Ema senta-se à janela e, se alguém entrasse nessa altura, pensaria que é uma mulher serena. Imóvel, ela olha o rio que corre lá em baixo; o tempo parece ter uma outra dimensão para esta mulher cujo olhar voa transportando inacessíveis sonhos; de vez em quando, fecha os olhos e quem a observasse com mais atenção perceberia um leve altear do peito; quase respira fundo, quase denuncia uma leve inquietação.
Depois Ema retoma a leitura, passa as mãos pelas folhas do livro -- e há sensualidade na forma lenta como as suas mãos afagam o papel, tal como há quando olha vagarosamente o rio ou quando as narinas quase imperceptivelmente procuram os cheiros das árvores ou do corpo amado. E assim, nessa dança, ocupa o seu tempo: o olhar a levantar-se do livro e a dirigir-se ao rio, de novo ao livro. De vez em quando, encosta a cabeça, absorta, o olhar perdido.
Depois levanta-se, apoia-se no peitoril da janela. O cabelo solto, a blusa descaindo, deixando um dos ombros levemente à vista. O calor pesa-lhe. Afasta levemente o cabelo das costas, puxa-o para um dos lados.
Carlos assoma à porta, sorri-lhe; Ema devolve-lhe o sorriso. Traz-lhe um copo de sumo gelado, um toque de gin, e beija-a no rosto. Ema sorri, olha-o e é amor que há no seu olhar. Carlos beija-a no pescoço, do lado em que o cabelo foi desviado. Ema fecha os olhos, deixa-se beijar. Depois toca-lhe o cabelo, uma carícia suave, e aproxima o seu corpo do corpo de Carlos, oferece-se. Beijam-se enquanto a aragem faz esvoaçar ao de leve os cortinados.
Mais tarde, Ema diz que vai passear junto às margens do rio. Carlos pensa que é quase noite, que a aragem está a esfriar, que são perigosos os recantos que se escondem junto às águas mas não diz nada. Há muito que aprendeu que Ema precisa de se evadir e que jamais a poderia ter se a prendesse ou vigiasse.
Ema sai, os cabelos voam à sua volta, pensa que deveria ter trazido um casaco mas não volta atrás. Quando se aproxima das margens, começa a correr, e um cão corre a seu lado. Ema corre como se tivesse dezoito anos. Ou oito anos. Sorri. Lembra-se como corria ladeira abaixo quando ia da casa da avó para a escola, íngreme a descida, o corpo sem freio, quase a voar. Alguns cabelos brancos, algumas rugas, ela sabe-o bem, mas os anos não lhe tiram a necessidade de sentir o vento na cara nem o gosto da liberdade.
Depois, quando o sol já se pôs, Ema desliza pelos labirintos feitos de canas e murmúrios, desce até às pedras, à areia, descalça-se, deixa que a água molhe os pés. O cão segue-a inquieto, gane, tem medo. Mas Ema não escuta lamentos, não quer saber de prudências. Um outro vulto se move por perto, Ema não tem medo, sabe que o entardecer junto ao rio atrai os seres livres, os espíritos insubmissos.
Quem passe por perto nada verá. Talvez ouça apenas vozes, risos. Depois uma música, talvez flauta, e, a seguir, em voz baixa, uma toada, uma voz de homem que diz poesia.
Quando já anoitece, Ema retoma o caminho para casa, o cão mais descansado ao seu lado. Ema sorri. Depois pára, põe a mão sobre o coração. Ao retomar o caminho limpa os olhos mas o rosto está tranquilo.
Quando entra em casa, Carlos diz-lhe que está frio, que deveria ter mais cuidado. E diz-lhe que Pedro está na sala, à sua espera.
Ema sorri e corre a abraçá-lo. 'Pedro! A esta hora...? Não pensei. Que bom... Vieste.'. Pedro fica sempre levemente embaraçado com a exuberância da alegria de Ema quando o vê. Ela abraça-o com um afecto efusivo enquanto ele mantém a contenção. Carlos pergunta se ele quer ficar para jantar. Ema interrompe 'Claro que sim!'
Ema corre para a cozinha, rapidamente prepara uma refeição. Ao jantar, conversam os três animadamente, amigos, e todos os temas são abordados com bonomia. De vez em quando, Ema provoca Pedro, goza com a sua falta de jeito para arranjar uma mulher, diz-lhe 'Tanta inteligência, tanto brilhantismo, tanta citação, tanta conversa, e depois, na prática, zero...'. Pedro disfarça algum incómodo, Carlos repreende-a com o olhar. Ema ri.
