).

Ainda mais abaixo tenho um outro vídeo interessante, onde, de uma forma abrangente, um jovem mostra a sua visão do que a espécie humana está a fazer a si própria e ao planeta. Interessante.

Mas isso é a seguir. Aqui, agora, a conversa até nem é assim tão outra. A palavra aos outros.






1.


(…) mais frequentemente  do que imaginamos, nos deixamos tomar pela pura selvajaria, como indivíduos e como sociedades. A descida à barbárie persiste como alguma coisa que não aprendemos a controlar. Onde buscar, porém, nessas horas, a sabedoria? A sugestão que a escritora aponta vale bem que a tomemos a sério. Escreve ela:’ Contra tais instintos primitivos e poderosíssimos temos apenas isto, a capacidade de nos examinarmos de outros ângulos e de outros pontos de vista’. Isto é, temos a possibilidade de sair do isolacionismo do que sentimos ou espontaneamente decretamos, aceitando o confronto com olhares e afirmações que adensem (e, não raro, reconfigurem) a nossa precipitada perspectiva inicial. Como se a porção de conhecimento e verdade que o outro possui fosse o remédio para resgatar-nos do equívoco das nossas estreitas visões. 

Ora, é aqui que o texto de Doris Lessing se assemelha a um murro no estômago. Porque, segundo ela, as gerações futuras espantar-se-ão connosco precisamente por termos alcançado um nível incrível de conhecimento (em tantos âmbitos humanos e científicos, por exemplo, nós sabemos mais do que todos os que nos precederam) e isso não nos ter tornado melhores pessoas. 

Somos a sociedade da informação, fizemos do mundo uma aldeia onde tudo comunica, potenciamos ao máximo a actualidade e as técnicas para a sua difusão, mas permanecemos, em tantos aspectos, cegos e inflexíveis. Para recorrer a uma imagem de Lessing, 'a mão esquerda ainda não sabe - nem quer saber - aquilo que faz a nossa direita'.





2.


Sabe, ao longo da vida tenho feito umas coisas de que acho que as pessoas gostam... Escrevi uns livros, ensinei muita gente, ajudei alguns a começarem na profissão.... Mas nada disso vai ficar agarrado a mim. Isso são ideias, conceitos, malabarismos racionais que procurei que fossem sempre consistentes, mas não têm pele...'

Pele? Fiz um ar genuinamente espantado. Juro que não foi aquela técnica estafada dos terapeutas de repetir a última palavra do doente. 'Sim, pele. O que eu gostaria de deixar cá as minhas memórias dos meus abraços, das minhas mãos, do meu cheiro, do tom da minha voz, das minhas gargalhadas... Vou-lhe confessar uma coisa: estou-me nas tintas para que me citem em trabalhos científicos, tenho a perfeita noção de que desapareço intelectualmente em pouco tempo, mas sofro a pensar que as pessoas de quem gosto muito - e já lhe disse quem são - percam a memória da minha pele. (...)  toda a vida achei que o silêncio tem cor, cheiro, temperatura, gosto, e, por isso, o que eu gostava mesmo era de ser o silêncio que fica'.




3.


Tenho andado com um poema na cabeça, mas a cabeça anda a rebentar de nada, tão falida que se encontra, que não o tenho conseguido resgatar para as folhas de nenhum caderno. Se uma história, se um poema, me pudesse salvar, se houvesse alguma verdade que me pudesse redimir (redimir de quê?), talvez me esforçasse mais, talvez juntasse as poucas forças que me restam, neste tempo de falência total, e talvez o tirasse de dentro de mim. Talvez ficasse um pouco aliviado; mas neste tempo que vivemos duvido daqueles que dizem que só a poesia nos salva, duvido de mim.  

Se uma história nos pudesse salvar, escreveria uma daquelas histórias felizes, porque todas as histórias são felizes se soubermos onde as acabar; escreveria uma história que acabasse no momento em que ficássemos juntos para sempre. Porém, a vida não se compadece com as histórias que vamos reescrevendo dentro de nós, construindo a nossa maior ficção - talvez a única - para darmos sentido àquilo que não tem sentido nenhum, e segue o seu caminho, imparável. E eu vou a caminho do terceiro dia sem conseguir dormir.




