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domingo, janeiro 01, 2023

Está feito. O 2023 já cá canta.

 


E, para já, é isto. Já estou de volta a casa e a roda do tempo avançou mais um passo. Já estamos em 2023. 

A passagem foi boa. Comeu-se, bebeu-se, houve música e dançou-se, bateram-se tampas, houve abraços e beijinhos. E largou-se a pele do ano velho -- que afugentámos o melhor que pudemos -- e abriram-se as portas para que o ano novo entrasse e se sentisse bem acolhido.

Tirando isso o que tenho para dizer é que podemos não saber ou não conseguir fazer grande coisa mas se, pelo menos, não estragarmos ou não nos desviarmos por maus caminhos já não será mau. Seja lá o que isto quiser dizer.

E bora lá. Que o 2023 seja bondoso, não nos pregue más partidas, que nos traga esperança, capacidade de acreditar, vontade de querer. E saúde. E alegria. E todas essas coisas boas.

E não vou ficar aqui a repetir-me até porque estou a dormir em pé. E daqui a nada tenho que estar a saltar da cama para me ir atirar aos tachos.

Por isso, está dito. E feito. Aqui já chegámos. Agora é ir avançando até chegarmos ao próximo. E depois ao próximo. E ao próximo. E por aí fora. Vida longa e feliz!

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Desejo-vos um dia (e todo o ano!) bom

Saúde. Boas vibes. Paz. 

Paz. Paz, Paz. Paz. Paz (da boa, paz em liberdade).

quarta-feira, novembro 02, 2022

Cogumelos in heaven

 



Tudo coberto de musgo. Veludo macio, verde resplandecente. Caminhos, terra, pedras, muros. Só a caruma lhe escapa.

O céu limpo e, de manhã, um sol tímido mas afável. Tinha uma blusa de malhinha, de manga curta, que despi. Passeei com um top de alcinhas e soube-me bem. Um sol quentinho, ao de leve, suave carícia.

Há muitos cheiros no ar e todos bons, cheiros limpos, lavados: eucalipto, pinheiro, cedro, alecrim, terra húmida. 

Há vários rebentos de pinheiro. Deveria arrancá-los, os pinheiros não se querem demasiado próximos uns dos outros. Mas não consigo. Gosto de ver a vida a brotar da terra.

Antes não havia aqui nenhum. Foi o meu pai que, ainda lá para trás, no século passado -- ainda os miúdos a darem os primeiros passos na sua adolescência, ainda a nossa meiga cãzinha uma menina louca com os cavalos que passavam na estrada --, quando ainda lamentava a nossa má escolha, uma terra imprópria para plantação, só pedras e mato rasteiro, dizia ele e era verdade, trouxe alguns, poucos, ainda pequeninos, pouco mais que um palmo, de um viveiro junto à serra e ao mar. Eu tinha-lhe pedido pinheiros mansos, sempre adorei pinheiros mansos, e ele trouxe uns três ou quatro, mas trouxe uns que dizia que cresciam muito e muito rapidamente, pinheiros de Flandres. Nós comprámos outros, pinheiros radiata, nos viveiros do Ministério da Agricultura, à altura creio que na Azambuja. Os pinheiros, apesar da terra pedregosa, cresceram, cresceram. Já nasceram outros, por si, e mais continuam a despontar. A natureza tem vontade própria, tem sabedoria. 

O pequeno bosque com que eu tanto sonhava já aqui está e eu toda a vida adorarei aqui estar. Esta é a terra que me escolheu para que eu me sinta mais eu.

Agora, claro, há cogumelos por todo o lado. De todos os tamanhos, cores e feitios. Ínfimos, pontinhos, ou enormes, irreais. 

Não sei como saber (de certeza absoluta) que são comestíveis ou venenosos. Mesmo que saiba, acho que teria medo de arriscar. Mas, ao mesmo tempo, imagino a bela caldeirada que poderia fazer com eles.

Dantes andava à caça deles apenas para fotografá-los. Agora é um sufoco. Tento fotografá-los mas muito rapidamente atiramo-nos a eles para os jogar para longe. Alguns que aqui estão já os apanhei para fotografar depois de arrancados, atirados para fora do alcance do nosso amiguinho cabeludo.


Tenho a sensação que não somos os únicos a andar à caça deles. Lá estão aquelas grandes e fundas pegadas. Serão javalis a tentar desenterrar cogumelos? Trufas? Não sei. Desde há uns anos, as pegadas aparecem sempre no mesmo sítio. A terra aparece lavrada e vê-se que são bichos grandes e pesados.

Não sei o que se passa na nossa ausência. Um dia ainda instalaremos câmaras para descobrir que animais fazem daquele lugar a sua casa e que, quando estamos, discretamente se recolhem.

De tarde esfriou. Estava no sofá, reclinada, a ler. Arrefeci. Tive que inaugurar a época das mantinhas. Foi o meu marido que foi ao roupeiro buscar uma.

O urso felpudo já não devia lembrar-se, fez uma festa, saltou, tentou arrancá-la de mim, quis puxá-la para si. Ficou todo contente e surpreendido. Tive que me zangar, dizer que não era para ele. Se eu tivesse deixado, tê-la-ia levado consigo para tentar reduzi-la a trapinhos.

Penso que em breve estará tempo para a salamandra e para a lareira e, então, o aconchego será ainda maior e os perfumes serão ainda melhores, haverá aquele perfume doce do fogo a lamber a lenha de cedro e da azinheira. As cinzas serão depois devolvidas à terra e enriquecerão, com a memória das árvores de onde provieram, as raízes de outras árvores. Assim é também a vida, um eterno e efémero devir.


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Desejo-vos um dia bom
Saúde. Ânimo. Paz.

segunda-feira, setembro 21, 2020

Uma mulher poderosa encanta-me no dobrar de mais um dia em que tentei (mas não consegui) esfolar um rabo que está pendente e que não se compadece com as minhas beautiful flowers

 




Tenho cada vez mais para mim que se todos nós, colectivamente, fizermos um esforço para não perdermos tempo com tretas como as lágrimas do populista-achegado ou com outros pseudo-eventos ou com outras pseudo-pessoas-importantes mais depressa essa gentinha perderia protagonismo e melhor saúde mental todos teríamos. 

