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segunda-feira, junho 06, 2016

Na cama





Por uns momentos lá no quarto nós parecíamos dois estranhos que seriam observados por alguém, e este alguém éramos sempre eu e ela, cabendo aos dois ficar de olho no que eu ia fazendo (...)

(...) e eu ia e vinha com os meus passos calculados, dilatando sempre a espera com mínimos pretextos, mas assim que ela deixou o quarto e foi por uns instantes até o banheiro, tirei rápido a calça e a camisa, e me atirando na cama fiquei aguardando por ela já teso e pronto, fruindo em silêncio o algodão do lençol que me cbria, e logo fechava os olhos pensando nas artimanhas que empregaria (das tantas que eu sabia), e com isso fui repassando sozinho na cabeça as coisas todas que fazíamos, de como ela vibrava com os trejeitos iniciais da minha boca e o brilho que eu forjava nos meus olhos, onde eu fazia aflorar o que existia em mim de mais torpe e sórdido, sabendo que ela arrebatada pelo meu avesso haveria sempre de gritar "é este canalha que eu amo", e repassei na cabeça esse outro lance trivial do nosso jogo, preâmbulo contudo de insuspeitadas tramas posteriores, e tão necessário como fazer avançar de começo um simples peão sobre o tabuleiro, e em que eu, fechando minha mão na sua, arrumava-lhe os dedos, imprindo-lhes coragem, conduzindo-os sob meu comando aos cabelos do meu peito, até que eles, a exemplo dos meus próprios dedos debaixo do lençol, desenvolvessem por si sós uma primorosa atividade clandestina, ou então, em etapa adiantada, depois de criteriosamente vasculhados nossos pêlos, caroços e tantos cheiros, quando os dois de joelhos medíamos o caminho mais prolongado de um único beijo, as nossas mãos em palma se colando, os braços se abrindo num exercício quase cristão, nossos dentes mordendo ao outro a boca como se mordessem a carne macia do coração, e de olhos fechados, largando a imaginação nas curvas desses rodeios, me vi também às voltas com certas práticas, fosse quando eu em transe, e já soberbamente soerguido da sela do seu ventre, atendia precoce a um dos seus (dos meus) caprichos mais insólitos, atirando em jatos súbitos e violentos o visgo leitoso que lhe aderia à pele do rosto e à pele dos seios, ou fosse aquela outra, menos impulsiva e de lenta maturação, o fruto se desenvolvendo num crescendo mudo e paciente de rijas contrações, e em que eu dentro dela, sem nos mexermos, chegávamos com gritos exasperados aos estertores da mais alta exaltação, (...)


(...) e eu ali, de olhos sempre fechados, ainda pensava em muitas outras coisas enquanto ela não vinha, já que a imaginação é muito mais rápida ou o tempo dela diferente, pois trabalha e embaralha simultaneamente coisas díspares e insuspeitadas, quando pressenti seus passos de volta no corredor, e foi só o tempo de eu abrir os olhos pra inspecionar a postura correcta dos meus pés despontando fora do lençol, dando conta como sempre de que os cabelos castanhos, que brotavam no peito e nos dedos mais longos, lhes davam graça e gravidade ao mesmo tempo, mas tratei logo de fechar de novo os olhos, sentindo que ela ia entrar no quarto, e já adivinhando seu vulto ardente ali por perto, e sabendo como começariam as coisas, quero dizer: que ela de mansinho, muito de mansinho, se achegaria primeiro dos meus pés, que ela um dia comparou com dois lírios brancos.



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Do livro foi feito o filme

Um Copo de Cólera (1999)
- realizado por Aluízio Abranches com Alexandre Borges, Júlia Lemmertz 


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O texto em itálico é um excerto do capítulo 'Na cama' do livro Um copo de cólera da autoria de Raduan Nassar, Prémio Camões 2016.

