terça-feira, março 17, 2015

'Uma menina prendada'




Hoje recebi um presente daqueles que me enche de prazer e que chegou num dia mesmo bom para o poder desfrutar. Falava e mostrava vários Métiers d'Art. Toda a revista, que aqui não tenho como mostrar (quanto muito o site), é um luxo, um deleite. Não há métier d'art que me seja indiferente e não há laborioso e amoroso trabalho feito à mão que a mim me não encante. 

No mail que o acompanhava, o Leitor - a quem já agradeci mas a quem aqui agradeço de novo - falava dos tapetes de Arraiolos que uma sua familiar fazia. 

Também eu os fiz e deles já aqui falei muitas vezes. Tive o privilégio de conhecer uma Mestre com quem estabeleci amizade e que tinha (e tem) o desenho original de tapetes originais que se encontram em Museus e Fundações. E, então, sem antes ter tido aulas ou ensinamentos, um dia pedi-lhe um desenho, juta e lãs para um determinado tapete de corredor. Ela assim o fez e, no dia em que lá fui buscar, pedi-lhe que fizesse meia dúzia de pontos para eu aprender. Quase deu um salto, escandalizada: 'Mas ainda não sabe fazer?!'. Quando lhe disse que não mas que, se ela fizesse uns pontos eu fixava, achou que eu só podia estar a gozar. Toda se zangou, que nem pensar, que havia cursos, que isso não era assim. Pedi-lhe que me dissesse as regras básicas, que me mostrasse o ponto em linha e como se mudava de linha e como se faziam as diagonais. Quase ofendida disse-me que eu tinha que ir aprender e depois, então, que fosse lá buscar o desenho e o material. Quase nos zangámos. Por fim, depois de eu explicar que não tinha tempo para cursos, toda contrariada, lá me fez uma meia dúzia de pontos. Pedi-lhe que me deixasse a agulha posta na posição de continuar para me ser mais fácil prosseguir.

Quando nessa noite peguei naquilo, queria continuar e nada me batia certo. Na posição em que a agulha estava eu não conseguiria retomar o ponto tal como me parecera ter percebido. Estava mesmo infeliz, já a ver-me a ir lá de corda ao pescoço dar-lhe razão. Às tantas verbalizei a minha dificuldade, 'Não consigo retomar o ponto a partir da posição em que está a agulha...'. Aí a minha filha, com a maior descontração confessou: 'Ah... a posição da agulha era importante...? É que estive a mexer nisso, tirei a agulha e depois voltei a pôr mas não faço ideia da posição em que a pus.'.

Ora bem. Peguei então naquilo, reorganizei-me mentalmente e, durante anos, à noite, nunca mais parei.

Fiz tapetes e carpetes de vários tamanhos, cores e feitios. Tenho esta casa cheia e a casa in heaven também. Duas dessas carpetes, já aqui as mostrei, estão agora em casa do meu filho.

Primeiro, a partir do desenho em papel quadriculado, eu bordava os contornos dos desenhos, tendo em atenção as cores. Essa é a parte complicada pois o desenho só contempla um quarto do tapete já que o tapete é composto por quatro partes simétricas. E, portanto, estamos a ver o desenho no papel e, em cada dois quartos, a ter que bordar ao contrário. Por exemplo, olhava para o desenho e fixava: três pontos para a direita, um em diagonal para cima, dois verticais e depois quatro horizontais para a esquerda. E, ao bordar tinha que, de cabeça, onde era direita, fazer esquerda e vice-versa. Portanto, estava a ver televisão mas absorta, só concentrada nesta mecânica. E, claro, sempre com atenção às cores pois um tapete destes leva vinte e tal ou trinta cores diferentes, algumas de tons muito parecidos. Depois do desenho todo feito, começava a fase de enchimento dos desenhos. E todos os dias, ao começar, eu pensava, por exemplo, hoje vou encher o tigre e a árvore e, enquanto o não fizesse, não me ia deitar. Depois, entrava no enchimento do fundo e aí era uma luta contra o tempo, eu a querer acabar para aplicar depois a franja e poder tê-lo pronto e, enquanto não via o fim, não descansava.

Antes disso tinha passado pelo tricot e, depois ou ao mesmo tempo, pelo crochet. 

No crochet, toalhas, colchas de renda, sei lá. 