Cheguei aqui, agora, e todas as notícias internas me parecem treta. Pura treta. Não estou nem aí.

Mas, reconheço, também pode ser porque dias como o de hoje me deixam a deitar por fora.


Apesar de não ser nada de novo ou interessante, conto porque é que o meu dia me foi tão sobrecarregado: as idas à outra casa (eu para separar roupas para dar, outras para o lixo, outras para trazer, o meu marido com selecção de papeladas, projectos de arquitectura transactos, dossiers e dossiers de trabalhos em versões anteriores à definitiva, coisas assim) esgotam-me. Horas. Sacos e sacos e sacos. O meu marido também exausto. Tudo o que é trabalho pesado sobra para ele: carrega com sacalhões pesadíssimos, uns para os contentores da rua, outros para o carro. 

Mas, enfim, pelo menos já trouxe os meus casacos de malha, os meus blasers, as minhas calças. É que a prioridade tinham sido louças, coisas de cozinha, livros, bibelots, candeeiros, móveis essenciais. De roupa tinha trazido sobretudo a de verão, que era o que fazia falta. Mas o outono já aí está e eu já andava sem saber bem o que vestir. Mesmo aqui em casa, quando anoitece e esfria, eu olhava para o guarda-roupa sem saber bem a que deitar mão. E esta semana tenho compromissos presenciais que me exigem que as minhas toilettes anteriores saiam à cena. 

E depois há alguns fatos completos de que, embora já me estejam à justa, não quero desistir assim tão facilmente. Aquele elegantésimo e superlativo fato Armani que foi presente do meu marido, que conseguiu acertar com o meu tamanho e que, ousando à grande, sem que eu tivesse minimamente suspeitado de tal ousadia, conseguiu que me assentasse como uma luva -- esse tive que trazer, claro. Ou aqueloutro que comprei em Madrid depois de ter percorrido os costureiros da Serrano e de me ter posto nas mãos de uma bicha fantastique que adivinhava todos os meus gostos -- que conjunto mais lindo, aquele - quando fui a um casamento de sonho em Seteais, esse também teve que vir. Peças assim, intemporais. Não gosto de coisas tchanan...!, gaiteiras, espaventosas, datadas. Prefiro peças que não passam de moda. Ou seja, dessas, apesar de já me caberem à justa, não ia desfazer-me. E quem sabe, um dia destes, alguma das meninas da família não precisa de alguma destas fatiotas para uma ocasião especial?

No fim, quando já não aguentávamos mais -- cansados, desidratados, saturados -- e enquanto o meu marido andava abaixo e acima, ainda varri, passei com a esfregona, garanti que as casas de banho estavam impecáveis, que as luzes estavam apagadas. Fechei a porta e vim. Aquela casa, que era a minha casa de sonho até há pouco tempo, agora já pouco me diz. Quando viro as costas e fecho a porta, o que fica para trás é passado. Apesar de gostar de visitar as minhas memórias, a verdade é que parece que sou toda feita de futuro.

Como já era tarde, encomendámos uma pizza e, a caminho da casa nova, fomos buscá-la, a pizzaria já a fechar. 

Depois foi aquela frustração: o hall e o corredor da casa nova uma vez mais atafulhados de sacos, mais coisas para arrumar, eu já sem saber como distribuir as coisas. Na cozinha, algumas peças sem caberem onde faria mais sentido e, claro, a impaciência a ir ganhando terreno. Cansaço e fome à mistura é do pior que há.

Enquanto a pizza foi apanhar um aperto no forno, nós fomos tomar banho. E, com isto tudo, acabámos a almoçar às cinco da tarde. 

Não vejo a hora de esvaziar os armários todos, de trazer tudo e deixar a outra casa finalmente vazia para poder usufruir de tempos livres sem ter a necessidade de os anular, sempre a tratar de tudo o que há sempre para tratar. Até porque, quando for vendida, não pode lá ficar nada. O meu filho que, quando saíu de casa, não tece paciência para levar nada nem escolher o que era de guardar ou deitar fora, continua sem paciência para se atirar a isso. Dossiers da faculdade, livros, coisas de computador, sei lá o que para lá ainda há. Hoje, ao abrir gavetas do quarto da minha filha, dei com roupa interior dela. Não a deitou fora e eu não gosto de deitar fora coisas que não são minhas. Hoje aproveitei algumas peças. O resto, que estava ainda em bom estado, pus num saco também para dar. 

Na verdade a casa parece quase vazia mas, na verdade também, ainda com coisas que não acabam.

Bem.

Ah, e fiz o jantar em dose XL para dar para o almoço também de amanhã. 

E, finalmente, quando o sol estava de fugida, ainda fui para a espreguiçadeira ler mais um pouco. Uma bênção. Uma meia hora de descanso e bem-aventurança. 

Depois fiz telefonemas enquanto passeava para trás e para a frente no jardim, fotografando as flores que me trazem apaixonada. Tão lindas, tão perfeitas. Divindades silenciosas.

Mas tudo o que é bom não pode ser em grandes doses pelo que, de seguida, tive que entrar em casa para passar a ferro e sei lá mais o quê.

Portanto, como é óbvio, com este programa de festas, não quero cá saber de minudências e banalidades. E, assim sendo, para aqui tenho estado a ouvir música. Música poderosa, intérpretes poderosos. Em especial uma mulher poderosa. Poderosa em todos os sentidos. A destemida Yuja Wang mostra como se atira a tudo com uma energia que contagia. Mulheres poderosas e, ainda por elegantes e femininas, são uma graça. E um perigo.


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E nada mais a declarar. 

Quando voltei ao jardim já a noite vinha descendo. Lá em cima, entre o piar discreto das aves nocturnas, uma nesga de lua. Fotografei-a. Ainda não tinha reparado na lua desde que aqui vivo. Gostei. É uma boa companhia, boa como todas as companhias que são cheias de subtilezas.


