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domingo, julho 17, 2022

Um encontro de cães introvertidos
(e um cãobeludo muito mal comportado)

 

Creio que já toda a gente, alguma vez na vida, experimentou a incómoda sensação de chegar a um lugar onde não se vê ninguém conhecido e onde parece que toda a gente está na mesma situação. Estou a lembrar-me, por exemplo, de um convite que recebi para um pequeno-almoço para discutir um tema de interesse supostamente emergente. Foi no Carlton que, se não estou em erro, é agora o Pestana Palace ali à Ajuda. Iria estar presente um guru da matéria. Sou muito avessa a estas coisas. Não tenho pachorra. Acho que se dizem muitas banalidades. E há pessoas que as dizem pensando que estão a dizer coisas de jeito o que se torna cansativo e desconfortável. Mas naquele caso, já não me lembro bem porquê, talvez por ter pensado que talvez se aproveitasse alguma coisa, acabei por aceitar. Quando estava a ir, a pessoa que tanto tinha insistido para eu ir, ligou-me para pedir muitas desculpas mas, por um qualquer imprevisto, ia chegar mais tarde.

Portanto, cheguei lá, não conhecia ninguém, era um grupo para aí de dez pessoas, talvez nem tanto. Todos a olharem disfarçadamente uns para outros, alguns a tentarem disfarçar a atrapalhação olhando para o telemóvel. O guru falava em inglês pelo que, por cortesia, as poucas palavras que se ouviam eram em inglês. Até que entrámos para a salinha onde o encontro se ia dar foi uma coisa meio constrangedora. 

Detesto situações assim. Detesto meter conversa com quem não me interessa para falar de assuntos que também não me interessam.

Claro que há o oposto que é chegar a um lugar em que se conhece meio mundo, em que toda a gente fala com toda a gente, um fervilhar de cumprimentos e abraços e tudo meio fugidio pois há sempre alguém a chegar e a cumprimentar e a interromper qualquer esboço de conversa. Os grandes encontros do Grupo são assim: uma festa de superficialidade. Pelo meio reencontram-se pessoas que a gente tem mesmo gosto em rever e com quem gostaria de pôr a conversa em dia mas também há pouca ocasião para isso.

Pior ainda, quando numa situação destas aparece um chato que resolve pôr-se a querer tratar ali de assuntos que não são para ali chamados, assuntos que são uma maçada, que requerem atenção. Deslocados ali, portanto. Mas os chatos acham sempre que tudo é importante e não se calam.

Mas o tema hoje tem a ver justamente com um encontro de seres introvertidos. Todos a evitarem contacto visual, todos a ver se passam despercebidos, todos a ver se podem ir para casa, sossegados da vida, ninguém a querer interagir.


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E hoje fico-me por aqui mesmo. O dia foi uma maravilha, felizmente já sem aqueles calores excessivos, até com uma amena aragem. Dia de churrascada, e oh que bela churrascada com o meu filho em tronco nu e com um avental preto a preceito aos comandos da operação. Como bom caranguejo que é, gosta de cozinhar para os outros. Carnes variadas que, em especial a maltinha miúda, devorou com voracidade. Dia de festa, cantoria, brincadeira, a família toda reunida, as crianças (algumas já francamente com o pé na adolescência) felizes da vida, amigas que dá gosto vê-los. O mais velho aproxima-se a passos largos dos catorze, o mais novo tem cinco. O tempo passa e é uma felicidade ver como crescem, como afirmam a sua personalidade, e como se mantêm tão amigos.


Quem se portou mal -- e foi posto de castigo -- foi o urso cabeludo que, fofo e meiguinho como é, quando lhe queremos tirar alguma coisa vira uma fera. 

Rosnou e tentou mesmo atacar ao querer tirar-lhe uns óculos de sol do menino mais novo. É possessivo até dizer chega e comigo, com a minha filha e com a minha mãe a querermos tirar-lhe aquilo, a cercá-lo, e comigo a zangar-me e a aproximar-me demais, a coisa ficou preta. Dentinhos à vista, rosnar e mesmo saltar para ver se me afastava. Não me mordeu mas assustou-me. O meu marido, quando viu, correu, agarrou-o pela coleira e levou-o à força para casa onde foi posto de castigo, ficando fechado num quarto. Bicho danado. Nunca a nossa meiga boxer fez alguma coisa que se parecesse. 

O menino mais crescido falou numa coisa que ouviu para casos assim, uma coleira com comando que emite um som ou vibra para que passem a associar o receio disso a algum comportamento impróprio. Mas, ao pesquisar, vi que pode ser contraproducente. Pode assustar-se e ficar ainda mais agressivo. 

Temos que ver o que fazer. Ou aceitamos não nos metermos com ele mesmo que o vejamos a fazer o que não deve ou temos que descobrir maneira de lidar com a situação. 

Aceito conselhos.


Enfim. 

Com isto, pouco tive que fazer mas a verdade é que sinto que estou a precisar de ir descansar. Acresce que estou com um joelho a dar de si. Não sei se é de alguns sacos mais pesados com que carreguei, se é de muita reunião e muitas horas sentada, se é de alguma falta de descanso, se é de ter feito ontem uma caminhada grandinha quando ele já estava a querer dar sinal. Tenho esperança que, com uma noite bem dormida, a coisa vá ao sítio. Portanto, inté.

