domingo, janeiro 05, 2020

Aquela que vocês pensam que eu sou





Ia dizer que há um mundo que desconheço. Iria referir-me ao Facebook, ao Instagram. Ou ao Tinder. Ou a redes sociais desse tipo. Mas tenho o blog, ainda por cima sem me identificar, e, por isso, se calhar, não posso dizer que desconheço. 
Mas o blog é um lugar onde escrevo ou partilho fotografias que faço ou outras de que gosto. Ou pinturas ou músicas ou filmes. Ou danças. Não o tenho para fazer amigos, para interagir, para me aproximar de alguém. Não sou uma pessoa solitária, muito pelo contrário, nem tenho necessidade ou dificuldade em arranjar amigos por via directa. Também pelo contrário, penso muitas vezes, com pena, que vou deixando pessoas para trás, pessoas que se queixam do meu esquecimento. Mas não é esquecimento, é mera indisponibilidade física para manter o contacto. Com a vida que tenho, não me sobra tempo. Ou estou a trabalhar ou no trânsito ou com a família. Ou no campo ou a ler ou no blog. Ou sei lá em quê.

Mas, se as minhas circunstâncias fossem outras, se calhar tentaria experimentar divertir-me ou arranjar companhia através de uma qualquer dessas redes sociais. Porque não?

Aconteceu que, mesmo não sendo esse o propósito do blog, arranjei alguns amigos, não muitos mas alguns, pessoas especiais que jamais conheceria se não fosse o blog. E conheci outras pessoas, não direi amigos-amigos, mas pessoas em que penso, pessoas invulgares, pessoas, em certo sentido, extraordinárias. E posso testemunhar que, apesar de tudo -- da distância, da imaterialidade do contacto, do desconhecimento concreto de quem está do outro lado -- genuíno afecto pode acontecer.

Agora que estou a escrever, lembro-me que há muito tempo, seguramente para cima de mil anos, havia uma coisa chamada mIRC. Presumo que, entretanto, se tenha extinto. Foi o meu filho, então adolescente, que me falou nisso, me explicou o conceito e como funcionava. E experimentei. E gostei. Falava-se com desconhecidos. Usava um nome, por sinal ainda me lembro, por sinal ainda gosto desse nome. Aliás, estou a lembrar-me, depois, querendo sair de cena com o primeiro nome, arranjei um segundo de que talvez ainda goste mais. Falava com pessoas muito interessantes. Um é hoje presidente de uma grande autarquia. Aprendi algumas coisas com ele. Era, então, como hoje, tanto tempo depois, ainda é: desconcertante, provocador, culto e polémico. Outro era administrador de uma empresa, disse-me o seu nome e a empresa onde trabalhava (e eu não) e deu-se o caso de, inesperadamente, o encontrar em contexto profissional e, num súbito ataque de nervosismo, não ter sido capaz de me identificar. De resto, não estava sozinha, estava integrada numa delegação, e pareceu-me que a conversa poderia desencadear perplexidade junto de quem a ouvisse. Nessa noite, pelo computador, disse-lhe que tinha estado com ele e ele ficou aborrecido por eu não me ter apresentado. Lembro-me também da noite em que a mãe dele morreu e de como estava triste enquanto conversava comigo. O contacto escrito em tempo real com desconhecidos, por razões que não sei explicar, pode gerar uma estranha proximidade. Mas pode ser também um espaço de sedução. E havia quem quisesse mais. E estar sempre a dizer que não tornava-se um bocado esgotante.


À medida que vou escrevendo, vou recordando: provavelmente esse mIRC foi o precursor das actuais plataformas de encontros, sejam eles virtuais ou físicos. 

Acabei por me deixar daquilo provavelmente por saturação ou porque aquilo, na verdade, era um bocado viciante, ou pelas duas razões -- já nem me lembro bem. Mas sei que, como tudo na minha vida, tendo sido porta que se fechou, para sempre ficou fechada. E, se agora estou a recordar, é certamente pelo filme que vi.