Desejo-vos uma boa semana, com muitos momentos bons, com boas notícias. 
E que a saúde e a boa sorte vos acompanhem.

sábado, fevereiro 01, 2020

Uma sinfonia incompleta e ineficiente





As empresas andam um bocado desnorteadas. Querem ser amigas do ambiente, querem ser sustentáveis, querem ser seguras, querem ser rentáveis, querem ser familiarmente responsáveis, querem ser socialmente responsáveis, querem ser inovadoras, querem ser fiáveis, querem ser atractivas para atrair e reter talentos. E vários etc's. As prioridades atropelam-se e a sua missão e valores têm que ser reinventadas a toda a hora.

Mas, no meio disto, continua a fazer valer-se a ditadura da eficiência. Quando a malta anda assoberbada com mil assuntos, aparece a turma da eficiência a fazer levantamentos a ver onde se pode ser mais eficiente. Leia-se poupar. Leia-se reduzir pessoas. Uma praga. A malta já responde de qualquer maneira para lhes dar a volta e conquistar alguma paz. Mas não largam. E, quando a malta pensa que já os alimentou com muita palha, ei-los que voltam para revisitar os kpi's. Não deslargam.

Wolfgang Lettl: Opus 88 incompleta (2007)

Curiosamente, chego a casa, abro a caixa de correio pessoal e dou com um mail no qual Leitor, a quem desde já agradeço, me faz chegar esta história:
Um administrador de uma empresa recebeu um convite para assistir a um concerto e ouvir a "Sinfonia Incompleta" de Franz Schubert.
Estando impossibilitado de comparecer, deu o convite ao seu colaborador, responsável pela Organização, Sistemas e Métodos.
Na manhã seguinte o administrador perguntou-lhe se tinha gostado do concerto. Ao invés de comentários sobre o que ouvira e vira, recebeu o seguinte relatório:
R. nº 13/04 

De: Organização, Sistemas e Métodos

Para: Administração
Ref: Schubert - Sinfonia Incompleta 
1- Por um período considerável de tempo, os músicos com oboé não tinham nada para fazer. O seu número deveria ser reduzido e o seu trabalho redistribuído pelos restantes membros da orquestra, evitando-se assim estes picos de inactividade;
2- Todos os violinos da primeira secção, doze ao todo, tocavam notas idênticas. Isso parece ser uma duplicação desnecessária de esforços e o número de violinos nessa secção deveria ser drasticamente reduzido. Se for necessário um volume de som alto, isso poderia ser obtido através do uso de um amplificador;
3- Muito esforço foi despendido ao tocarem semitons. Isto parece ser um preciosismo desnecessário e seria recomendável que as notas fossem executadas no tom mais próximo. Se isso fosse feito, poder-se-iam utilizar estagiários em vez de profissionais;
4- Não há utilidade prática em repetir com os metais a mesma passagem já tocada pelas cordas. Se toda esta redundância fosse eliminada, o concerto poderia ser reduzido de duas horas para apenas vinte minutos;
5- Enfim, resumindo as observações dos pontos anteriores, podemos concluir que se o Sr. Schubert tivesse dado um pouco de atenção a estes pontos, talvez tivesse tido tempo para terminar a sua sinfonia.

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Pinturas de Wolfgang Lettl
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sábado, março 09, 2019

A Inteligência Artificial será a pior coisa que alguma vez terá acontecido às mulheres?





Não gosto de me considerar feminista porque tenho a sensação de igualdade entre homens e mulheres de tal forma interiorizada em mim que quase me parece aberrante tomar partido numa disputa sexista. No entanto, já me explicaram mil vezes que ser feminista não é essa guerra fundamentalista entre sexos que os mais tacanhos apregoam mas é, sim, lutar pela justa igualdade de oportunidades, de direitos e de deveres entre homens e mulheres. 

Seja.

A verdade é que prefiro pôr-me ao lado dos homens -- dos civilizados, bem entendido -- e, com eles, lutar pelo progresso de todos. E quem diz dos homens civilizados digo também das mulheres. Das civilizadas. 

Vinha no carro, ao início da noite, quando ouvi uma mulher que estava na manifestação, a ser entrevistada. À pergunta de se havia discriminação no seu trabalho disse que sim, embora uma discriminação subtil. E exemplificou: quando está com outras colegas e chega um colega homem, ele faz piadas sexualizantes e que isso a incomoda. E eu é que fiquei incomodada com um tal argumento porque piadas 'sexualizantes' é coisa que pode até ter graça, que pode ser inócua, é coisa que não define uma discriminação sexual no trabalho. Se ela dissesse que, no seu local de trabalho, quando abre uma vaga para uma chefia, escolhem sempre um homem, mesmo havendo mulheres mais qualificadas aí, sim, ela teria mais do que razão para ficar chateada. Agora pretender que os homens fiquem indiferentes às mulheres e não possam galanteá-las, cortejá-las, tentar fazer uma graça ou um agrado, já me parece mais um comportamento assexuado do que feminista -- e amesquinham as verdadeiras razões de queixa das mulheres.

[Não me refiro, obviamente, a homens ordinários que se comprazem a dizer badalhoquices a mulheres. Aliás, penso que já nem os haverá a agir assim em terreno aberto, muito menos estando em minoria no meio de um grupo de mulheres. Homens assim, machistas, parvalhões, são, regra geral, uns cobardolas.]
Mas isto para dizer que, do que frequentemente se vê, grande parte das mulheres que gostam de se armar em super feministas usam uma argumentação tão rasteirinha que acabam por se menorizar. Não gosto.

Gosto é de ver mulheres a lutarem de igual para igual, a mostrarem a sua força, a sua indómita vontade, a não vergarem, a manterem-se inteiras 'mesmo quando os outros se dividem'.


E é verdade: longo tem sido o caminho das mulheres para aqui chegarem. E, em muitos lugares, longo ainda é o caminho a percorrer. 

O vídeo abaixo é muito interessante e mostra os riscos que podem ainda estar por vir, em tempos que se antevêem pejados de inteligência artificial. Sendo que a grande maioria dos profissionais das áreas das tecnologias da informação é composta por homens, será de temer que construam um mundo misógino, que não incorpore a visão e os interesses femininos?
On International Women's Day, the author Jeanette Winterson reads an extract from her book, 'Courage Calls to Courage Everywhere', in which she describes the threat to women posed by the future dominance of AI, warning society cannot allow it to become a new exclusion zone

Is AI the 'worst thing to ever happen to women?