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Os passarocos são colagens de papel pintado da autoria de Sarah Suplina

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Desejo-vos um bom dia de domingo
Saúde. Alegria. Paz.

segunda-feira, dezembro 04, 2017

J’ai l’honneur de ne pas te demander






Não me peças, não. Nem me perguntes. Sou um fruto estranho. Acredita. Tenho uma boca que sabe a fruta macia, a dióspiros carnudos e doces, mas também a sorrisos cuja insolência disfarço. Sou insolente, acredita. Nem sabes quanto. Uma vergonha de insolência. 

E, olha, a minha pele é branca e uns dias cheira a violetas e a cedro, outros a deslumbrantes magnólias, mas também a terra molhada, a segredos nacarados. Nem imaginas. A minha pele tão secreta, um perfume tão indecente. Nem imaginas.

Nem queiras saber. Não me peças, pois. 

Não peças a minha mão. A minha mão é pequenina. É a mão de uma menina. A menina anda de balouço, asas de anjinho, de anjinho de procissão, e com as suas mãos pequeninas agarra as cordas. Balouça, balouça, balouça. Peço-te, 'balouça-me, balouça-me'. E subo e subo e subo.

Na garupa do cavalo eu iria. Crinas ao vento, estrelas na mão. Iria, iria, sim. Mas não me peças. Não me peças que vá na tua garupa. E nada me perguntes.

Sou um fruto estranho.

Ofereces-me estrelas e, dentro das estrelas, mundos puros e silenciosos onde os pássaros cantam músicas que nunca ninguém ouviu, acordes que soam como ondas longínquas vindas de intangíveis infinitos. E eu, estranho fruto, sedutora caprichosa, não aceito as estrelas que tens para me dar.


Ofereces-me, então, amoras. Dizes: 'Amoras para ti, para me amares'. Ousadia a tua. Muita ousadia. Bem te aviso. Bem te aviso. Sou perigosa. 'Afasta-te de mim', digo-te, 'sou fruto estranho como a noite de todos os feitiços'.

Penso: vais pagar tanta ousadia, vais experimentar o meu feitiço, vais, vais pagar.

Olho-te, então, desafio-te: 'Esmaga-as. Esmaga-as com a tua língua. Aquece-as com o calor da tua boca. Depois, com elas, pinta os meus lábios. Deixa-os bem tingidos, cor de sangue. Depois lambe-os, lambe o fruto esmagado a saber à tua e à minha saliva.'

Hesitas. Tens medo. Sou fruto estranho, sim. Não sabes mas alimento-me de bagas, de flores, deito-me na terra, na curva dos troncos, procuro a companhia dos bichos, falo uma língua que mais ninguém entende senão eles, os bichos. Nas longas noites de mistério, os deuses escutam os cúmplices sussurros que da terra se levantam, e pasmam com as palavras que se elevam por entre os troncos azuis das árvores nuas.


Olhas-me, não sabes como chegar até mim: 'És um fruto estranho, mulher' e eu confirmo: 'Nada me peças, homem, que eu sou um fruto estranho; vê como nascem folhas de mim, folhas espessas, e flores hão-de nascer, flores carnais, flores inconfessáveis. Espreita os fósforos que ardem no fundo do meu olhar, olha as cores exóticas das minhas asas, olha as transparências coloridas dos cristais que se depõem na minha cabeça, nas minhas patas. Sou fruto estranho'

Olhas-me. Sou um fruto estranho, amor meu. Voo por entre a fantasia e o sonho, construo mundos azuis, florestas elegantes, filamentos dourados, desenho luas que afago com as minhas mãos pequeninas, mãos de flor inventada. Tenho coração de bicho, olhos de amante, e digo palavras vindas de outros mundos.


Deitas-te a meus pés, puxas-me, queres que me deite, queres devorar-me para que o meu corpo se funda com o teu. Sinto-o. Sinto-te. 

Mas, no último instante, recolhes-te e, para meu supremo desgosto, desistes. E ouço a tua voz a murmurar: 'J’ai l’honneur de ne pas te demander'.
Fazes mal, ah tão mal. Ah... que me despedaças. Ah... que tanto te quero, tanto, tanto, tanto. Como vai agora desistir de mim? Ah...! Bicho pequeno e infame, fraco, cobarde. Bicho desprezível, potro amansado, insignificante escaravelho. Ah... que te odeio tanto. Como vais agora desistir de mim? Porque não lutas, porque não te arrastas implorando a minha mão, implorando um instante da minha atenção? Não sabes que me destróis com a tua derrota? Luta, luta, luta por mim. Luta. Luta, que quero render-me. Não percebes isso?
Mas não te digo nada. 
Sou um fruto estranho, já o disse, e orgulhoso. Tão desgraçadamente orgulhoso.

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As colagens surrealistas são da autoria de Gaëlle Cueff. O título deste post é, justamente, o nome da primeira das obras que aqui mostro.

Nina Simone interpreta 'Strange Fruit'

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Descendo, poderão ver uma lua só minha.

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