Ainda estive para ir fotografar a colcha branca mas é pesada, não me apeteceu estar a abri-la. Por isso, fui a uma das gavetas da casa de jantar e tirei uma toalha redonda que fiz para uma camilha que tinha numa altura em que a casa estava mais para o convencional. Mas não gostava, ter toalhas com toalhas de renda por cima, parecia-me mais a casa da minha mãe ou das tias do que a minha e, portanto, a toalha para ali está guardada.

Houve uma outra época em que fazia individuais para mim e para oferecer pelo Natal. Usava linha grossa, rústica, e fazia-os de toda a espécie e feitio. Inventava pontos, modelos, era o que me vinha à cabeça. A linha rendia e despachava individuais a grande velocidade.

Quando os oferecia, quem os recebia olhava para mim com espanto: 'ai, que menina prendada...'. Não parecia bater certo que eu fosse dada a tais habilidades.

Com o tempo, acabei por me deixar disso.

A verdade é que, cá em casa, raramente os uso. Para, no dia a dia, pôr na mesa prefiro individuais laváveis, bem mais práticos. Estes, de linha, têm que ser lavados de cada vez que são usados à mesa. Estou a ver a fotografia e parecem-me um bocado manchados, não sei se é da fotografia ou se estão a amarelecer de estarem sem uso.

Mas, enfim, foi uma época.

Não mostro os quadrinhos que bordei sobre cetim branco ou seda preta, com linhas de seda coloridas. Montava o tecido num bastidor e, quem me visse, poderia tomar-me por uma donzela de há séculos atrás. Comecei com motivos florais mas foi sol de pouca dura, logo derivei para desenhos futuristas. Mas não os posso mostrar porque os tenho in heaven.

Tendo sido nados e criados a visitar museus e exposições de toda a espécie e feitio, coisa que, de resto, os deixava frequentemente à beira da rebelião, os meus filhos sempre souberam da minha devoção por pintura.

Então, um dia, para minha surpresa, o meu filho ofereceu-me um cavalete, tintas, pincéis. Pensei que ele estava doido. Muitas vezes eu pensava que gostava de experimentar mas quem gosta muito de uma coisa sabe bem a distância que vai entre gostar e ser capaz de fazer o mesmo.

A medo, com pena de desperdiçar os materiais, lá me fui, a pouco e pouco, afoitando. Até que lhe ganhei o gosto. Que liberdade, que alegria. Uma vez mais, era de noite que eu gostava de pintar. Especialmente ao fim de semana, ficava até às duas ou três ou mais a pintar. A pintar nada em particular. era o prazer infantil de pintar. E misturava materiais com tintas, e pintava, pintava noite fora.

Os quadros que tenho aqui nesta casa e que já tinha antes desta aventura, comprados portanto, eram geralmente em tons claros, muitos quase minimalistas, algumas aguarelas, tons suaves. E, no entanto, sendo esse o género que mais me agrada, quando pinto é uma torrente de cor, um disparate, as cores jorram, um excesso. Isto que aqui vêem ao lado é o canto de uma tela grande que está nesta sala. Nada tem a ver com nada. Por baixo do corpo da mulher escrevi woman in love e há mais coisas escritas mas não faço ideia porquê. Apeteceu-me, e uma pessoa poder fazer o que lhe apetece sem ter que dar satisfações a ninguém é uma sensação muito boa. Nunca me passou pela cabeça pensar se estava a pintar bem ou mal. Estava simplesmente a pintar para meu próprio e intenso prazer.

Mas também fiz pinturinhas mais normais. 

Em casa da minha mãe há várias pinturas minhas mais comuns, flores sobretudo, grandes ramos de flores campestres, e acho que até não estão mal de todo. 

Querendo, sou capaz de fazer coisas que parecem ser qualquer coisa. 

Por exemplo, logo muito ao princípio, quis fazer um quadrinho para colocar numa parede estreita que separa o hall da sala de jantar e esforcei-me por que saísse alguma coisa que não intrigasse toda a gente (porque o que mais arrelia é uma pessoa fazer uma coisa pelo prazer de a fazer e depois virem perguntar o que é). 

Fiz então umas florzitas vagamente inspiradas nos jarros do Mapplethorpe. Tinha lá in heaven uns jarros no canteiro junto à cozinha e então coloquei-os nesta posição e pintei à vista.