Um bom sábado a todos.

segunda-feira, setembro 03, 2018

Ottoline




Quarta-feira, 17 de Outubro [de 1917]

Fui a Londres esta tarde ver a exposição de quadros no Heal's. A Ottoline* não estava à vontade; rigorosamente abotoada até acima em veludo azul, chapéu como um guarda-sol, gola de cetim, perolada, pálpebras pintadas e cabelo vermelho-dourado. Escusado será dizer que não vi nada dos quadros. Estava presente o Aldous Huxley -- infinitamente comprido e magro, com um olho branco opaco. Uma bela juventude. Tomámos chá com o Roger. Eu estava bastante consciente da tensão. 

A Ott. lânguida, refugiando-se nos seus grandes ares de senhora, o que é sempre deprimente. Ambos pareciam ter a sua discussão bastante presente. Fui a pé com ela debaixo de chuva até Oxford Street, comprou-me cravos vermelhos, sem cordialidade.


Segunda-feira, 19 de Novembro

(...) É difícil dar a impressão do conjunto, salvo que não foi muito diferente do que imaginara. Gente espalhada numa sala cor de lacre: o Aldous Huxley a brincar com grandes discos redondos de marfim e mármore-verde -- o jogo de damas de Garsington; a Brett de calças; o Philip tremendamente envolto no melhor couro; a Ottoline, como sempre, veludo e pérolas; dois dogues. 

O Lytton semi-reclinado numa vasta cadeira. Bugigangas a mais para uma verdadeira beleza, demasiados perfumes e sedas, e um ar quente que era um bocado pesado. Bandos de pessoas deslocavam-se de sala para sala -- o domingo inteiro. Por momentos, o sentido daquilo parecia esmorecer; e, desta forma, o dia foi evidentemente muito comprido. 

Depois do chá, estive talvez durante uma hora à lareira de lenha com a Ottoline. No conjunto, gostei mais dela do que os seus amigos me tinham preparado para gostar. A vitalidade pareceu-me um crédito a seu favor, e na conversa privada os seus eflúvios dão lugar a algumas irrupções bastante evidentes de perspicácia. (...)


Quinta-feira, 22 de Novembro

Vangloriei-me tanto em Garsington sobre este caderno e o encanto de o encher a partir de uma fonte inesgotável, que tenho vergonha de falhar dias; e, no entanto, como assinalei, a única hipótese que ele tem é aguardar a minha disposição. Por falar nisso, a Ottoline tem um, embora devotado à sua "vida interior", o que me faz reflectir que não tenho uma vida interior. 

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Nota

* Lady Ottoline Morrell (1873 - 1938), casada com Philip Morrell, aristocrata, protectora das artes, anfitriã de artistas e intelectuais na sua casa de Londres e na mansão rural de Garsington. Inspirou personagens de romances, nomeadamente a D. H. Lawrence e Aldous Huxley. Dos vários casos extraconjugais, o mais célebre foi talvez com Bertrand Russel.


[Dorothy Brett, Lytton Strachey, Ottoline Morrell e Bertrand Russell]
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A célebre cena dos figos no filme do livro homónimo Women in Love na qual Eleanor Bron interpreta Hermione Roddice, personagem inspirada por Ottoline.



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O texto e a nota sobre Ottoline são excertos de Os Diários de Virginia Woolf

O excerto do octeto de Schubert está aqui por ser uma das referências de Virginia Woolf ("Cheguei ao Acolian Hall, paguei o meu xelim e ouvi um octeto de Schubert muito longo e muito belo". Nas notas pode ler-se que se trata do que aqui partilho]

Os figos com o seu pingo de mel viviam aqui, in heaven, antes de eu os comer. Sem cerimónias.

segunda-feira, janeiro 15, 2018

Uma infância para esquecer
[Ainda a propósito das recordações de Emma Reyes]





Estou muito impressionada com o livro de Emma Reyes. São memórias de uma tal incompreensão e violência que custam a crer. No entanto, a forma neutra e mesmo, por vezes, irónica que ela usa para descrever aqueles seus anos tão estranhos (que quase parecem impossíveis) tornam a leitura quase viciante.

Interrompi agora a leitura para aqui vir desanuviar antes de me ir deitar. Emma e a irmã estão agora no convento onte viveram em regime de clausura e (parece-me, pelo que li até agora, também de escravatura) durante quinze anos.

E fico a pensar. Emma acabou por levar uma vida normal, feliz, criativa, bem sucedida. De facto, quando se vê uma pessoa 'normal' nunca se sabe que memórias guarda ou que tormentos passados guada dentro de si.

Tenho assistido a situações tão estranhas que não sei como as recordam quem delas teve igual ou melhor conhecimento que eu.


Por exemplo, estou a lembrar-me. Quando me casei vivia numa torre, lá bem no alto. Era um 15º andar com uma vista arrebatadora. Com sol ou tempestade, de manhã ou à noite, a vista era gloriosa. Lá em baixo, as pessoas, de tão pequenindas, perdiam qualquer significância. A paisagem sobrepunha-se a qualquer coisa mais. De um dos lados da nossa porta, vivia um casal simpático com duas filhas pequenas, gémeas. As meninas usavam tranças tal como a mãe e vestiam vestidinhos soltos, de tecido florido, tal como a mãe. O pai era simpático, um biólogo que eu via muitas vezes na televisão. A mulher tocava piano e tinham um piano branco na sala. Quando a mulher e as meninas não estavam em casa, o biólogo levava outras jovens mulheres lá para casa, uma de cada vez. Tinham ar de ser alunas pois ele era também professor universitário.

Uma vez a jovem mulher esqueceu-se ou perdeu a chave e pediu ao meu marido se podia saltar da nossa varanda para a varanda dela, já que tinha a porta que dava para a varanda aberta. O meu marido, cavalheiro, e sobretudo pensando nas duas meninas, saltou ele. Ainda hoje sinto vertigens e medo quando penso nisso.