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  • O primeiro texto é um excerto de 'Que a tua mão esquerda saiba o que faz a direita' de José Tolentino Mendonça da série 'Que coisa são as nuvens' do Expresso do sábado 11.abril.2015


  • O segundo faz parte de 'O silêncio que fica' de José Gameiro da série 'Diário de um Psiquiatra' do mesmo Expresso


  • O terceiro é um excerto de 'Tinha uma história para vos contar... Coisas várias, que talvez não tenham interesse para ninguém... Mas, enfim, isto é apenas um blog - apenas um diário público...' do André no blogue Ainda que os amantes se percam...

  • A música é de Gabriel Fauré - Après un Reve, Cello and Piano


  • O último vídeo tem Benedict Cumberbatch a ler um poema de Shakespeare 'The Seven Ages of Man'

  • As imagens mostram minerais fotografados por Lina D. e obtive-as através do Bored Panda.

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Relembro: Abaixo há dois posts contendo vídeos muito interessantes.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa terça-feira.

E que todos, a cada momento, saibamos valorizar o que a vida tem de bom (mesmo que seja pouco) e não o troquemos por coisa nenhuma.

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quarta-feira, janeiro 21, 2015

Porque o meu pai já está em casa, porque 'o humor é a liberdade', porque a vida é uma coisa extraordinária, e porque mil outras coisas: Light up your face with gladness, Hide every trace of sadness. Although a tear may be ever so near That's the time you must keep on trying. Smile, what's the use of crying. You'll find that life is still worthwhile - If you just smile.


Aos poucos talvez as coisas voltem ao normal - se é que antes eram normais. 

Quando fui vê-lo ao hospital, logo no sábado a seguir ao ano novo, ainda antes de ser operado, naqueles dias em que lhe retiraram o anticoagulante para o sangue espessar e diminuir o risco de hemorragia durante a cirurgia, estava choroso. Dizia 'estou em xeque com isto...'. A minha mãe questionou, 'Em xeque? Mas estás em xeque porquê?'. Ele olhou para nós com aquele seu olhar desfocado, 'Pois, não é em xeque'. E esforçou-se por encontrar a palavra, balbuciou, depois calou-se, não a achava.  A minha mãe perguntou, 'Chateado?' Ele confirmou, 'Pois, estou chateado com isto' e nós dissemos que era natural que estivesse chateado. Depois virou-se para mim e disse 'Tinha a minha vida lá em casa, fazíamos as nossas coisas e agora isto'. E eu disse que ia voltar a ser o que era, que era só o tempo de ser operado e que haveria de voltar. Mas ele, choroso, que não queria ser operado. E virou-se para a minha mãe, 'morrem todos'. A minha mãe repreendeu-o, 'mas morrem todos, quem?'. Ele disse o nome de um e disse que tinha sido operado e que, passado algum tempo, tinha morrido e, depois calou-se, pensou, e quando se lembrou, disse 'O Salvador também'. A minha mãe corrigiu. Que o primeiro ainda viveu muito tempo e morreu de outra coisa e que o Salvador morreu logo, caíu no jardim e bateu com a cabeça. Ele não disse nada, talvez tenha ficado mais animado.

Depois foi operado. Na manhã em que ia ser operado, às sete e picos da manhã tocou o telemóvel do meu marido. Fiquei petrificada. Àquela hora, alguém a ligar, não podiam ser boas notícias. O meu marido não chegou a tempo e o número era daqueles que não atendem quando se liga na volta, geralmente são cartões de centrais telefónicas. Fiquei com o coração a bater descompassado, pavor de que algo tivesse acontecido. Mas não voltaram a ligar.

Depois a operação correu bem, uma placa, uns parafusos, o colo do fémur aparafusado. Um grande alívio. o risco não era a cirurgia em si mas o estado debilitado dele.

Nessa noite, às dez e tal, novamente o  telemóvel. Mais um sobressalto. Mais uma vez não se foi a tempo, mais umas vez o coração disparado.

