Sei que, perante tanto problema sério, se falar que estou decepcionada vai soar a fome de barriga cheia. Acontece que. Quando, há mil anos, comprámos esta casa, que era escura, triste e sem vida, olhei para ela e vi-a como poderia ficar se a abríssemos ao sol, se lhe retirássemos aqueles móveis altos e escuros que a atrofiavam e se a rodeássemos de árvores.
E foi o que fizemos: o móvel enorme que cobria uma parede foi arrastado para a despensa e logo a sala se encheu de claridade. Aos poucos tudo foi ganhando a alegria e a luz que gosto de ter em casa.
Até que este ano meti na cabeça que era desta. Já chega. Quero paredes lisas, limpinhas. O meu filho dizendo que era um disparate, uma chatice, um trabalho enorme e uma sujeira, um dinheirão, sem qualquer justificação. Bem tentei explicar que a justificação é estética. Não gosto destas paredes. Agora que escrevo, olho em volta. São imperfeitas por natureza. O meu filho diz que contrate uma lavagem geral de paredes todos os anos. Mas lavar como? Só com escova. E na semana seguinte já uma teia há-de estar presa das suas rugosidades. O meu marido, nestas coisas, arranja soluções impossíveis. Pladur. Cobrem-se de pladur. Aborreci-me: qual pladur? Baixar o tecto? E encurtar a casa? E os painéis de azulejos?
Imaginei uma coisa simples: passar reboco ou lá o que é, alisar, estucar. Não estava a perceber tanta complicação.
Enquanto o ouvia fui percebendo que só há uma solução: esquecer. Ainda não vai ser desta. Há-de ficar assim para todo o sempre, pelo menos enquanto formos nós a tratar da casa.
Fico verdadeiramente desolada. Tinha imaginado a casa toda de novo, as paredes em acetinado, meio-brilho, a luz suave reflectida. Agora nada reflecte.
Tirando isso.
Trabalhei até às seis e picos. Fui, então, buscar areia lá abaixo. Sobrou de algum arranjo e os homens fizeram um monte lá em baixo. Fui com o carrinho buscar. Tinha trazido as suculentas para plantar no chão e nos canteiros que estavam sem nada que se aproveitasse. Com um sacho, cavei, abri buracos. Entretanto, deu-me o calor. Despi a camisa e fiquei apenas com um top fininho de alcinhas e nada por baixo. Nada por baixo, quer dizer: na parte de baixo tinha umas calças fininhas, na parte de cima é que estava à verão a sério. E estava frio. Mas a cavar, a carregar areia à pazada, a vir ladeira acima a puxar o carrinho, deu-me vontade de tirar tudo e eu, já sabem, sou como a outra: tiro tudo em qualquer lugar.
Será? Será que pensam? Será que sou?
Não faço ideia. Só sei é que me custa resignar-me com esta porcaria de paredes, custa mesmo, ao fim deste anos todos a julgar que era desta e... afinal, acho que ainda não. O que me vale é que, para onde quer que olhe, só me ocorrem oportunidades de melhoria. Ando de fita métrica em punho, mudo as coisas de sítio, equaciono mudanças maiores. E é disso que eu gosto: de mudanças.
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Antes de ir dormir na cama (porque, enquanto escrevo, estou a dormir, aqui, no sofá), partilho a casa de Gilberto Gil e Flora Gil e, abaixo, a casa de uma das filhas, Bela Gil. As casas, pela amostra, são um caso de amor para o clã Gil.
Para mim, também.
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