Do outro lado, morava um outro jovem casal. Era um casal atípico. Não trabalhavam e tinham comportamentos muito estranhos. Uma ou duas por semana apareciam lá em casa duas crianças. Viémos a saber que eram filhos dela. As crianças tinham ar de serem bem tratadas. A casa deles estava praticamente vazia. Tinham um pano escuro pendurado do tecto, à laia de cortina, um colchão no chão, uma mesa e duas cadeiras. Sei disto porque passei horas espreitando lá.

Alguém me disse que era o pai dela que pagava a renda do apartamento e que os sustentava. Eram drogados. Anos mais tarde, soube que o pai tinha uma pequena loja e vivia com um grande desgosto pela vida que a filha levava. 

De vez em quando não sei se esses meus vizinhos se zangavam porque gritavam muito um com o outro, choravam, atiravam coisas. Havia noites em que ela chorava a noite toda. Outras vezes ouviamo-los a correr. Horas a correrem às voltas dentro de casa. Mas o pior era quando lá estavam as crianças e eles saíam deixando as crianças sozinhas. As crianças choravam de dar dó. E eu punha-me debruçada da minha varanda para a casa deles a falar com os miúdos, a tranquilizá-los, tentando distraí-los e sossegá-los. 


Quando penso nisto fico perplexa com a mentalidade ou com a consciência social daquela altura: nunca nos ocorreu chamar a polícia. Eu tinha vinte, vinte e um anos naquela altura mas a minha tenra idade não justifica isso. Creio que era mesmo a falta de conhecimento de que há situações que devem ser denunciadas como crimes.  Eu tinha imensa pena e preocupação por ver a vida infeliz que os meus vizinhos levavam, magros, mal encarados, incapazes de tomar conta deles, quanto mais das crianças, e tinha uma pena infinita das crianças que tanto sofriam com aquele abandono. Mas nunca nos ocorreu chamar a polícia, talvez porque achássemos que isso seria ainda mais assustador e traumatizante para as crianças. Situações tão dolorosas. 

Uma vez, de madrugada, tocaram à nossa campainha. Era ele. Embriagado, drogado. Não sabia da chave, queria saltar da nossa varanda para a dele. Tentámos impedi-lo e o meu marido queria fazer a mesma proeza. Mas eu agarrei-o, não o deixei. Como os miúdos não estavam lá, tentámos demover o meu agitado vizinho, que esperasse que fosse dia, que depois logo chamava os bombeiros. Mas ele estava frenético, trémulo. Não nos ouviu e num ápice, passou pelo nosso quarto, foi para a varanda e empoleirou-se, saltando para a dele. Pensei que ia cair e morrer desfeito no passeio, quinze andares abaixo, mas milagrosamente conseguiu passar. Eu tremia como varas verdes.

Depois, para nossa tranquilidade, saíram de lá. Respirámos de alívio mas eu pensava muito naquelas pobres crianças.


Os anos passaram.

A mulher recuperou-se, creio eu, porque de vez em quando a vejo. Continua a ter um ar triste mas perdeu aquele ar escanzelado e gasto, tem um ar normal. Vi uma vez que tinha as unhas muito roídas e que que fumava muito, e tem um ar que parece ansioso. Nunca deu mostras de me reconhecer. Ninguém deve imaginar o que era a vida dela naqueles tempos. Ao homem via-o, por vezes, drogado, acabado. Não sei se ainda vive, há muitos anos que deixei de vê-lo. Aos miúdos perdi o rasto.

Não sei se mais alguém para além de nós soube do que ali se passava. Eles dois, sempre tão drogados, não sei se percebiam o que faziam ou se guardaram disso alguma memória. Talvez apenas os miúdos, que já não são miúdos mas adultos uns três ou quatro anos mais velhos que os meus filhos, guardem a mágoa do que sofriam naqueles dias e naquelas longas noites em que ficavam entregues aos cuidados da mãe.


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As fotografias são de Steve McCurry

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e
mais abaixo ainda, tenho um passeio muito variado.

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terça-feira, dezembro 12, 2017

Estejam à vontade, troquem-me as voltas que eu gosto




Já o disse, não disse? Na beleza eu gosto de uma pitada de insólito, na perfeição eu gosto de encontrar um grão de imperfeição, na harmonia eu gosto de perceber a fractura possível.
Em mim, eu gosto de sentir a vontade para, quando menos se esperar, ser capaz de me portar mal. 
E em si, Caro Leitor, gostaria de lhe sentir a vontade de que eu, a despropósio, fosse capaz de coisas verdadeiramente escaroladas. Mas, pronto, se não for esse o caso, não faz mal. Como diria a grafómana mais criativa do espaço virtual, gosto de vocês na mesma.
Mas vá. Por exemplo. E estou a falar mesmo a sério. No outro dia tive vontade de arranjar um mé-mé de louça ou de cimento para o colocar no meio do meu petit bois. O meu marido não me deu ouvidos. Mas, vocês escrevam: tenho a certeza que ainda hei-de tratar disso. Será uma coisa tão disparatada que mal vejo a hora de ir a passear com os meus filhos, por entre os cedros e pinheiros, o chão atapetado de caruma, os caminhos ladeados por alecrim e madressilva e, de repente, um ingénuo carneirinho de faz-de-conta ali no meio. Imagino o escândalo!  
Mãe!!!! O que é isto?!?!?! Pai!!! Como é que deixaste?!?!?!
Ainda estão na idade de quererem compreender tudo e, claro, um mé-mé naturalista, de cimento, no meio da natureza mais pura não faz qualquer sentido. É que eles terão que adquirir mais alguma maturidade para perceberem que, no inusitado e inexplicável, residirá a graça da ovelhinha. Mas os pimentinhas de certeza que hão-de adorar não lhes ocorrendo a descodificação da opção. A lógica por vezes não é facilmente desvendável, mas eles ainda têm as mentes suficientemente abertas para aceitar sem racionalizar.


Ah, sim, a propósito. Ainda não vos contei.