Na manhã seguinte, à mesma hora, a mesma coisa. O meu marido foi veloz. Era da Central de Alarmes. O meu filho pôs um alarme em casa e das duas vezes de manhã não se tinha lembrado de o desligar e à noite ligou-o e depois foi lá abaixo sem o desligar e aquilo disparou e accionou um alerta na central. Como a seguir eles não atenderam o telemóvel, ligaram para o terceiro número, o do meu marido. Menos mal. O meu único medo era que fosse do hospital. 

Depois as complicações, várias. Cada dia uma coisa. Uma pessoa já tinha medo de saber como é que o ia encontrar. A seguir à operação, e outros dias, quando estava pior das várias complicações, a minha mãe não tinha coragem de ligar, ligava eu. Assim, quando lá se chegasse, já não havia surpresas. Por vezes não atendiam logo do hospital e logo a minha mãe me ligava, assustada, 'Não dizias nada, já estava preocupada, aconteceu alguma coisa?'

Outras vezes, estava todo baralhado. Onde é que estou? Trouxeste os sapatos para eu me poder ir embora? Mas as operações agora não são coisa de um dia? Vá, dá-me lá o casaco para nos irmos embora. Como é que me descobriram aqui?

Talvez fosse da anestesia, talvez do estado geral. Depois passava-lhe, voltava ao normal. Ao normal depois do AVC, quero eu dizer.

Um dia que eu não estava lá, perguntou à minha mãe, Tu tens uma filha? A minha mãe disse, Nós temos uma filha, nós. Ele ficou a olhar, Ah, e como é que se chama a tua filha? A minha mãe corrigiu outra vez, Minha filha não, a nossa filha. Diz lá tu como se chama a nossa filha. Pensou e disse o nome da minha mãe. A minha mãe disse, Então esse não é o meu nome? E depois disse-lhe o meu nome e perguntou Então não é? E ele disse, Ah pois é.

No domingo estava no cadeirão, ainda a soro (pois os níveis de potássio tinham baixado), e cheio de almofadas pois mal se aguentava direito, olhos muito abertos, desfocados, meio despenteado, olheiras enormes, agitado. Que já não se aguentava sentado, que não havia direito, que mais valia acabar com aquilo tudo. Estava numa impaciência, que nos fossemos embora, e já se zangava comigo e com a minha mãe, que queria ir para a cama, que os enfermeiros ainda se esqueciam dele ali. Eu e a minha mãe comentámos uma com a outra que ainda teria hospital para mais uma semana, tal o estado em que ainda estava.

Estávamos enganadas. Esta segunda, estive numa reunião toda a manhã. Perto da hora de almoço, enviei um sms à minha mãe a dizer que ainda não tinha ligado porque estava numa reunião. Respondeu-me por sms que o meu pai tinha tido alta. Respondi, Não acredito! mas, de seguida, saí logo da sala e fui ligar-lhe. Estava enervada, que lhe tinham ligado do hospital, que o iam mandar para casa, que estava a arranjar a cama, a preparar as coisas. Fiquei estupefacta. Disse-lhe que ia ver o que se passava. telefonei para lá. As enfermeiras estavam também admiradas, que o médico tinha lá chegado e dado alta a vários doentes e que ela também não estava à espera, que costumam preparar a alta e falar com a família mas que não tinha dado tempo. Disse-lhe que não aceitava que estivessem a tratar o meu pai dessa forma. Ela respondeu que o mundo ideal é um e o mundo real é outro e que cada vez mais é assim. Com muita dificuldade lá consegui falar com o médico.

Explicou a situação, que ele estava estável, que podia ir para casa, que se não fossem todas as complicações já teria tido alta há mais tempo, e lá me disse quais os tratamentos e consultas seguintes. Respondi-lhe que o meu pai não ia sair nesse dia porque queria que as enfermeiras falassem com a minha mãe para lhe explicarem tudo como deve ser, porque queria que as coisas não fossem precipitadas daquela forma. O médico disse que compreendia. 

Depois a enfermeira ligou-me a pedir desculpa e a dizer que, com a pressa nem tinha reparado mas que, para além de tudo, não estando o meu pai referenciado como carente do ponto de vista económico, teria que ser a família a fretar a ambulância para ele sair de lá.