Mas depois já não tinha onde pôr tanto quadro, distribuí-os, dei-os, e ainda tenho por lá montes deles. Mas volta e meia bate uma saudade...!

Virei-me então para tarefa mais simples: fazer colares e pulseiras. Outro entretenimento. 

No verão, quando estou lá de férias, quando vou sair (o que é raro pois não há nada que me apeteça mais do que lá estar posta em sossego, ao sol ou à sombra, a ler ou a varrer), se, por exemplo, visto um vestido preto com flores encarnadas, logo penso, ora bolas, agora não tenho aqui uma bijuteriazinha a condizer. e, então, monto a minha banquinha e faço, num instante, um colar e uns brincos que façam pendant. Outras vezes faço coisas mais elaboradas, com pedrinhas pequenas, mais difíceis de enfiar e ali estou entretida. Por vezes, quando acabo vejo que onde tinha colocado uma pedra num certo tom azul não usei o tom certo e, para minha arrelia, tenho que desmanchar quase tudo e começar de novo. Mas faço-o de gosto.

Para vos mostrar fui ali buscar uns mas meteu-se outra coisa pelo meio e, para despachar, peguei apenas em dois e, por sinal, pouco significativos. Não faz mal, também não os estou a pôr à venda. Uma vez mostrei aqui um colar e uns brincos e, no dia seguinte, recebi um mail de uma pessoa do Brasil a perguntar quanto é que custava o conjunto. Achei imensa graça.

E assim me tenho vindo a entreter, ao longo dos anos. Pelo meio a leitura, sempre. E a fotografia. Milhares de fotografias. Quando começo com qualquer coisa sou imoderada, a minha produção parece que ganha vida própria, uma coisa estranha.

E vocês, Caros Leitores, têm a prova disso aqui. Agora o meu passatempo nocturno é escrever para vocês. E o que eu escrevo, senhores. Leio outros blogues e fico encantada com a sua contenção, poucas palavras, um look despojado, cores claras. Mas chego aqui e é isto, um exagero total. A sorte é que não tenho a limitação de espaço que tinha com as outras coisas. Mas tenho sempre a sensação que um dia me irei virar para outro lado. Escrever um livro, por exemplo. Ou simplesmente responder aos mails, estar mais próxima das pessoas, não sei. Ou, então, deixar-me estar sossegada a ler.

Mas agora nem vale a pena pensar nisso. É aqui que estou à noite e é aqui que a 'menina prendada' agora se sente bem.

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PS: Sei que ando um bocado arredada dos temas da política nacional mas a verdade é que acho que é a política que anda arredada de Portugal. Há um vazio quase tenebroso. Este malfadado governo deu cabo de quase tudo no país e as possíveis alternativas ainda estão na fase dos baby steps, nada de entusiasmante acontece. Por isso, não tendo paciência para andar a bater sempre no ceguinho que já está mais do que moribundo, apetece-me espairecer e falar de assuntos mais tranquilos.

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A música lá em cima era Ryuichi Sakamoto interpretando a música que serve de banda sonora a 'The Sheltering Sky', um filme que acho que um dia destes hei-de rever.

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No post seguinte temos humor: o nosso querido Lombinha no seu melhor, a explicação da diferença entre sexo e amor e, para terminar um marido desaparecido na Porta dos Fundos.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa terça-feira, vivida em tranquilidade.

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2 comentários:

Rosa Pinto disse...

Bom dia. E um talego de renda...faz parte do enxoval de uma alentejana.

Tété disse...

Finais dos anos 60 e na moda as colchas de renda feitas à mão com linha Ancora e uma agulha.
Comecei uma e convenci-me que num certo dia, lá muito longe, haveria de terminá-la.
Por graça disse: "Quando terminar a colcha, caso-me".
Mas o mais engraçado é que nem tinha namorado na altura que me fizesse programar essa data.
Pois digo-vos que comecei a namorar de seguida, por acaso com aquele que se viria a tornar meu marido e ao fim de um ano e para que a colcha fizesse parte do enxoval, tive de a acabar a tempo e com data marcada.
Há coisas na vida que nos ficam para sempre gravadas por serem marcantes no nosso percurso de vida.
Beijinhos para a "prendada" Tá.