Sou urbana. Sempre vivi na cidade.
As minhas avós viviam no mesmo bairro, em casas com quintais, e todos os vizinhos viviam em casas assim. Se eu brincava com outros miúdos, brincava nos quintais, praticamente como se estivesse no campo. Sempre me senti bicho de rua, galinha do campo, cabrita dos montes. Mesmo se o tempo não estava para arejamentos, eu gostava da rua. Ou da quase rua. Já contei muitas vezes que o avô do meu melhor amigo construíu uma pequena cabana no fundo do quintal e, por isso, passei muitas horas desses meu inocentes anos a conversar nessa cabana. Os meus pais também vivem num bairro de moradias e, portanto, também aí, eu brincava nos quintais, quer no da nossa casa quer no das amigas vizinhas. Ou com uma das minhas primas, mais nova que eu e que gostava de ser a minha médica e a médica das minhas bonecas. Claro que se tornou médica. Mesmo se chovia, havia (e há) alpendres, 'casinhas' em que nos abrigávamos.
Entre as casas das minhas avós e as escolas, a infantil e a primária, havia uma encosta com ar campestre. Havia papoilas, estevas, mas também sardinheiras, malvas e couves que alguém lá plantara. Aí havia um carreiro pelo qual eu adorava descer a correr. Usava uma mala 'às costas' onde levava os livros e cadernos e cabelo comprido que usava solto ou em tranças e recordo com uma saudade feliz a sensação de correr desarvoradamente, como se fosse incapaz de parar, tanta a velocidade que adquiria, o cabelo a voar, a mala nas costas aos saltos, quase a despenhar-me. Muitas vezes caía mesmo. Ainda hoje tenho nos joelhos as marcas das muitas quedas que ali dei. Mas não me deixava intimidar. Correr, encosta abaixo, destravada, era dos prazeres a que, por essas alturas, não conseguia furtar-me. No regresso, já não subia a encosta pelo carreiro, vinha com os meus amigos pela estradinha. Mas a estradinha era ladeada por árvores e, para mim, era como se viesse pelo meio de uma floresta.
Talvez por ter guardado essas memórias tão boas, sempre tive vontade de ter uma casa no campo. Mas a vida de ambos era, e é, outra. Começámos por viver num estúdio no alto de uma altíssima torre no meio da cidade. Era um quarto com uma varanda e uma sala grande também com uma varanda. E uma casa de banho, claro. Era tão alta que as pessoas na rua, vistas lá de cima, pareciam formigas. Tinha uma vista espectacular. Depois mudámos para uma casa maior mas de onde não víamos o mundo a toda a volta. Sentia muita falta da vista. Depois os livros deixaram de caber e mudámos para esta que é bem maior, mais alta e com uma vista também belíssima. Pelo meio, depois de muito procurarmos, descobrimos aquela casa diferente no meio de um pedaço de terra coberta por pedras e mato rasteiro. E o prazer do campo, pedra a pedra, flor a flor, árvore a árvore, foi sendo cultivado até que hoje é o petit bois com que durante anos sonhei.
Mas, tal como o meu pai alvitrou ao ver aquele terreno pedregoso, dali não conseguimos tirar batatas. Há um ano, o meu filho apareceu lá com rede, estacas, espinafres, alfaces, cenouras, tomates, beterrabas, salsa, morangos. Tudo pequenino para plantar. Fez uma horta. Tudo nasceu. Comemos várias coisas de lá.
Mas a natureza devorou a horta. Não estamos lá durante a semana para tentar suster a sua força desabalada e, ao fim de semana, o tempo é curto. Tudo cresce sem freio, os mais fortes devoram os mais vulneráveis.
Mas a natureza devorou a horta. Não estamos lá durante a semana para tentar suster a sua força desabalada e, ao fim de semana, o tempo é curto. Tudo cresce sem freio, os mais fortes devoram os mais vulneráveis.
A minha vida inteira tem sido passada em ambiente empresarial, fechada em escritórios, em torres de marfim, assépticas, climatizadas, na cidade mais cidade, em filas de trânsito -- ou seja, longe da limpidez e dos perfumes e dos sons bons do campo. Saio de casa cedo, chego tarde, não me sobra tempo para nada, nem para ir procurar um jardim.
Hoje, à hora de almoço, num semáforo, porque não acelerei para passar antes de virar encarnado, um anormal ultrapassou-me a grande velocidade, já no encarnado, quase atropelando uma senhora na passadeira. Teve que parar, meio atravessado. A senhora pôs-se a protestar com ele e, então, o estúpido saíu do carro e veio na minha direcção a gesticular: 'Tás a olhar? Não passaste porquê?! Tavas à espera de què?! Tás a olhar? Tás a pedir é uma lambada nas trombas! Tás a olhar? Tás a pedir, tás, tás'. Eu estava a ouvir a Antena 2, tinha a janela aberta. Continuei absolutamente tranquila. Estava a olhar para ele pois, com aquele número ali à minha frente, seria impossível não olhar. Mas era como se não tivesse a ver comigo. Se me medissem as pulsações, de certeza que não se detectava alteração. Apenas quando ele avançou, ameaçador, é que pensei: 'Será que devo fechar a janela?'. Mas não fechei. Entretanto, ficou verde, os carros começaram a apitar e o estúpido meteu-se no carro e disparou, nos cascos. E eu prossegui, para mais uma reunião. Parece que já estou imune a estas coisas.