Assim se fez.

Já está em casa. Esta quarta-feira vai lá a enfermeira do centro de Saúde para lhe dar uma injecção, para fazer o penso. Deve ir também uma fisioterapeuta (particular) para ver qual o programa recomendável, a ver se em casa consegue fazer alguns exercícios. Era bom que conseguisse voltar a dar uns passinhos dentro de casa. Tenho esperança. Já não é a primeira vez que está acamado, quase sem se conseguir mexer e depois, com muita fisioterapia, lá consegue dar os seus passinhos. Mas agora, para além das dificuldades todas, deve ter medo pois foi assim, a ir da sala para o quarto, que lhe escorregou a mão em que se apoiava e caíu, partindo a perna.

Supostamente deverá ir, dentro de pouco tempo, quando houver vaga, para uma clínica de reabilitação, para fazer recuperação como deve ser. O recomendável são 3 meses de internamento mas ele não deve querer ir e a minha mãe diz que, se ele não quiser, não o vai forçar. E eu também não forçarei.

Como de costume a minha mãe, depois da angústia natural de quando as coisas acontecem, volta à sua boa onda habitual. Já nem teme muito o que por aí vem pois há seis anos que está habituada a ser cuidadora a tempo inteiro. 

Pelo meio, depois de uma das visitas ao hospital, já a trouxemos a ver a casa do meu filho, já andei a passear com ela à beira mar, já lá teve os netos a lanchar e continua a fazer a manta de crochet para a cama de um dos bisnetos, nem sei bem para qual. Tentámos que não lhe custasse tanto o internamento do meu pai e que, ao menos, aproveitasse para passear um bocadinho, coisa que, com o meu pai em casa, nunca pode fazer.

Por tudo isto, pela preocupação, por algum cansaço, pela alteração na rotina, por ter tido menos tempo para estar com os mais pequeninos, por tudo, tenho andado menos inspirada. 

E agora não é que esteja muito mais descansada. Não estou. Por exemplo, não sei como vai ser esta noite e isso preocupa-me. No hospital, se ele chamava, se estava inquieto, estavam lá os enfermeiros. Lá em casa, se necessário, só terá a minha mãe. Queria que ela arranjasse apoio a tempo inteiro mas não quer, diz que já lhe basta esta situação quanto mais ainda andar a tropeçar numa outra mulher a viver lá dentro de casa, que era o que lhe faltava. Percebo-a e não posso nem quero forçar o que quer que seja. Mas, enfim, tudo se há-de ir resolvendo. 

Afinal, a vida continua. 




If you smile through your pain and sorrow
Smile and maybe tomorrow
You'll see the sun come shining through
For you.


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O mais fácil de satirizar em nós é sempre o que nos torna surdos à realidade, prisioneiros da ficção de nós mesmos; é a nossa comédia de enganos, com os seus tiques e trejeitos, as suas atoardas que se pretendem o idioma da verdade; é o nosso caminho ostentado sem qualquer preocupação de contacto com os outros, que rapidamente se pontilha de automatismo e preconceito. Reconhecer o ridículo é a forma mais nobre e ágil de sair dele, mas essa não é uma decisão nem espontânea, nem indolor. O riso não é uma consolação, nem uma terapia fácil de seguir para ninguém. Exige uma grandeza interior que se conquista milímetro a milímetro, à maneira do alpinista que galga uma encosta árdua.

Um dos textos mais belos sobre isto mesmo é uma nota autobiográfica assinada pelo escritor Dinis Machado em 'Reduto quase Final'. Evoco-a com a devida vénia. 'Uma das primeiras grandes revelações da minha infância, ao surpreender as coisas, foi verificar que me interrogava, invariavelmente, assim: qual é o lado mais cómico disto? Os desfiles militares, as cerimónias religiosas, os cumprimentos obsequiosos e constrangedores, os adereços excessivos da autoridade, as exigências rígidas da hierarquia, os compromissos artificiosos. E eu: qual é o lado mais cómico disto? Daí a fazer esta pergunta interior em qualquer situação dramática, foi um passo. A doença, a brutalidade, a estupidez, a intolerância, a maldade pura, a alucinação despótica - até o leito do sofrimento, o leito da morte. E eu: qual o lado mais cómico disto? (...) Quando uma vez caí, a patinar no passeio com botas cardadas, e parti o dente da frente, fiz a pergunta calada e sacramental, enquanto as pessoal olhavam para mim: - Qual é o lado mais cómico disto?