Depois de jantar, Carlos vai dar uma volta pelos limites da propriedade, fechar portões e portadas. Ema e Pedro continuam a conversar e há uma cumplicidade entre eles, e falam de livros, de todos os livros que leram, dos que gostavam de ler, da paixão pela leitura que é mais do que paixão, que é vício, e do que pensam dos tempos que correm, e relembram histórias do passado, e falam do campo, e dos filhos, do que os filhos fazem, do que os filhos gostavam de fazer, e os olhos de ambos brilham quando falam dos filhos, e conversam, e conversam com vontade que o tempo não acabe para poderem continuar a conversar para sempre.
Ema enternece-se porque Pedro, nessas alturas, ele perde o olhar fechado e sombrio que tantas vezes tem e olha-a como se sentisse que nunca nenhuma outra mulher o compreendeu e aceitou desta maneira. Mas Ema sabe que ele sabe que o que sente não é correspondido, sabe que Ema ama Carlos, que Ema ama a sua liberdade.
E Pedro pensa que Ema não suspeita sequer do que ele sente nem do efeito que a sua feminilidade e sorriso exercem nele. E, por tudo isso, Pedro pensa que um dia deixará de aparecer porque não suporta viver uma paixão não correspondida. Mas, ao mesmo tempo, sabe que voltará sempre. Voltará para ouvir a voz de Ema, ver o sorriso de Ema, espreitar o decote de Ema, sentir o perfume que se desprende do cabelo de Ema, sentir o calor do rosto de Ema quando o beija e abraça para o cumprimentar. Voltará pensando que um dia deixará de voltar.
E Pedro pensa que Ema não suspeita sequer do que ele sente nem do efeito que a sua feminilidade e sorriso exercem nele. E, por tudo isso, Pedro pensa que um dia deixará de aparecer porque não suporta viver uma paixão não correspondida. Mas, ao mesmo tempo, sabe que voltará sempre. Voltará para ouvir a voz de Ema, ver o sorriso de Ema, espreitar o decote de Ema, sentir o perfume que se desprende do cabelo de Ema, sentir o calor do rosto de Ema quando o beija e abraça para o cumprimentar. Voltará pensando que um dia deixará de voltar.
Carlos regressa quando Pedro se está a despedir.
Depois Ema espreita pela janela. O rio escuro lá em baixo parece imóvel. Ema aspira o ar fresco. Está feliz.
Liga então o computador. Escreve um texto no seu blog, escolhe uma música, imagens. A seguir abre a caixa de correio. E lê um mail de alguém que se assina com um nome desconhecido e que lhe diz que tem que parar de a ler porque não quer alimentar a paixão virtual que sente por ela (Por isso vou parar até um dia. Já não tenho fôlego para paixões dirigidas a quem não conheço, para paixões impossíveis, só porque gosto da sua maneira de estar na vida e das coisas que diz).
Ema ri e responde-lhe que tem pena de o perder como leitor. Depois desliga o computador, olha uma última vez pela janela, passa carinhosamente as mãos pelos livros e vai dormir.
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Os nomes das personagens da ficção dominical que acabei de escrever -- a Ema (chamada a Bovarinha), o Carlos e o Pedro -- foram repescados de Vale Abraão, um filme de Manoel de Oliveira com argumento de Agustina Bessa-Luís.
A música lá em cima é She -- porventura mais conhecida na interpretação de Elvis Costello mas que me apeteceu ouvir interpretada por Charles Aznavour.
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Fotografia de Alexander Yakovlev |
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E, se me permitem a sugestão, desçam até ao post seguinte, até ao Porto, uma cidade linda e que a Harper's recomenda como um dos dez destinos ideais para uma visita neste verão.
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E, se me permitem a sugestão, desçam até ao post seguinte, até ao Porto, uma cidade linda e que a Harper's recomenda como um dos dez destinos ideais para uma visita neste verão.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo dia de domingo.
E que -- esteja eu numa de ficções, rêveries ou tropelias e gostem mais ou menos do que escrevo -- continuem aí, desse lado, a fazer-me companhia.
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1 comentário:
Dois belos filmes. Dois belos livros.
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