Há pouco tempo, o vizinho que, lá mais para baixo, tem vacas e rebanhos contou que arranjou uma burra para ela o ajudar a guardar as ovelhas, protegendo-as das raposas. Isto já vos contei. Na altura fiquei estupefacta: raposas por ali...? Sim, sim. Raposas. Só não sei se ruivas se prateadas. Terei que perguntar. 

Pois bem. Agora mais novidades. Contava ele que os cães, pela noite, ladravam, ladravam. Ele e os restantes habitantes do casal (nome que dão ao aglomerado de casas a que eu chamaria quinta) intrigados com aquilo. Levantavam-se e ouviam como que uma correria. E já não viam nada. Até que descobriram: javalis. Javalis correndo estrada abaixo. Diz ele: vêm da serra, vão beber água ao rio. E diz que, pelas pegadas, comprovam que são bichos grandes. Está espantado, ele. E eu ainda mais. Javalis...? Como é que é possível? Que mais ainda vamos nós descobrir que por lá anda...? O urso pardo, afinal não extinto...? Imagine-se que, um belo dia, me aventuro a espreitar para dentro da gruta e me sai de lá o último exemplar do urso-pardo...


Bem. 

E já no outro dia disse: ali tudo aparece. Já mil vezes o contei: era um terreno pedregoso de mato rasteiro e é agora um bosque frondoso. Passarada que só ouvida. Coelhos. Gatos. Por lá perto (espero que não lá dentro), agora raposas e javalis. E um dia. Escrevam. Um dia, um rio. Um dia veremos uma nascente. Depois um regato, depois o regatinho engrossando, virando um ribeiro a querer fazer-se rio. Depois os peixes. Talvez a seguir cheguem os patos.

Uma vez plantei um chorão. Não se deu, precisa de muita água. Pois talvez um dia, à beira do rio que vai nascer lá, nasça também um belo chorão com as delicadas ramagens mergulhadas nas águas. E depois virão as elegantes garças brancas. 

Nessa altura deverei deixar crescer o meu cabelo até bem abaixo da linha da cintura para, quando andar por lá a passear toda nua, poder minimamente condizer com o luxuriante da paisagem. Claro que levarei atrás de mim, voando, umas vinte de borboletas exóticas mas, ainda assim, acho que precisarei de algo mais para não destoar naquele deslumbrante paraíso. Talvez fique bem o meu marido a tocar uma harpa portátil.  E, se estás a ler isto, baby, não te arrelies até porque uma harpa portátil não vai ser difícil de transportar. Pior será o muito que vais ter que aprender para te fazeres um emérito harpista que atraia ainda mais aves canoras e quiçá, também, trovadores.



E que entrem agora os destoantes virtuosos
-- e, atenção, este vídeo é mesmo para ser visto até ao fim.
OK?



E agora tu, Bobby, põe-nos a cantar: mostra o poder da escala pentatónica na criação do espontâneo coro universal.


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Lá em cima, a interpretar a Sonata para Piano, No 13, D 664. 3rd Movement de Schubert, Radu Lupu.

E aqui em baixo, o fantástico Encore / L'Arpeggiata: Soprano - Nuria Rial; Mezzo-soprano - Giuseppina Bridelli; Male alto - Vincenzo Capezzuto; Countertenor - Jakub Józef Orliński; Ensemble - L'Arpeggiata / Christina Pluhar

E a seguir Bobby McFerrin demonstrates the power of the pentatonic scale, using audience participation, at the event "Notes & Neurons: In Search of the Common Chorus".

As fotografias mostram flores congeladas (em água gelada) e claro está que não têm nada a ver com o texto -- uma coisa na base do mé-mé de faz-de-conta a passear no meio dos cedros, não sei se estão a ver. É como o título... nada a ver.

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E, caso vos apeteça agora um toque de beleza breve, queirem descer um pouco mais.

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Beleza breve


Quando os beaux esprits se encontram, a gente sente que um sopro de felicidade passou por ali.

Nederlands Dans Theater (NDT) | Schubert 



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segunda-feira, agosto 07, 2017

Roupa estendida ao sol, intuição para a felicidade, Putin à pesca, um cão a fazer surf, um urso a fazer ballet e etc.
[Ou seja, um pot-pourri à moda de Um Jeito Manso]





Pintar...? Está bem, está. Passa da meia-noite e só agora é que consegui aqui aterrar depois de um dia de intensa actividade física. Volta e meia, enquanto andava naquela labuta, ocorreu-me que, se todos os dias trabalhasse nem que fosse um quarto ou um quinto disto, já não precisava de me sentir com complexos de culpa por não fazer a ginástica que a doutora escultural me recomendou. 

E o curioso é que dou por mim a pensar que, se passasse os dias em casa, podia distribuir o trabalho que compõe estas empreitadas de forma mais equilibrada, fazendo todos os dias uma parte destas limpezas profundas, de modo a nunca ter que concentrar num único dia tantas horas de trabalho intenso. Mas ao mesmo tempo que penso isto, desengano-me: sei que, um dia que tenha o tempo todo por minha conta, serei incapaz de ter uma rotina de dona de casa disciplinada. Hei-de inventar mil actividades para continuar a ter que ser às quinhentas da noite que consigo escrever no blog e para volta e meia trabalhar cerca de doze horas de seguida, no duro, limpeza de virar a casa do avesso para lhe limpar as entranhas. Detergente perfumado para lavar o chão de cabo a raso e isto depois de tudo varrido, spray de cera nas madeiras depois de todo o pó bem limpo, roupas das gavetas também lavadas, tudo a secar ao sol, tapetes sacudidos, vidros limpos - nada escapa. O meu marido olha para mim, encolhe os ombros, diz que são os meus exageros. Não são. É a minha forma de gerir o tempo de maneira a chegar para tudo.


