quarta-feira, setembro 30, 2020

Um dia normal com reuniões, pássaros, um gato e um coelho.
E, ainda, dicas de quem não se acha invisível e segredos de quem vive para além dos 100

 



Desde que viu o meu interesse pelas avozinhas, o meu amigo algoritmo descobriu nova fileira para despertar a minha curiosidade. Agora, no meio da dança, da música, de cenas de humor, sugere-me vídeos com casos de longevidade. E eu, aqui chegada, vou espreitar, claro. 

A vida é um mistério e a forma serena de encarar a sua finitude é ainda, para mim, também um mistério.

Conhecer casos de vida em que as pessoas vão por aí afora como se as suas células não conhecessem os seus limites é para mim sempre algum motivo de curiosidade.

Depois conto-as à minha mãe, reforço a ideia de como as pessoas manterem-se activas, motivadas, com projectos, é vital.

Mas, antes de chegar ao Youtube tive um longo dia. Comecei o meu turno da noite já bem tarde. Acabei a jornada já tarde, depois fomos caminhar, depois ao supermercado, depois aquela faena protocolar de lavar umas coisas, outras mudá-las de embalagem, depois, fazer um jantar rápido, depois jantar, depois falar com mãe e filho (com a filha tinha falado enquanto caminhava), depois arrumar umas coisas... e, às quinhentas, finalmente, aninhar-me no meu sofá macio e confortável.

Antes disso, o meu dia foi como sempre são os meus dias de trabalho: reuniões, telefonemas, desafios que me são lançados e que inevitavelmente se traduzem em mais trabalho -- mesmo que, em alguns casos, trabalho para me ver livre deles -- mais documentos para despachar. Corre depressa o meu tempo. Ao marcar reuniões, vejo a agenda e assusta-me um bocado ver como as semanas vão ficando para trás. Daqui a nada, setembro terá ido. 


Pelo meio, à hora de almoço, varro o pequeno terraço junto à cozinha, estendo alguma roupa, passeio pelo jardim, falo com a minha mãe, rego algumas flores. Hoje fui ao canteiro grande junto à horta buscar umas pequenas estacas de alfazema e espetei-as no canteiro que está debaixo de uma das janelas da sala. A ver se pegam. Imagino abrir a janela e sentir que o cheirinho bom do alfazema entra em casa. Também descobri, num dos casinhotos atrás do muro, uns suportes metálicos, daqueles em que se põem os vasos que se querem elevados. Como comprei uma planta que parece um feto mas não é, vai ficar ali mesmo bem. Também comprámos uma espécie de bonsai de rua. E também para essa taça encontrei um pequeno suporte, mais baixo. Tudo sempre mesmo a calhar para as coisas que imagino. Tudo isto me enche de alegria. Parece magia: o sonho que sonhei tantas vezes, eu a entrar numa casa e ir descobrindo coisas que me agradam, peças, coisas que não percebo como ali estão, coisas que posso tomar como minhas.

Quando estou toda a manhã em casa, fechada, a trabalhar, e apenas à hora de almoço vou à rua, os pássaros levantam-se num frémito ruidoso e apressado que me provoca arrepios à mistura com um pouco de susto. É uma agitação que me enche sempre de uma emoção que não sei explicar bem. 

Também aconteceu uma coisa: andava eu a fotografar as casinhas de pássaros que estão nas árvores quando senti aquela impressão estranha que, por vezes, in heaven, também sinto: a de que estou a ser observada. Como estava sozinha em casa, essa sensação vem acompanhada de um certo receio. Olhei em volta, devagar. Até que o vi: o gato preto. Empoleirado no muro, observando-me, atento e silencioso. O que pensará ele? Rondei-o de longe, fotografei-o. De vez em quando ia fazendo bchhhh, bchhhh. Ele imóvel, fixando-me. Quando arrisquei chegar-me mais perto, levantou-se e esgueirou-se devagar para o lado de fora. Quando voltei a casa estava toda contente: tanta vida, passarada, um gatinho. Quando a sopa estava quase pronta, fui à horta apanhar uns pés de hortelã e... à minha frente saltou um coelhinho que desatou a correr, aos saltinhos. Pensei que estava a ser um dia de sorte. E foi mesmo: as reuniões da tarde correram bem e toda a gente acabou com sorriso, motivada e a acreditar no peixe que eu ando a vender.

Podemos sempre ter mais do que temos: mais amigos, mais abraços, lingotes de ouro, iates, carros de corrida, coutadas privadas -- coisas assim. Mas podemos também estar agradecidos com o que temos. Talvez quem pouco tem dificilmente sinta isto. Acredito que os que não encontram o seu rumo nem o seu bocado de terra nem o seu refúgio nem o colo e amor de quem os ame acima de tudo e que se sentem perdidos, abandonados e, talvez, sem qualquer perspectiva não consigam sentir-se agradecidos. Mas há sempre um caminho que vai ao lugar certo e, em qualquer circunstância há sempre um ponto de luz onde nos guiar, há sempre uma palavra que surge no momento em que precisamos dela.

E, portanto, talvez seja essa a sabedoria que mantém a vida naqueles que ignoram a lei da vida e avançam pelos cento e tal com um sorriso, com um motivo para viver.

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Mas passemos ao que interessa. 

A vossa atenção, por favor.






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As pinturas são de Artemisia Gentileschi (1593 – c. 1656) 

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E, em especial a si, desejo um dia feliz. 
Saúde, sorte, coragem. E amor.

1 comentário:

Estevão disse...

Não parece haver grandes condições para um jeco. Em tempos estive para sugerir que, se houvesse por lá um lago com água renovável, uns patinhos vinham mesmo a calhar. Não dão grande trabalho e até acabam por ser úteis ao jardim. Agora, haver um coelhinho, fascinou-me.
Certamente que haverá mais coelhinhos para além desse que se deixou ver. Com aquela cena do “vai ser tão bom não foi”, devem ser bué deles, bué de luras ..