E, no entanto, quando tenho uns minutos para mim, o que gosto de me pôr a ver vídeos da vida no campo ou da vida tranquila...
Penso que gostava de me pôr a experimentar fazer compotas diferentes, frutos com especiarias, com licores. Depois penso que coisas doces já não estão com nada e que o melhor é que nunca me dê para isso. Mas gostava de tentar. Ou bombons com coisas boas lá dentro. Ou de, finalmente, aprender a costurar a sério. Também gostava de ter tempo para organizar papéis que estão um bocado ao monte, organizar as fotografias mais recentes. Ou escrever. Gostava tanto de ter tempo para escrever.
Finalmente, consegui resolver a questão das fotografias e, apesar do dia tão recheado e das reuniões e de ter que andar sempre a correr, vim para casa descansada. Amanhã não poderei ir buscá-las pois a saga dos almoços natalícios continua. Mas o peso de chegar ao Natal e não ter fotografias para oferecer já não tenho.
Para festejar esse alívo, mal acabei de jantar e me acomodei, o meu corpo desligou. Adormeci. Pouca dura mas boa. A seguir, pus-me a ver os vídeos que mais abaixo vos mostro.
Também andei à procura de informação sobre a permacultura. Pressinto que um dia o vou tentar.
Mas se é tema que me desperta mesmo interesse a verdade é que, estando eu à espera de informação objectiva, factual, pão pão queijo queijo, me impacienta um bocado ver aquelas pessoas muito alternativas, o cabelo como se não fosse lavado há anos, em rastas, e todos muito pendões, dentro de roupa demasiado larga e mal jeitosa, todos muito zen, muito fora, muita filosofia transcendental. Prefiro a ruralidade básica, os instintos primários, a pouca conversa. Quando a coisa vira religião, espírito de seita, quando a coisa vira moda, culto, matéria para formação com a malta sentada no chão, tudo muito peace and love, eu desligo, salto fora. Não é para mim.
Mas se é tema que me desperta mesmo interesse a verdade é que, estando eu à espera de informação objectiva, factual, pão pão queijo queijo, me impacienta um bocado ver aquelas pessoas muito alternativas, o cabelo como se não fosse lavado há anos, em rastas, e todos muito pendões, dentro de roupa demasiado larga e mal jeitosa, todos muito zen, muito fora, muita filosofia transcendental. Prefiro a ruralidade básica, os instintos primários, a pouca conversa. Quando a coisa vira religião, espírito de seita, quando a coisa vira moda, culto, matéria para formação com a malta sentada no chão, tudo muito peace and love, eu desligo, salto fora. Não é para mim.
Nunca me ocorreu sentir-me desenquadrada. Pelo contrário. Por exemplo, sinto um forte sentimento de pertença ao pedaço de terra a que aqui, no blog, chamo heaven. É como se tivesse nascido de lá e, muito naturalmente, quando um dia o meu corpo se diluir, me for misturar com aquelas árvores e musgos, e com o canto dos pássaros. Sinto-me também muito bem nesta casa ampla onde agora estou, cheia de livros, e de cujas janelas vejo o rio. Tal como, quando estou a trabalhar, me sinto integrada: sou uma daquelas e daqueles que, quando vistos de fora, me parecem gente com que pouco tenho a ver. No entanto, quando lá estou, eu sou uma daquelas, sem tirar nem pôr. Quando saio de lá, sou outra, sou esta.
E tenho estado a escrever e, agora que parei para escolher as fotografias (feitas in heaven, no sábado -- e, sim, o medronheiro está cheiinho de doces medronhos e, sim, ainda há cogumelos all over), percebo que isto está sem rei nem roque, uma coisa à toa, um texto sem ruas, sem direcções, tudo a eito. Na volta, não cheguei bem a acordar. Mas a esta hora (duas da manhã) já não dá para tentar compor. Espero que não fiquem almareados com tanta flutuação, assunto para aqui, frase para acolá.
Passo, portanto, aos vídeos que estive a ver de gosto. Espero que também gostem.
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Passo, portanto, aos vídeos que estive a ver de gosto. Espero que também gostem.
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Se o texto tiver um número anormal de gralhas, por favor relevem, está bem?
Mas, se encontrarem alguma cabeluda, por favor avisem-me, sim?
Se o texto tiver um número anormal de gralhas, por favor relevem, está bem?
Mas, se encontrarem alguma cabeluda, por favor avisem-me, sim?
E a todos desejo uma bela quarta-feira.
3 comentários:
Esse episódio com o condutor foi em campolide?
Abraço,
JV
Olá JV
Alcântara. Porquê? Ia sendo atropelada em Campolide por um estafermo deste calibre?
Abraço.
Eu não, mas já tenho presenciado situações de aperto. A rua nova de campolide é propícia a aceleranços de último segundo. ;)
Abraço,
JV
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