Além do mais, gosto de fazer limpezas. Gosto mesmo. Amigas minhas que têm uma segunda casa, têm lá empregada. Durante a semana a empregada limpa a casa, abre as janelas. Se têm jardim, têm jardineiro. Nós não. Somos só nós. É assim mesmo. O meu marido esfalfa-se a tentar domar o mato ou a serrar grandes pernadas, a levá-las para o lugar onde pomos o mato (uma amiga minha, uma vez, vendo o grande muro que rodeia essa zona, perguntou se não haverá risco de sair de lá uma fera. Acho que não). Dantes, menino da cidade, o meu marido não sentia lá grande apelo pelo contacto com a natureza. Agora está um verdadeiro camponês. Levanta-se muito cedo para evitar a hora de maior calor. E, ao fim destes anos todos, ainda se espanta comigo. Pergunta-me: se eu tinha engendrado levar a cabo tal programa de festas, porque não madruguei. Claro que não madruguei. Tinha-me deitado às quinhentas e, além disso, disse que lhe doíam as costas, mexeu-se e remexeu-se na cama toda a santa noite, não me deixou dormir como uma pedra que é como gosto de dormir. Levantei-me a horas normais, ouvindo os passarinhos, vendo o sol suave a querer aquecer. E atirei-me logo ao trabalho, sem pestanejar. Claro que almoçámos já depois das três da tarde e, depois de almoço, continuei na jorna, só saindo de lá já perto das oito da noite. Jantámos -- na casa com vista para o rio e já depois de ter ido levar figos à minha mãe (o meu pai já dormia) -- bem depois das dez e tal da noite. E depois disso, ainda muito trabalhinho cá em casa já foi feito. Uma sopeira de alto rendimento.


A ver se esta segunda de manhã o espírito da executiva desce em mim senão chego ao trabalho, pego no balde e na esfregona e é limpeza geral, ficará tudo num brinquinho em que ninguém poderá botar defeito.

Bem.

E isto para dizer que, em dias assim, tenho a cabeça tão longe do mundo corrente que passo pelos jornais online e parece que nada me desperta a atenção, como se o mundo andasse a rodar sobre si próprio, como se, enquanto roda atrás da própria cauda, descrevesse inúteis círculos pelo espaço, nunca saindo do mesmo sítio, como se não fosse capaz de se afastar da órbita em que algum deus o enredou. Ponho-me, então, a percorrer os blogs a ver se alguma palavra ou ideia me mostra haver vida por aí, vida nova, e parece que não surge um rasgo, que uns repetem outros e outros se repetem a si próprios. Até que, inesperadamente, algo diferente, algo que me emociona.
Penso que me deixo encantar com facilidade. Sou muito primária. Esqueço as coisas más, alegro-me com coisas simples. No outro dia, falando com irritação de uma situação complexa e, logo de seguida, mudando de assunto e falando de férias e de livros, um colega dizia que era uma sorte ser-se assim, que parece que nunca nada me faz mossa, que a mulher, por exemplo, empreende nas coisas, anda sempre ansiosa. Pois, será sorte mesmo. Tenho que me esforçar para me manter arreliada com o que, alguma vez, me arreliou a sério pois a tendência natural é para me esquecer. Isto com quem gosto de verdade, claro. Com gente má ou desonesta e com quem não existe empatia ou ligação de qualquer espécie, o que acontece é que viro a página e é como se a pessoa ou o que ela fez nunca tivessem sequer existido. Mas se gosto de alguém, a minha tendência é para esquecer, para querer estar bem, próxima. Hoje li que alguém tinha a intuição da felicidade e fiquei a pensar que talvez isso ambém se me aplique.

Mas, portanto, algumas palavras foram suficientes para sentir aquele puxão para fora do registo de desinteresse geral pelo mundo em que me encontrava.

E logo me deu vontade de dançar, de falar de palavras, de afectos, de cores, de poesia, de pinturas silenciosas, de memórias, de murmúrios, de vislumbres, de navegações, de encantamentos.

Vontade de inventar histórias que contenham, nas entrelinhas, as vogais que, durante o dia, forço à mudez e as toadas que a minha voz não sabe dizer e a pele que o meu corpo recolhe do olhar. Histórias livres e sem sentido, que voem sem deixar rasto, que se desapeguem de mim, que procurem sozinhas o seu rumo, que vão por aí, que se escondam em grutas, que se percam em labirindos, que se isolem em ilhas, que vivam para todo o sempre ou se despenhem no abismo da perdição. Tanto faz.

Mas é tarde, o meu corpo ainda não deu sinal do esforço a que o sujeitei mas temo que amanhã esteja aí para me chamar à razão e, portanto, seguro-me, prendo-me as mãos, exigo-me juízo e tento nos dedos, e ordeno-me que me retire, que vá dar-me descanso.

E, assim sendo, vou -- mas, para tentar que não sintam que vieram aqui em vão, deixo-vos com três fotografias que vi e que achei que marcavam a superficialidade dos tempos actuais. O culto pelas aparências e a vontade de partilhar a sua própria imagem, seja de que forma for, tem, a meu ver, qualquer coisa de destrutivo, como se se estivesse a caminhar para a nulidade absoluta. Mas, enfim, se calhar sou eu que tendo a andar com o passo trocado.

Putin, o super-homem que gosta de exibir o seu físico
Aqui em férias, à pesca -- e, uma vez mais, a exibir a sua corporalidade (digamos assim).
Curiosos os óculos. Parece o zorro.
[A ver se o pato Trump faz agora alguma coisa de parecido]

Casal no Belfast Gay Pride
(sem comentários)

 World Dog Surfing Championships em Linda Mar Beach, California
(Ao que a maluquice já chegou)
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E, para completar o bouquet, uma coisa que não tem nada a ver, um momento de cultura mas uma cultura com o seu quê de insólito. 
Trata-se de dança (dança clássica, digamos assim) e, de novo, vos peço que não deixem de ver.
Uma graça.


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Vi um outro vídeo muito curioso mas aí é que a misturada ia ficar ainda mais tresloucada e, por isso, já não o partilho convosco. Fica para amanhã, se vier minimamente a propósito. Ou, melhor ainda, se vier a despropósito.

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E a si que está agora comigo, lendo as minhas palavras, desejo uma boa semana, a começar já por esta segunda-feira.
Saúde, sorte, alegria -- e ousadia para ir de encontro ao que deseja.