(...) Creio que os cómicos (...) me compreendiam melhor que ninguém. Habitavam o coração do desastre com a desenvoltura e a paciência evangélica dos grandes missionários da naturalidade.


Extracto de 'O humor é a liberdade' de José Tolentino Mendonça em 'Que coisa são as nuvens' no Expresso


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  • As primeiras fotografias são da autoria de Jeffrey Vanhoutte, foram feitas no âmbito de uma campanha publicitária dinamarquesa e a bailarina é  Noi Pakon. Escolhi-as porque mostram aquilo que sinto nestas situações, vontade de soltar de cima de mim o peso da angústia, vontade de deixar de sentir o peso do medo, vontade de ser capaz de encarar tudo com maior leveza.
  • A fotografia das crianças é da autoria da mãe, a fotógrafa russa Elena Shumilova
  • O segundo grupo de fotografias faz parte de uma série intitulada People Reading Poorly-Chosen Books In Public que pode ser vista aqui e coloquei-as no meio deste post porque nada como o humor para enfrentar os momentos menos animados da nossa vida. Rir para mim é um poderoso antídoto para as agruras da vida, sempre foi e tomara que sempre assim seja.
  • O Smile é de Charlie Chaplin na interpretação de Nat King Cole (e, foi-me lembrado pela Leitora Rosa Pinto que, em boa hora, me deixou a tradução da letra da canção num comentário mais abaixo).
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Hoje vinha com ideia de falar dos muito pobres cada vez mais pobres e dos muito ricos cada vez mais ricos e do Paulo Portas a gabar-se do estado da economia depois de as notícias divulgarem que a já de si anémica economia continua a abrandar. Mas comecei a escrever sobre o meu pai, alonguei-me e, aqui chegada, já não me apetece pôr-me agora a falar de tão desagradáveis coisas. Por isso, hoje fico-me por aqui.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa quarta-feira.
E, por favor, não se esqueçam:
Smile though your heart is aching
Smile even though it's breaking.
When there are clouds in the sky
you'll get by.


domingo, janeiro 04, 2015

Beleza, Moda e Decoração - alguns tópicos relativos às tendências para 2015. E marsala, a cor do ano. E a dança, sempre. E a alegria? A alegria é trendy? José Tolentino Mendonça parece achar que sim (ah, e também acha que alegria não é coisa de gente burrinha - ufffff...!)


No post abaixo já contei uma história relativa à necessidade que algumas mulheres sentem de gastar muito dinheiro consigo próprias e, para ilustrar, mostrei uma das mulheres a seguir em 2015, Sienna Miller, em duas fotografias, uma que a mostra glamourosa e outra em que aparece sem maquilhagem, dificilmente reconhecível.

Mas isso é a seguir.

Aqui, agora, o Um Jeito Manso arma-se em blogue trendy e mostra algumas das tendências para 2015 a que acha piada. 


1. Na Beleza, em especial nos Cabelos


Cabelos comprimidos ou intermédios apanhados atrás de forma 'solta', ou fazendo uma trança e prendendo-a num carrapito ou simplesmente enrolar e prender com ganchos que podem ser de cores distintas e ficar à vista

Cabelos compridos apanhados de forma 'artesanal' prendendo ganchinhos de feitios distintos ou usando uma fita entrelaçada

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2. Na Moda



Irreverência, criatividade, estar-se nas tintas para os risinhos alheios - seja com um chapéu como não lembra ao careca (seja por ser grande, seja por ser de um feitio incomum), blusas com pormenores que são, só por si, todo um figurino, saias do além (ou por serem grandes ou por serem curtas ou de um feitio inesperado). Mas tudo com muito estilo. Apesar da aparente loucura, deve haver uma coerência intrínseca. E tudo deve ser adaptado à estatura, à formosura, à idade. Uma pessoa baixa e anafada não suportará nada disto mas, nesse caso, as peças podem ser igualmente irreverentes mas favorecer a figura. E uma pessoa de idade pode igualmente arrojar e ficar elegante. Bem, não precisa de arrojar tanto como a Paula Bobone (que ainda no outro dia a vi e parecia um desenho animado) - e também não estou a dizer que ela é 'de idade'.


