Música, por favor
Banda sonora de Braveheart
Ana estava de novo numa encruzilhada. A imprevista visita do seu amigo veio agitar as suas calmas águas. Além disso, do lado de lá do telefone, todos os dias lhe pediam que voltasse ou, pelo menos, que desse autorização para ser visitada. A curiosidade do lado de lá estava a dar lugar à impaciência, à incompreensão.
Não é de um momento para o outro que se vira costas a uma vida preenchida e feliz. Tinha querido afastar-se para pensar em paz, sem pressões, sem chantagens emocionais, tinha também resolvido dedicar-se a coisas simples, a coisas terrenas e palpáveis farta que andava de coisas complexas e, tantas vezes, aparentemente intangíveis.
E, no entanto, aquilo que deveria ser não mais que um hiato, vinha progressivamente a conquistar espaço na vida de Ana.
Era a expansão das vendas, o aumento do emprego na vila que atraía gente de fora para arranjar trabalho, era o aumento de investimento (inclusivamente, tinham pedido a Ana para dar opinião sobre a construção de um hotel e Ana estava tentada a propor sociedade pois sentia que havia, do outro lado, também vontade disso), era o sucesso escolar e o envolvimento empenhado da escola, era o ambiente receptivo das pessoas com quem lidava, e era a amizade com Tomás, o carpinteiro - tudo a motivava e prendia a esta vila, a esta nova vida.
A carpintaria tinha-se expandido desde que tinham formado a empresa de arranjo de interiores. Tomás tinha agora alguns aprendizes e até tinha convidado um velho marceneiro para ajudar a enquadrar os jovens inexperientes. Trabalhava bastante e como vivia sozinho e amava o seu trabalho, ficava sempre até tarde na carpintaria. A forma como ele passava a mão pela madeira até a sentir macia, a forma como desbastava, afagava, polia a madeira deixava Ana maravilhada. Não se cansava de o observar, com encantamento e respeito. Nas suas mãos a madeira era um corpo moldável, um corpo que não oferecia resistência.
Habituado durante anos ao silêncio, o carpinteiro ao princípio tinha estranhado as invasões de Ana mas, vendo que ela respeitava os seus silêncios e gostava de ouvir as suas deambulações pelos caminhos secretos das palavras, começou a habituar-se e já se inquietava se ela se atrasasse.
Ana sabia que essa amizade era comentada na vila mas isso não a incomodava nem um pouco. Tomás era livre e ela sempre se tinha sentido, também, uma mulher livre. E, se o não era oficialmente, isso não coarctava os seus movimentos. Claro que numa cidade grande os movimentos de uma mulher quase passam despercebidos, enquanto num meio pequeno tudo se sabe. Mas o facto de se saber o que quer que fosse, não incomodava Ana. Era a dona exclusiva do seu destino e fazia questão de o demonstrar. Além disso, sempre tinha achado que só é atacado quem mostra medo.
Desde que estava na vila ainda não tinha tido férias. E, assim, um dia pediu ao dono da oficina se poderia ter três dias, precisava de descansar. O dono riu-se, 'claro que sim, ora essa, nem precisava de pedir'.
E, portanto, ao fim do dia, Ana perguntou a Tomás se queria ir mostrar-lhe a sua terra natal. Tomás riu, 'que ideia...', irem os dois? Ana disse que, 'claro, os dois, a menos que queira levar mais alguém....' Tomás sorriu. Depois lembrou que não tinha carro e que há anos que não conduzia. Ana disse que isso, obviamente, que não era problema.
E assim, numa manhã quente, lá foram. Ana ia toda animada, parecia uma adolescente. Tomás, sempre mais sério, ia inquieto. Será que aquela mulher percebia que o efeito que produzia nele? Será que percebia que cada vez lhe custava mais passar sem a sua presença?
Parecia que não.
Ana conduzia e, a seu lado, Tomás ia calado. Ana colocou o rádio na Antena 2. Depois perguntou-lhe se ele se tinha lembrado de trazer um livro para lhe ler durante a viagem. Tomás tirou um livro da mochila. Disse: 'Para o sítio que a vou levar a ver, tem que ter os olhos em bom estado, tem que conseguir ver tudo muito bem. E, ao ver, talvez o coração se lhe agite. Por isso o coração também tem que estar muito bom. Por isso, vou ler-lhe conselhos médicos - mas não uns quaisquer. Escute com atenção.'
E leu:
Os olhos são órgãos brilhantes, redondos e radiosos, cobertos por sete túnicas e três humores. Os olhos são as janelas da alma, para se verem através deles, como por uma varanda, as cores e as figuras. Faz-lhes bem (...) olhar para as montanhas e a verdura.
O seguinte faz mal aos olhos. Choro, fome, jejum, (...), toda a embriaguez e excesso. Sono demasiado depois das refeições e vigílias imoderadas. Canto em demasia e coito frequente.
O coração é um órgão côncavo, cavernoso em baixo, amplo em cima, e é o termo de todas as operações da alma racional (...). As operações do espírito começam no cérebro e recebem o seu complemento no coração.
Eis o que faz bem ao coração. Canto aprazível e alegria moderada. (...) E todo o cheiro aprazível que há nos pomares e prados, na estação da primavera, faz bem aos melancólicos e cardíacos.