As fotografias que escolhi para ilustrar o texto são da autoria de Jeff Dunas

Lá em cima Brad Mehldau interpreta Secret Love. As fotografias do vídeo pertencem ao filme O Paciente Inglês

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E aceitem, por favor, o meu convite e desçam até ao post abaixo que fala de cartas e no qual, em concreto, se pode ouvir uma carta muito tocante.

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domingo, junho 05, 2016

Feira do Livro de Lisboa, 2016 - breve reportagem fotográfica


Bem, agora que já falei da minha caminhada rente ao rio e que divaguei sobre arte, deuses e gatos, voupartilhar convosco a minha incursão pela Feira do Livro. 

Quando para lá vou, vou debaixo de recomendações e protestos. Que não é para passarmos lá toda a tarde, que, se estiver muito calor, é para abreviar, que, com tanto livro ao longo do ano e tantos e tantos por ler, que não me alargue, etc. E eu tento assimilar as recomendações, parecem-me sensatas.

Vou sem listas, sem nada em mente, apenas esperando descobrir alguma coisa que me interesse. E, quando lá chego, não fico especialmente entusiasmada. Estes são os novos tempos e, desde há muito, os livros foram dessacralizados.

Preferia ter livros, só livros -- e, num local bem definido, então, zonas de lazer, barraquinhas de comes e bebes. Mas não, agora os livros estão em stands, em big expositores, misturados com toda a espécie de diversão, quase perdidos no meio de uma multidão. 

Mas, enfim, livros são livros e a Feira do Livro é a Feira do Livro (La Palice não diria melhor). E, no meio de toda aquela gente, ainda se conseguem descortinar algumas pessoas que notoriamente estão ali mesmo só pelos livros (de qualidade) e constatar isso, parecendo que não, transmite-me algum conforto.




Gosto de fotografar o ambiente dos lugares. Por vezes, parece que preciso de ver as fotografias para confirmar que não retive uma impressão errada. Não andei a fotografar os stands porque isso seria desagradável para quem lá está mas fotografei, um bocado ao acaso, o espaço por onde ia passando. O que aqui vêem é isso: o que eu vi (para além dos livros, em si). Não consigo aqui colocar, para a imagem ser mais vívida, o cheiro a fritos que, por vezes, é incomodativo ou a voz que, em permanência, anuncia onde estão os escritores a darem autógrafos ou outras informações.


Ao contrário do que fiz noutros anos, desta vez não fotografei os escritores. Sempre me fez impressão e, por isso, nunca me dirigi a nenhum para pedir autógrafos ou para lhes dizer umas simpatias.

Acho que há qualquer coisa de desagradável nisto de um escritor se expôr na feira, ali sentado à espera que algum leitor lá vá. Muitos ali estão sozinhos. Faz-me impressão, pronto. Outros, coitados, parecem médicos com os doentes a sentarem-se à sua frente e a dizerem coisecas. Acho que isto os fragiliza. Dá ideia, se nenhum leitor lá for, que ninguém os conhece ou lhes liga. E eu, mesmo que os conheça ou lhes ligue, acho que não tenho nada de jeito para lhes dizer, não quero ser simpática por ser, obrigando o pobre escritor a agradecer-me a simpatia. Não gosto. Se calhar eles gostam ou não se importam. Mas a mim isto sempre me fez impressão.


E depois há outra coisa. Grande parte do aparato que por lá se vê são aqueles best sellers da treta, capas aparatosas, alta promoção, escaparates, prateleiras espampanantes. Passo por esses stands e não páro, são muitos, de seguida, com baracas de queijadas e ginjinha de Óbidos, churros, gelados, esplanadas pelo meio. Às tantas nem sei se estou a passar por alguns com interesse mas o calor, a barafunda, os cheiros e tudo aquilo me maça. E escritores de que nunca ouvi falar.


Passo por mesas onde, conforme anuncia a voz, escritores estão disponíveis para dar autógrafos ou conversarem com os seus leitores, e olho admirada: de onde saíu tanto escritor e tanta escritora?

Abri excepção para fotografar este quarteto aqui em cima apenas para exemplificar esta minha dúvida: terei estado uma temporada em Marte para agora, ao regressar, me dar conta que Lisboa foi invadida por dúzias e dúzias de novos escritores? Quem são estas bem dispostas ladies?

