Tenho ideia que a grande bolada que me atingiu foi a sua interpretação n' O Silêncio dos Inocentes. Ainda não vi este, O Pai. Nem sei se o verei de bom grado. Talvez em casa, num dia em que esteja especialmente bem disposta. A demência assusta-me. Assusta-me muito e mais ainda se pensar que a pessoa pode ter consciência que está a caminhar inexoravelmente no sentido da perda das suas capacidades cognitivas. Deve ser aterrador.
Quando a minha mãe esteve a recuperar de uma cirurgia, esteve numa residência assistida cujas condições, creio eu, são superiores às normais. Dir-se-ia um hotel de muitas estrelas com a vantagem de ter médico todos os dias e enfermeiros em permanência. Acontece que havia ali uma concentração considerável de pessoas com demência. Todas as que conheci nessas condições pareciam normalíssimas. Dir-se-ia o cenário de um filme: nada era exacatamente o que parecia. Uma seria sensivelmente da minha idade. Bem arranjada, bonita. Estava sentada a uma mesa com o que parecia ser o marido. Viu-me, sorriu-me, cumprimentou-me como se me conhecesse. Pensei que me conhecia e fiquei a pensar quem seria. Ela disse-me mais qualquer coisa e eu aproximei-me. Contudo, o que admiti ser o marido fez um gesto discreto que percebi que quereria dizer que eu não parasse, que não fizesse muito caso. Fiquei muito intrigada. Contou-me, depois, a minha mãe que era sempre assim, cumprimentava sempre com afabilidade toda a gente. E era mesmo o marido. Ia lá todos os dias para tomar as principais refeições com ela. Numa das vezes que a minha mãe tomou o pequeno almoço com ela, despejou o iogurte no guardanapo e comeu a partir do guardanapo. No fim, ia limpar a boca com o guardanapo e, não sei como, lá conseguiram trocar-lhe as voltas. Tudo com muitos bons modos, gestos de quem sabia estar à mesa. E contava a minha mãe que as proezas se sucediam. Sempre bem disposta, sorridente, amistosa, como se tudo estivesse normal com ela.
A minha mãe contava-nos peripécias das suas 'vizinhas', coisas extraordinárias. Eu gostava de ouvir. Ouvia com um misto de curiosidade e de inquietação. A demência assume várias formas e frequentemente dissimula-se sob a ténue capa da 'normalidade'. Ao princípio a minha mãe assistia com alguma estranheza e muita benevolência e generosidade a todas essas demonstrações. Contudo, ao fim de algum tempo, começou a achar muito deprimente o convívio com a degenerescência. Se calhar, começou a recear que alguma vez lhe tocasse a ela. Felizmente, estava recuperada e pode voltar para casa.
Mas, voltando ao filme que trouxe o Oscar pra melhor actor deste ano a Anthony Hopkins, tenho mixed feelings em relação a vê-lo. Gosto de ver filmes com finais felizes e, quando a demência se instala, não há tal coisa. O final é sempre o corolário de um caminho cada vez mais curto, cada vez mais sombrio. Não sei se para a vida há finais felizes mas, enfim, queremos sempre sonhar com um fim que seja breve, pouco doloroso, em que possamos manter intacta a nossa dignidade e consciência. E, em casos como o deste filme, é tudo ao contrário disso: é um pesadelo. Um pesadelo às tantas mais para os que lhe são próximos do que para o próprio que, por fim, perde a consciência de si.
Anthony Hopkins - O pai
A dança como celebração
(com Salma Hayek)
Oscar - o discurso da vitória
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