Riscas coloridas - a usar sem medo, escolhendo um ou dois adereços a condizer na cor, seja nos óculos, ou nos sapatos, ou na carteira ou mesmo apenas no bâton
O resto dos adereços deve ser neutro para que o conjunto não fique a parecer uma tenda de circo

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3. Na Decoração



Pintar ou colar nas paredes palavras inspiradoras, citações, provocações.
Pode pintar-se directamente, podem comprar-se letras e colar - o que se quiser.
A usar sem medo mas com alguma contenção, sentido estético e alguma lógica



Encher as paredes dos recantos que se querem vivos com quadros, quadrinhos, espelhos, espelhinhos, fotografias, relógios, o que se quiser - e pode ser quase de alto a baixo. Uma vez mais deve ser usado com conta, peso e medida, ou seja, não é pejar as paredes de uma ponta a outra de toda a espécie de tralha. Pelo contrário, devem criar-se espaços distintos com identidade própria.
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4. Todos os anos é escolhida uma cor. 

A cor de 2015 é Marsala.



MARSALA, PANTONE 18-1438

Marsala enriches our mind, body and soul, exuding confidence and stability. Marsala is a subtly seductive shade, one that draws us in to its enbracing warmth.

This hearty, yet stylish tone is universally appealing and translates easily to fashion, beauty, industrial design, home furnishings and interiors.

[Leatrice Eiseman - Executive Director, Pantone Color Institute®]







Marsala na decoração e os bordeaux, lilazes, cinzas, azuis, violetas, alfazemas com que se combina muito bem


Marsala na natureza especialmente nos frutos do bosque e as várias cores com que se combina às mil maravilhas
(e repare-se nos tons de verniz das unhas)


Marsala na moda - a profundidade quente do vinho (tinto e encorpado)

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E, para quem pense que isto por aqui é só frou-frou, fantasia e espuma, aqui ficam dois digestivos que provam que nada disso: isto por aqui é mesmo o que calha.

5. Na Dança


Alvin Ailey American Dance Theater: Chroma pelo coreógrafo Wayne McGregor




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6. A Alegria


A tradição ocidental não deixa margens para dúvidas na ligação que faz entre sabedoria e pessimismo. Mais facilmente o taciturno passa por sábio do que o homem alegre. E um espírito torturado e reticente arranca maior adesão do que todos os que se esforçam por manter activa a alegria. 

Há, de facto, um erro comum que leva a considerar a jovialidade como característica espontânea de carácter, que nada deve à maturação. Contudo, o que realmente experimentamos é o avesso disso, já que o pessimismo é, não poucas vezes, a resposta mais fácil à pressão dos tempo. 

(...) A alegria não se reduz a uma forma de bem-estar ou a um conforto emocional, embora se possa traduzir também dessa maneira. A alegria é, fundamentalmente, uma expressão profunda do ser: em bondade, em verdade, em beleza. 


(...) A alegria, se quisermos, é uma grafia do espírito que nos abeira do milagre e que se traduz tanto pela quietude como pelo riso, tanto pelo silêncio como pelo canto, tanto pela presença a si mesmo como pelo entusiasmo partilhado.


[Palavras de José Tolentino Mendonça na crónica 'A ALEGRIA TAMBÉM SE APRENDE' que faz parte da sua rubrica semanal 'que coisa são as nuvens' na Revista do Expresso]




Petunias by Georgia O'Keeffe 

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo domingo!

E viva a alegria de viver, que a vida é efémera, frágil, e um milagre que nos é dado presenciar (e, mesmo nos momentos maus, há que tentar ver para além disso, agarrando-nos ao que é bom e nos pode trazer felicidade. Ajudamo-nos mais e ajudamos mais os outros se conseguirmos manter o optimismo e a alegria - e, podem crer, sei do que falo)

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