Já no caminho de regresso a casa (a casa dos meus pais, mais concretamente), mais umas fotografias para mostrar a parte de trás da feira.


E, à medida que nos afastávamos, os relvados com gente que, essa sim, curtia a frescura da erva e da sombra. Não estivesse eu já com o tempo contado, que vários compromissos ainda me esperavam, e por ali me teria estabelecido, deitada, à fresca, olhos fechados até que o sono chegasse. É que, palavra, tanta gente, tanto calor e tanto stand, estava mesmo cansada, cheia de sono.


Mais à frente, junto ao lago perto da Estufa Fria, ainda se devia estar melhor, tanta a gente que, por ali, estava pousada.

Há por ali um arbustos floridos que, juntamente com os jacarandás lilases, deixam um perfume maravilhso no ar que se mistura com a sombra, entrando de mãos dadas no nosso olhar, na nossa respiração. Só pode ser saudável. E é muito tranqulizante.


Lisboa tem lugares que são muito bonitos, muito bons para se estar, e este é um deles. Mesmo num dia de multidão e calor, é possível encontrar recantos de sossego, frescor e beleza.

Não deve haver lugar mais privilegiado para fazer uma Feira do Livro do que este. O Parque Eduardo VII é lindo -- pela sua vegetação, pelos seus meandros, pela sua largueza, pela sua vista.

E já dispõe de infraestruturas de apoio, como casas de banho. Achei graça ao que Eduardo Pitta escreveu mas, enfim, acho que, apesar de tudo, há ali algum exagero -- um exagero divertido, de qualquer maneira.


Aquilo de me queixo não tem a ver com o lugar, tem a ver com a mercantilização que tomou conta de forma quase avassaladora do mercado editorial. Mas sei que isso é fruto dos tempos - e nada há a fazer. Quem goste de livros de verdade que os joeire.

E joeirei. Na medida do possível, dadas as circunstâncias acima referidas que me perturbam e me deixam sem paciência para andar a furar a multidão. Portanto, estes que aqui abaixo se vêem são o fruto da monda.

Como se vê, trouxe a Sibila. Já o tive. Mas não sei do meu livro, se calhar emprestei-o e não sei a quem. Deixei de o ver. Trouxe-o de novo, não vá o outro ter-se perdido irremediavelmente de mim.

E trouxe também um do meu primo (duplamente afastado, mas primo). Deveria ter trazido em duplicado para dar também à minha mãe. Mas estou na dúvida se não o terei já mas de uma outra editora ou com outra capa. Tenho que lê-lo para ver se me lembro. Para já, à vista ou arrumado no sítio devido, não o encontro.

(Em cima de uma carpete de Arraiolos que fiz quando não me perdia a escrever o UJM)

E já comecei a ler o princípio do pequeno livro de Raduan Nassar, Um copo de cólera, e estou fascinada com o fulgor e a sensualidade desta escrita. A ver se amanhã transcrevo um pouco para mostrar as que não conhecem. Raduan Nassar é o Prémio Camões 2016. Publicou apenas três livros. Mas começa a ler-se o que escreve e não se consegue parar, tal o encantamento: isto, sim, é um escritor.

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Lá em cima Brad Mehldau interpreta Prelude to a Kiss
(e há lá coisa melhor do que o prelúdio de um beijo?)

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E aceitem, por favor, o meu convite e continuem descendo até à beira do rio.
Pode ser que, por lá, encontrem um ET ou um gato.

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Sobre os deuses, sobre os gatos, sobre a arte, sobre os ETs. sobre os pequenos seres que somos nós
Ao som de Blues and Ballads


No outro dia passei pelo lugar que abaixo se vê e fotografei aquela parede ao fundo. Eram, então, apenas riscos pretos. Um traço de tinta que se agigantava em negro sobre a parede branca. Gostei.