Coisas que fazem mal ao coração. A inchação, tristeza, preocupações e qualquer causa que provoca a síncope. Excesso de estudo e muita meditação, coito frequente e tudo o que fizer mal ao baço faz mal ao coração. (...) E o que quer que faça a alma entristecer-se, porque o coração é o princípio da vida e o termo da morte.
Ana ria-se. E depois brincou: 'Há uma coisa que faz mal quer aos olhos, quer ao coração...'. Tomás riu-se também: 'Não acredite em tudo o que ouve e, de qualquer maneira, a ciência evoluíu muito desde que este tipo escreveu isto'. Ana concluíu: 'Seja como for, como vamos ficar em quartos separados, não corremos riscos...'. Tomás não se ficou: 'Não vejo o que é que uma coisa tem a ver com outra e, além disso, dois quartos com esta crise...?'. Ana virou a cara, espantada: 'Não lhe conhecia essa veia malandreca, Tomás...'.
Depois Ana pediu-lhe de novo que ele lhe falasse de si, que contasse a sua história. Tomás disse que o faria no dia seguinte e apenas se Ana fizesse o mesmo. Mas, entretanto, animados com a conversa, nem tinham dado pelos quilómetros a passar e estavam a chegar ao destino. Pararam e saíram do carro.
Ana, então, ficou sem palavras. Era uma beleza quase excessiva.
S. Leonardo da Galafura |
Tomás passou o braço sobre os ombros de Ana e leu as palavras de Miguel Torga:
'O Doiro sublimado. O prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso de natureza. Socalcos que são passadas de homens titânicos a subir as encostas, volumes, cores e modulações que nenhum escultor, pintor ou músico podem traduzir, horizontes dilatados para além dos limiares plausíveis da visão. Um universo virginal, como se tivesse acabado de nascer e já eterno pela harmonia, pela serenidade, pelo silêncio que nem o rio se atreve a quebrar, ora a sumir-se furtivo por detrás dos montes, ora pasmado lá no fundo a reflectir o seu próprio assombro. Um poema geológico. A beleza absoluta.'
E era assombro o que Ana sentia, as lágrimas quase a saírem do coração para lhe toldarem o olhar.
S. Leonardo da Galafura por Miguel Torga |
Ana tinha chegado, pois, às terras detrás dos montes, às terras mágicas, imaginadas pelos poetas, desenhadas linha a linha pela inocência mais genuína dos homens de coração puro como Tomás.
Ana estava deslumbrada. Ao ver esta terra pelos olhos de Tomás descobria o mundo virginal de Miguel Torga. Uma beleza imaterial, longínqua e, no entanto, ali, envolvendo-a, uma beleza absoluta, uma imensidão de verde e azul. Um espaço limpo, de imensa pureza.
O Douro Vinhateiro, Trás os Montes, espaço de paz, de imensidão, de beleza e silêncio |
Tomás tinha os olhos brilhantes e, através deles, via Ana também emocionada. Que força misteriosa vinha daquela terra que se desdobrava ali, a seus pés, em montes e montes e outros montes...!
Quando o sol já se punha e os montes quase se douravam, um grande pássaro saíu dos montes para voar, para reinar, silencioso e sublime, sobre o Douro que se tinha posto prateado |
Tomás puxou a mão de Ana, 'Olhe. Não são só as gaivotas que voam sobre os rios... Olhe este grande pássaro, repare nas grandes e fortes asas'. 'Que beleza, que beleza, meus Deus...', disse Ana num fio de voz. 'Que lindo que tudo isto é, Tomás, que lindo... '
Depois foram para o hotel, cada um para o seu quarto. Mas, passado um bocado, Ana foi bater-lhe à porta: 'Empresta-me aquele livro que vinha a ler, o dos cuidados médicos?'. Tomás apontou para a varanda, 'está ali, estava a lê-lo'.
'A caneta que escreve e a que prescreve - doença e medicina na Literatura Portuguesa', organização de Clara Crabbé Rocha --- na varanda do quarto do hotel |
Ana foi buscá-lo e disse, sorrindo com ar malicioso: 'Então, sendo assim, vou ler que é para ver se amanhã tenho os olhos e o coração em bom estado...'.
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O trecho em itálico pertence ao livro acima referido e é da autoria de Pedro Hispano, c. 1210-1277.
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E, por hoje, é isto. Tal como refiro na resposta aos comentários de ontem, li-os, claro que li!, com atenção e carinho mas, porque estou de férias e com um programa apertado e porque, como de costume passa das 2 da manhã e tenho que apagar a luz (... não, eu não estou num quarto sozinha...), não poderei responder individualmente, como gosto, a cada um dos comentários. As minhas desculpas.
E tenham, meus Caros, uma esplêndida sexta feira... porque eu, bem, eu não me posso queixar, não é? ... Por aqui ando, atrás da Ana e do Tomás, a segurar a vela e a servir de narradora o que, dado o local que eles escolheram, me deixa encantada.
Finalmente, aos meus Leitores que me fizeram ter esta enorme vontade de vir (re)descobrir esta terra de uma beleza indescritível, o meu muito, muito, sincero agradecimento.