Perante a beleza desmedida de uma paisagem traçada pela arquitectura, ou perante a grandeza de uma escrita feita catedral, ou a atracção de uma pintura feita de cores, luz e coisa nenhuma, ou uma música que se transforme na alma que me comanda, detenho-me, muitas vezes fecho os olhos. Não quero esgotar o que me é dado, então, viver. Não quero racionalizar, não quero retalhar o todo nas partes que o compõem porque, para além das partes, há o espírito que as liga e há a forma como o sinto e o todo é sempre mais e muito diferente da soma das partes. O que em mim se altera pela emoção que me é despertada deve permanecer inexplicável, reacção mágica, indefinível. Só não analisando a arte que em mim toca as cordas da emoção poderei defender-me da indiferença ou da arrogância, só assim as minhas células permanecerão disponíveis para serem impressionadas em vezes futuras.
Sendo um tema que me interessa, é daqueles que deliberadamente afloro como um pássaro que voa e pousa com ligeireza para logo voar e depois se acolher e depois voar e depois pousar para sentir a aragem na plumagem e sempre sem pensamentos profundos, apenas a leveza de quem gosta de viver em liberdade, sem seguir tendências, sem se prender a teorias, sem dever fidelidades.
Começo a ler o que parece ser esclarecedor e vou by the book, uma linha depois da outra, uma página a seguir à outra. Mas não dura muito o meu bom comportamento. É que logo depois já estou a espreitar páginas para a frente, depois quero ver qual o rumo que o raciocínio está a levar e leio a última página, depois leio do fim para o princípio e depois, se me parece inútil, salto páginas e voo até que as palavras chamem por mim e, assim vou, regressando à casa da partida.
Se tiver sorte, terei permanecido na mesma ignorância que antes, apenas percebendo que, na longa parede ao longo da qual caminho, há portas de que antes não me tinha apercebido, penso que talvez um dia entre em alguma pela curiosidade de ver o que há do lado de lá. Mas evitarei isso porque, de cada vez que entrar por uma porta, ficarei fechada num compartimento em vez de continuar a percorrer o atraente caminho por onde gosto tanto de andar -- e de me perder.
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Procura ainda a vida que
podes viver quando reflecte
da floresta a sombria folha
que
no primeiro capítulo foi perdida.
Procura a proporção do que
cresce dentro e fora da casa –
o corpo,
no seu existir dia a dia
similiter tui domine
deus. Procura
a vibração do mar e da terra e
desce
na cavidade medida
o mais profundo golpe.
São coisas muito frágeis – uma sede
a transformar-se em água ou num sorriso
aberto à flor dos lábios,
a música de um corpo enquanto é verão
e sobretudo a chama de um olhar
que se entrega à primeira alegria,π
ao primeiro desejo.
Ele sabe, sempre soube que é difícil ser
fiel ao esplendor de tudo isso, à
melodia ou ao rumor do sangue. É um
segredo roubado à terra ou à infância
como se a voz dançasse.
Confidente das aves quando chegam
do sul
ou cúmplice da luz que se demora
à passagem do vento,
mal o vejo daqui
e a sombra que se move entre os seus olhos
é a lição do dia quando morre,
esse rasto de lume que o sol deixa
a arder no mar.
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E para que serve a música? E para que serve a dança?
(E o corpo, para que serve? E nós, para que servimos nós?)
Roberto Bolle e Polina Semionova dançam 'Passage', uma música de Fabrizio Ferri
Os poemas pertencem ao livro 'Aproximações a Eugénio de Andrade'. O primeiro é 'Naufrágio que le Prince Charmant sofreu ao tempo do Livro de Navegações de São Brandão' escrito para Eugénio por João Miguel Fernandes Jorge, que refere que foi o único poema que escreveu em 1999. O segundo é de Fernando Pinto do Amaral – “Para um retrato de Eugénio”
Os poemas pertencem ao livro 'Aproximações a Eugénio de Andrade'. O primeiro é 'Naufrágio que le Prince Charmant sofreu ao tempo do Livro de Navegações de São Brandão' escrito para Eugénio por João Miguel Fernandes Jorge, que refere que foi o único poema que escreveu em 1999. O segundo é de Fernando Pinto do Amaral – “Para um retrato de Eugénio”
As fotografias foram feitas hoje rente ao Tejo.