Hoje percebi que o pintor tinha apenas desenhado os contornos. Mas sabe quem já alguma vez se deu à liberdade de pegar num pincel e com ele cruzar uma superfície em branco, o prazer que é desenhar movimentos que correspondem a algo que apenas vai existir a partir daquele momento. O movimento do braço a desenhar os contornos é o verdadeiro momento de felicidade, o momento iniciático. Eu não sabia que eram contornos, gostei mesmo assim, mas hoje, ao ver o produto final, fiquei maravilhada, como se do céu tivesse caído uma liana azul, e nela tivesse pousado uma cereja gigante que logo tivesse atraído um insecto guloso e igualmente gigante.







Não há opiniões unânimes nem gostos coincidentes e, portanto, aceito como natural que alguém olhe esta pintura e ache que o autor sujou a parede ou que fez uma coisa sem graça. A mim agrada-me imenso. Gosto de arte e acho que uma das formas mais nobres e generosas de fazer arte é fazer arte de rua, disponível para quem passa.

E sei que ao designar isto como arte também não obterei concordância total pois o que é ou não arte é daquelas questões sobre as quais muita gente, e gente preparada para o fazer, fala, escreve, reflecte mas em que, naturalmente, não há consenso possível. A história de um par de óculos que um adolescente deixou no chão do museu só para observar as reacções dos visitantes correu mundo. A maioria achou que os óculos eram uma peça de arte.

Já em tempos aqui contei sobre aquela vez em que os meus filhos, no Guggenheim de Bilbao, comeram um bocado de uma obra de arte. Bizarro.

Enfim. Por mim, o critério é simples: é arte aquilo que eu acho que é arte. Ponto.

Claro que há construções de uma beleza notável; beleza e delicadeza, elegância, harmonia. Mas, se ninguém as fez, se se fizeram a elas próprias, não são arte. São milagres da natureza.


E, depois, quem somos nós -- ou, em particular, eu -- para colocar carimbos: isto é arte - isto não é arte?

Li que, em breve (dentro de, o mais tardar, 20 ou 30 anos), os cientistas estarão em condições de comprovar a existência de vida noutros planetas. Podem ser apenas bactérias ou pode ser vida inteligente. O que somos nós, pequenos e indefesos pequenos seres habitando a superfície de um pequeno planeta perdido no vasto e desconhecido universo, para podermos classificar de forma definitiva questões que se prendem com aprecisções pessoais?

Por isso, por tudo isso, de que tipo de superioridade pode alguém arvorar-se para decretar, de forma pretensamente definitiva e estupidamente arrogante, quem é que cumpre ou não mínimos olímpicos para estar à altura de compreender ou deixar de compreender ou apreciar ou deixar de apreciar o que quer que seja? Só mesmo pessoas desprovidas de inteligência (racional e emocional) é que podem julgar-se ungidos com dons que apenas os deuses, esses seres inexistentes, poderão possuir.


Deuses -- como os espíritos que há quem julgue habitar o corpo dos gatos. Esta manhã, invejei a deusa dolente que, ao sol -- sob um céu muito azul e junto a um rio que cheira a mar -- se limitava a sentir o sol, de olhos fechados, apenas os abrindo de quando em vez e logo voltando a fechá-los pois a realidade não lhe devia parecer mais interessante do que os seus suaves sonhos brancos.

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As fotografias foram feitas este sábado entre a Casa da Cerca e o Ginjal

Lá em cima, o Brad Mehldau Trio interpreta "Little Person" de Jon Brion do album Blues and Ballads que um Leitor, a quem muito agradeço, me enviou. Um som magnífico. Tenho estado a ouvir e estou encantada.
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Já cá volto com uma reportagem fotográfica sobre a Feira do Livro. E já vos mostro os livros que trouxe.
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E aceitem, por favor, o meu convite e desçam até a um vídeo que a mim me incomoda um bocado. É a malta da Porta dos Fundos a brincar, uma vez mais, com a Igreja. Mas que a história possa um dia deixar de ser ficção não é cenário que devamos afastar em absoluto.