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terça-feira, março 08, 2016

Há um deus único e secreto em cada gato inconcreto




Nunca tive um gato. A minha mãe contava a história de um gato que se assanhava, todo ele crescia, arqueado, todo se inflava, dzzzzzzz, silvava ele, os olhos medonhos, metendo-lhe medo -- era ela criança. Guardou esse medo até hoje. Se via um gato, desviava-se, cheia de medo, segurando-me a mão, já pronta a proteger-me mas com medo de ter que o fazer. E eu herdei esse seu medo.

A minha avó, mãe dela, tinha um cão, o Matateu, um cão preto bem disposto que tinha pavor de trovoadas. Essa minha avó tinha patos, perus e, em tempos, porcos. Depois deixou-se disso. Primeiro desistiu dos porcos, depois dos perus. Os patos sobreviviam sozinhos. O cão acabou por morrer atropelado. A minha outra avó de animais só teve galinhas e perus, numa capoeira grande que havia ao fundo, no quintal, nas traseiras da casa.

Outros familiares ou amigos meus, gatos também não. Cães, sim, vários tinham cães. Vim também a ter uma cadela, uma boxer dourada, macia, doce como mel de que ainda hoje tenho saudades como não tenho de outra gente que partiu. Mas com gatos nunca se proporcionou ter que conviver.

Mais proximamente, a então namorada do meu filho tinha um gato. O bicho era feroz e traiçoeiro como uma pantera. Cioso, ciumento, possessivo, dissimulava-se e, quando apanhava o meu filho desprotegido, saltava-lhe para cima, implacável. Arranhava-o sem compaixão.  O meu filho, sendo apanhado desprevenido, apanhava grandes sustos. Eu assustava-me só de imaginar.

Lá no campo, de vez em quando aparecem gatos. Por vezes, estou na sala e aparece do lado de fora da porta de vidro um gato que olha fixamente para dentro, indiscreto. Outras vezes, vou a andar silenciosamente pelos caminhos, entre árvores, tentando não espantar pássaros ou coelhos e sinto um arrepio, sinto-me observada. Quase amedrontada, olho e dou com um gato a olhar-me fixamente. Depois, mal vê que o vejo, foge, furtivamente desaparece. Fico estática, meio trémula, como se um ser estranho me tivesse estado a vigiar.

Houve uma altura em que apareceu por lá um gato felpudo, de riscas cor de mel e baunilha. Aparecia frequentemente e ficava a olhar de longe. Talvez pela cor, imaginei que fosse meigo. Tentei cativá-lo, Bschhhhh-bschhhhh-bschhhhh e deixava-lhe lá um prato com leite. Não serviu de nada. Ia quando queria e desaparecia por temporadas. Agora não tem aparecido nenhum.

Onde agora vejo muitos gatos é no Ginjal. Já contei que há uma senhora que, faça sol ou faça chuva ela lá vai, carregada, levando-lhes ração, massa com comida enlatada. Os gatos estão gordos, ronceiros, uma pena. Quando vejo a senhora tenho sempre vontade de lhe dizer que não faça isso, que está a desgraçar os gatos. Mas tenho pena, também me custa desiludi-la.

Mas, apesar de gordos, os gatos conservam aquele olhar inteligente que eu gosto tanto de fotografar. Rondo-os, espreito-os. Por vezes olham-me com displicência, como se lamentassem que eu fizesse tentativas tão inúteis, depois olham noutra direcção, indiferentes, superiores.

Gosto de fotografá-los. Estas fotografias foram feitas lá.

Diz quem tem gatos que são bichos antigos, sábios, que parecem transportar o espírito de seres estranhos, eruditos, habitantes talvez de bibliotecas perdidas no tempo.

Uma colega minha chega sempre tarde a casa. Um dia que chegou cedo, a gata olhou-a com pasmo, e não a largava, intrigada com o que se teria passado.

Um ex-colega meu, pessoa de alguma soberba e forte ímpeto liderante -- a quem vejo agora essencialmente na televisão pois tem agora relevantes funções nacionais -- virava uma torrão de açúcar, todo ele se derretia ao falar do seu gato. Que se enroscava no seu colo ou que se deitava na secretária enquanto ele trabalhava, uma companhia incondicional, uma ternura. Uma vez estávamos a ter um encontro de dirigentes no Algarve e liga-lhe a mulher, em pânico. Contou ele, depois, que, pela aflição dela, pensou que lhe tinha morrido a mãe. (Quando relembra isto, faz um sorriso escarninho: nunca se deu bem com a sogra, uma manipuladora, diz ele). Mas não. Era o gato que tinha fugido. Já não teve parança, um desassossego, sempre a ligar para casa a saber do gato. Nada. Aflito, aflito como se a um filho tivesse sucedido algo de mal. Nem o sol do Algarve lhe soube a férias. Quando regressámos, ao fim de dois dias, ele ia cabisbaixo, parecia de luto. Afinal o gato apareceu pouco depois dele ter chegado a casa. Ainda mais ligado ficou ao animal.

No domingo, enquanto o meu marido conduzia, eu lia em voz alta, de Agustina ainda, em Longos dias têm cem anos:
Tento recordar-me dos momentos em que vi Maria Helena, dos seus gestos, dos seus gatos, dos seus jardins. Havia Lolita, que eu conheci velha e tremendamente sentenciosa, como Deborah, que foi juiz em Israel. Sentava-se debaixo duma palmeira e julgava. Devia ter aquele ar albino e olhos azulados da gata Lolita. A sabedoria também, a aficíon da intriga, as palmas das mãos pintadas com henné, como Lolita as pinta de carmim; e os olhos, com patas de mosca. Agora há outro gato, Bicho, com aquela cara de dragão que faz lembrar um letrado chinês do século XVIII. Se Bicho me dissesse, de repente, a história dos 47 ronins, ou coisa parecida, eu não estranhava. Tem o ar de ter saído duma casa dum Pequim onde se dava importância às mulheres, desde a portadora de água até à tocadora de banjo: porque elas podem ser um dia concubinas, esposas, imperatrizes. Bicho tem ar de ter sido imperatriz noutra incarnação; as garras, cortou-as para tocar piano, como faziam as verdadeiras princesas de Shantung no século XIX. Gosta de levura, acho que isso a droga ligeiramente. Ou é o seu passado opiado que a faz parecer tão concentrada. 'Desperta, desperta, Deborah' - digo-lhe. Ela olha-me severamente, como se estivesse no monte de Efraim, debaixo da sua palmeira. O filósofo Buber dedica aos gatos umas páginas extraordinárias; percebe-se que ele captou o tempo-limite que Teilhard de Chardin chamou o 'passo de reflexão'. O gato está nesse desfiladeiro entre a bestialidade e a consciência; e, às vezes, o seu olhar parece tocar a primeira nota da nossa complexidade, 'Bicho -- digo-lhe --, conheces-me?'. Ela muda o peso do corpo sobre uma e a outra pata dianteiras. É uma maneira de concordar e de me reconhecer.
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Há um deus único e secreto
em cada gato inconcreto
governando um mundo efémero
onde estamos de passagem

Um deus que nos hospeda
nos seus vastos aposentos
de nervos, ausências, pressentimentos,
e de longe nos observa

Somos intrusos, bárbaros amigáveis,
e compassivo o deus
permite que o sirvamos
e a ilusão de que o tocamos


['Os gatos' de Manuel António Pina in 'Como se desenha uma casa']

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E queiram, por favor, descer até aos amores desencontrados entre António Valada, Carlos Costa e Alexandra Ferreira com o Banco de Portugal e a Quinta das Celebridades à mistura.

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