Juliette Binoche extraordinária, como sempre. Um filme belo, com uma bela música, envolto em silêncio e onde a luz de Binoche cintila. Muito interessante, também, o desempenho de Nicole Garcia.


Não vou desvendar o enredo mas posso apenas dizer que me parece uma situação muito plausível, provavelmente muito comum. Assumir um perfil que não é exactamente o seu, pretender fazer-se passar por outra pessoa, construir uma persona, vestir completamente a pele dessa persona, agir já como se fosse essa persona, manter a verosimilhança, ir acrescentando pormenores para lhe dar consistência, depois já não ter como voltar atrás, ver-se preso na teia que se urdiu e que já não é teia mas armadura, tudo isso me parece possível, real. Quantas vezes, sob outro nome, com outra fotografia, outra história de vida, não é assim que algumas pessoas se apresentam perante outras? Juraria saber de alguns casos.

Pode começar por ser uma brincadeira. Um jogo de espelhos. Pode acabar por ser um vício. Ou um modo de vida. Pode ser a heteronímia levada ao extremo, pode ser já a incapacidade em saber qual o verdadeiro eu. 


Se puderem, vejam. É interessante sob todos os pontos de vista.

Em Portugal ficou Claire e Clara. No original é Celle que vous Croyez

Realização de Safy Nebbou, banda sonora a cargo de Ibrahim Maalouf

________________________________________________

As fotografias que usei foram feitas no outro dia in heaven
_____________________________________________________

A todos desejo um belo dia de domingo

5 comentários:

Abraham Chevrolet disse...

Escrever na Net,até comentar,pode ser explicado por mil razões. Muitas defensáveis, outras censuráveis,outras inconfessáveis, o leque abre-se e as mil não chegam...
Quando se repara que, na coluna aqui no lado direito do blog, mais de 80% dos blogs presentes começam,quotidianamente,por uma frase com sujeito na primeira pessoa do singular, a estranheza instala-se.... que necessidade esta do eu, eu, eu ?
Todos podem achar que têm uma vida interior rica, que interessará a muitos, que o universo apreciará conhecer, talvez,talvez...
Um pouco mais de atenção ao mundo exterior, um pouco mais de altivez,já que de bastantes fraquezas todos estamos providos. Criança a chorar,só,no canto da sala de aula? Não,fujamos para o recreio,corramos,saltemos,brinquemos,o desgosto logo passa !

Um Jeito Manso disse...

Olá Chevy, sempre um prazer revê-lo por estas bandas,

Tem razão. O mundo para a maioria de nós -- se não para todos nós -- é apenas uma extensão do nosso umbigo. As coisas interessam na medida em que nos interessam. É mesmo. Fazer o quê?

Tem é que se encontrar o ângulo certo para percebermos que somos um nano-ponto algures no universo e não o big centro desse universo.

E também concordo que temos que nos libertar da nossa proverbial falta de auto-estima: temos é que gostar de viver e transformar isso em vontade de lutarmos por uma boa vida para todos.

E um bom ano, Chevy! E não volte só no ano que vem, ouviu?

Tiago Gonçalves disse...

Só para esclarecer que o Mirc ainda existe e é utilizado... mas é em grane medida uma sombra do que já foi no passado!
Aliás se pedir a lista das salas de chat portuguesas desse programa, com mais frequentadores, pode ter uma surpresa...
Bom ano UJM!

Um Jeito Manso disse...

Olá Tiago,

Ainda? que coisa bizarra. Ainda fará sentido uma sala de chat num tempo destes? um dia destes ainda vou espreitar. Uma coisa decadente, não? Coisa para velhinhos e velhinhas, não...? Haverá de ter graça...

Um bom fim de semana e um excelente 2020!

Tiago Gonçalves disse...

Olá UJM!
Sim é uma coisa morta e decadente... Não sei se para velhinhos e velhinhas apenas, aparentemente tambem haverá mais novos, mas pouco ou nada se passa nas salas.
Obrigado, bom fim de semana e excelente 2020!