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sexta-feira, julho 07, 2017

Os roubos anunciados a que ninguém ligou, os muitos pequenos poderes que ensarilham a reacção em situações que exigem intervenção transversal, os portugueses e a sua maneirazinha de ser nestas coisas dos planos de contingência




Conheço por dentro o que é trabalhar numa grande organização onde há várias linhas hierárquicas, muitas forças por vezes com objectivos contraditórios, muito poder disseminado pelas bases, por locais geograficamente dispersos, em que uns respeitam sensibilidades, outros se sentem ligados a fidelidades antigas, em que uns temem que outros pensem que eles os querem ultrapassar ou imiscuir-se no seu foro de competências, etc, etc. Conheço.

Ou seja, conheço por dentro o que é, perante uma situação -- que requereria atenção ou uma condução ágil, em tempo oportuno e com rédea curta --, por mil cuidados, mil temores, mil indefinições, mil urgências a sobreporem-se a trabalhos verdadeiramente importantes, assistirmos a nada ser feito, deixando que aconteça o que nunca deveria acontecer.

Claro que nem sempre isso acontece, nem sempre isso acontece com assuntos críticos, nem sempre é irremediável.

Mas pode acontecer que seja. Ou seja, pode acontecer que estejamos perante um desastre anunciado e, para estupefacção geral, o desastre acabar mesmo por acontecer sem que ninguém o tivesse impedido.


Há nos portugueses esta coisa: medo de ferir susceptibilidades, muita cortesia, muito deixar andar a ver se nada acontece, muito não se meterem em maçadas quando, às tantas, tudo vai correr bem, fiarem-se na virgem e não correrem. E outra coisa: não ter planos de contingência. Esperar que corra bem. Não ter a máquina oleada para situações em que a coisa dá para o torto.

Quando trabalho com alemães constato a diferença abissal. Enquanto os portugueses planificam e ala moço que se faz tarde, bora mas é meter mãos à obra e, se houver azar, cá está a malta para desenrascar, os alemães são um desespero: perdem um tempo do catano a planear tudo ao detalhe, planificando também detalhadamente cada linha de fuga, cada contingência. Tudo tem que ficar percebido, aprendido e procedimentado antes de alguém pôr o pé na tábua. As horas e horas e dias e dias que perdem nisto parece aos portugueses pura perda de tempo mas, no entanto, percebe-se, quando alguma coisa corre mal, que a forma como reagir estava ab initio já prevista.

Vem isto a propósito das notícias que ouvi na rádio: que há uma meia dúzia de anos já aconteceu um outro roubo de armamento, que esse processo ainda está em curso, que há (penso que) um ano aconteceu outro, que parece que desconfiaram de um sargento ligado a uma rede internacional de roubo de armamento, que há pouco tempo houve uma denúncia na PGR de que se preparavam novos roubos e que, pelos vistos, ninguém agiu nem avisou quem deveria ter sido avisado -- e isto parece-me tudo do além. 

Brandos costumes. O cúmulo do deixa andar. Na verdade, uma bandalheira.

Metem-se as Forças Armadas, a Polícia Judiciária Militar, a Procuradoria, os Tribunais, os Ministérios -- e, como sempre em que há muitas instituições envolvidas, cada uma cheia de pruridos e fricotes quando se sente beliscada, sempre que há porcaria verifica-se o mesmo: ensarilham-se todos e nada acontece. Um maná para a gandulagem, especialmente para a bandidagem organizada.


É que uma coisa são situações em grupos económicos em que a indefinição ou a sobreposição de poderes ou a forma coisinha de ser gera perda de clientes, sobrecustos, multas ou outros contratempos e outra, bem diferente, são situações a nível de gestão da coisa pública em que o que está em risco é a segurança das pessoas, a saúde ou a qualidade de vida das populações.


Não é mal de agora, este, não é mal deste Governo. Não. É coisa provinciana, mal endémico, doença antiga. É, na verdade, uma coisa muito portuguesa.

E os exemplos estão por todo o lado. Os processos arrastam-se anos e toda a gente aceita, os paóis são deixados ao deus dará e é uma surpresa para todos os responsáveis que aquilo fosse quase bar aberto (e daqui por pouco tempo já ninguém quer saber disso), e há um incêndio e há um monte de gente a mandar bocas e toda a gente a pedir inquéritos e todos se sentem épicos a exprimirem a sua revolta, muito manifesto no Face e muita força de likes -- mas, com vossa licença, tudo junto nada mais é que tusa do mijo. Meia volta e passou.

É que o mal não é da ordem do fogacho. Não. É profundo, antigo.

E, para o atacar, muita mangueirada tem que haver, muita liderança com o prego a fundo, muito profissionalismo, muito sentido de estado, muita consciência nacional. 

Claro que é complicado mexer neste status quo com governos com mandato para quatro anos, suportados por deputados em que a maioria deles não sabe o que anda a fazer, nem sabe nada de coisa nenhuma.

Só um governo muito hábil, muito sabedor e muito determinado será capaz de perceber a reforma profunda que tem que ser feita. Este governo tem mostrado ser competente e eu só espero que, depois deste valente choque anafilático, António Costa venha inspirado e enérgico para pegar o assunto pelos cornos. Mas tem que haver um grande entendimento entre muita gente e com o total patrocínio do Presidente da República pois tem que se mexer, a fundo, em muitas organizações e tem que se estar disposto a abdicar de muitos pequenos e egoístas pequenos poderes, tem que se aceitar trabalhar em equipa, tem de se aprender uma forma profissional de trabalhar.


A não se fazer nada disso, vou ali e já volto. E não vale a pena andarem a chamar comentadores a granel para os balcões televisivos, fazerem comissões de inquérito com deputados armados em pides de trazer por casa, a TSF pôr-se a organizar Fóruns em que abrem os microfones a tudo a que é ignorante ou besta encartada ou a Fátima Campos Ferreira chamar uns para estarem a favor e outros contra com a malta toda a bater palmas. Não passa por aí. É preciso mais. Muito mais. É preciso seriedade.  


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As imagens são pinturas de Wassily Kandinsky

A música é de Schubert: Marcha Militar

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E um dia bom para todos.

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