Lá em cima Catrin Finch interpreta Blessing de John Rutter
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Já cá volto mas, entretanto, desejo-vos um bom sábado.
2 comentários:
Olá UJM!
O que é a arte? Para que serve a arte?
Para que serve uma paisagem desértica ou uma montanha nevada?
A arte, tal como por exemplo uma paisagem, pode transmitir-nos emoções agradáveis ou penosas, evocar memórias, ampliar a nossa sensibilidade, permite-nos ver e sentir para além da realidade racional , objectiva e “ utilitária” do quotidiano .
Contrariamente ao que normalmente sucede com uma paisagem a arte é uma construção levada a efeito por um produtor, um “artista” que pretende realizar com volumes, cores palavras, com fixações em telas ou em papel fotográfico por exemplo as emoções ou uma qualquer mensagem que ele próprio pensa ter descoberto e que juga interessante dar a conhecer a outrem. Esta actividade exige “inspiração e transpiração” e é muitas vezes penosa de realizar até o artista jugar ter conseguido atingir o objectivo pretendido.
Aprendi, como engenheiro de telecomunicações, que para comunicar algo a alguém é necessário um emissor , o artista, um receptor, o público interessado na fruição da obra de arte, e um meio de comunicação, o objecto artístico, mas também uma linguagem que seja compreendida pelo receptor sem a qual não existiraá transmissão do que quer que seja.
Se um chinês me comunicar na sua língua qualquer coisa eu não irei receber nada porque não falo chinês.
Se não me for acessível a linguagem utilizada pelo artista, ou se ele não me facilitar essa compreensão, não posso entender o que ele me quererá dizer e não posso fruir a obra de arte.
Muitos artistas constroem uma linguagem que nos é perceptível pelo facto das suas obras nos conseguirem transmitir as emoções que teriam pretendido expressar mas nem sempre são exactamente as que o artista terá querido exprimir mas uma transmissão funcionou.
Gosto do Miró ou do Pomar porque sou sensível à sua linguagem reproduzida em inúmeras obras. Detesto o Cabrita Reis por não consigo “ sentir” o que ele me quer dizer. Chego mesmo a pensar que ele não “fala “ qualquer linguagem. Mesmo os especialistas que a procuram traduzir por palavras escrevem numa linguagem tão hermética que eu sou incapaz de a perceber .
As linguagens vão evoluindo através dos séculos. Há artistas que morreram e outros que continuam vivos porque as linguagens que utilizaram continuam vivas.
É normal que os artistas procurem sempre outras linguagens , sempre foi assim, mas procurar não significa necessariamente encontrar. Um dos problemas da arte contemporânea é que há demasiada sede de procura e raramente se encontram linguagens perceptíveis à nossa sensibilidade de “receptores” comuns mesmo que a procuremos ir educando e façamos um esforço nesse sentido.
Depois aparece a “máfia” dos galeristas, dos colecionadores, dos críticos, dos gestores de museus, curadores de exposições e editores revistas de arte etc. etc. desejosos de “valorizar” as obras de arte dos “se” artistas que ainda complicam mais a situação.
O texto vai longo e certamente haveria muito mais para dizer!! Gozemos a arte que enriquece a nossa sensibilidade e não nos obriguemos a perguntar porquê como eu fui fazendo neste insuportável arrazoado !!!
Um abraço
Joaquim, olá,
Já o disse em resposta ao comentário de ontem: vou usar as suas palavras para, descaradamente, fazer um post. Acho que os leitores ficam a ganhar se eu puxar o seu texto para 1º plano.
Obrigada!
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