sexta-feira, agosto 23, 2019

E o cristal vai crescendo, com as memórias que acodem, com as notícias que não tinhamos tido, com a descoberta de vergonhas escondidas...

Quiçá um mundo onde humanos deixarão de existir e dar lugar a outros melhores que nós.

O conhecimento é cumulativo e ferramentas analíticas do passado servem muitas vezes no presente


[A palavra a três Leitores de Um Jeito Manso]


Hoje é daqueles dias em que os assuntos se atropelam, fervilham. Mas são todos daqueles em que tenho que ter largueza mental e disponibilidade, toda eu entregue a cada um. Só que, como são vários, teria que ter engenho e arte para os cerzir de forma natural, sem costuras e pontas à vista, para não estar a escrever sobre um e, desconcentrada, a pensar noutro.

Mas não é hoje o dia até porque os comentários entretanto recebidos meteram o pé à porta, querem entrar, passar à frente. E têm razão. Não desfazendo, bons demais para ficarem na cave.

Por isso, agradecendo cada um dos comentários de ontem, permitam que, em vez de responder e agradecer a cada um em particular, opte antes por repescar três para os quais peço a vossa atenção.

O que aqui transcrevo em primeiro lugar emocionou-me muito. Se isto se tem passado ao vivo, seria daquelas vezes em que, depois de ouvir palavras tão tocantes, eu ficaria calada, a olhar em silêncio para quem as proferiu, sem saber o que dizer. Talvez, para disfarçar, me limitasse a dizer que sim, um Museu da Liberdade. E ficaria a pensar no que se esconde por detrás de cada palavra dita, sem saber como estender a mão até elas.

Depois o segundo. Tão desanimado, tão lúcido, palavras de uma clareza tão cristalina, tão cortante. O que diria eu? Tenderia talvez a falar em esperança, sabendo eu que a esperança, nestes tempos, é luz distante, difusa, dir-se-ia que morrente. Em esforço, talvez dissesse que não podemos baixar os braços, fechar a porta à esperança. Em esforço, quase descrente.

E o terceiro também quase descrente mas disposto a pegar nos tijolos, na pá de pedreiro, começar a construir caminhos, disposto a puxar velhos e novos para a roda, para que, juntos, cantando e dançando, de mãos dadas, ergam um novo edifício moral onde caibam todos.

Não me perguntem porque escolhi pinturas de Sidney Nolan, Sir Sidney Robert Nolan, um australiano que viveu entre 1917 e 1992, ou Daiqing Tana, nascida em 1983, para nos acompanhar com a sua voz que canta palavras que não compreendo. Não me perguntem porque não saberia o que responder.




A palavra a Abraham Chevrolet


Com mais tempo agora, quero contar-lhe o seguinte: preso pela PIDE ainda na Universidade e logo obrigado a fazer a Guerra Colonial, como combatente, quase 30 meses no mato angolano numa guerra cruenta...

Difícil não ter uma firme posição tomada. Posição que cristaliza em camadas sucessivas de desprezo... um núcleo original de desprezo, recoberto segundo as regras estritas do sistema de cristalização. E o cristal vai crescendo, com as memórias que acodem, com as notícias que não tinhamos tido, com a descoberta de vergonhas escondidas...

Falar em Museu do ditador antes de se falar do Museu da Liberdade? Museu da Liberdade onde se demonstrassem todos os atentados que Ela sofreu!!!

Desprezo, desprezo,desprezo...

A vida trouxe-nos para um patamar claro e quase limpo. Temos que ser alegres, solidários e felizes...





A palavra a JV


Infelizmente, o problema não é Pardal. Nunca é Pardal. Chame-se Trump, Bolsonaro ou Mussolini... 


O mundo de hoje é um mundo cheio de oportunidades. Um mundo novo, de partilha imediata, de uber à mão de semear, de apartamento em Amesterdão à distância de um clique. É um mundo de onde será possível nascer uma civilização melhor, mais avançada, mais interligada. 

Quiçá um mundo onde humanos deixarão de existir e dar lugar a outros melhores que nós. 

Por enquanto... até esse mundo novo emergir, milhões, milhares de milhões de pessoas vão ficando para trás. 

Sem oportunidade de entrar no mundo onde as oportunidades surgem como os cogumelos que brotam em redor das árvores. Cada vez mais para trás. Sem voz e sem escape. 

Então outros, oportunistas de má índole, idiotas cujo mantra se limita a fazerem pela sua vidinha, usarão cada vez mais a vida desgraçada dos outros para se auto-promoveram na sua caminhada em crescendo de agigantamento da idiotice mascarada de ódio.




A palavra a Paulo Batista


Apesar de o meu discurso parecer ancorado no passado, não sou um saudosista de soluções engendradas em contextos históricos. 

No entanto, o conhecimento é cumulativo e ferramentas analíticas do passado servem muitas vezes no presente, ainda que com as devidas correções. A divisão da riqueza e do poder são elementos estruturais e quase invariantes, sendo nesses que urge atuar. As soluções não são fáceis e exatamente por se colocar tanta energia a destruir estruturas sociais, supostamente "do passado", ao invés de ir construindo soluções de futuro.

Eu percebo e aprecio a energia que os jovens podem imprimir à sociedade, mas os jovens, infelizmente, parecem cada vez mais tolhidos financeiramente, atomizados e avessos ao risco social. De qualquer forma discordo. Esta é uma responsabilidade intergeracional, até porque não podemos abandonar os mais velhos. E eles estão a ser abandonados em larga escala.

A melhor proteção para os mais desprotegidos é exatamente integrá-los neste processo de transformação imparável, trazendo-os para as decisões, para as reflexões. Isso implica capacitar as pessoas com os recursos básicos (e isso só o consegue fazer quem tem poder para tal...). 

E sim, passa também pela cultura: a este respeito, em Lisboa, sois uns priveligiados!

Um exemplo de um interessante laboratório de energia criativa intergeracional que merecia mais projecção? Isto, por exemplo: http://www.outfest.pt/



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Muito obrigada ao Abraham Chevrolet, à JV e ao Paulo Batista e a todos os que aqui vêm por bem e comentaram ontem e nos outros dias e a todos os que, não comentando, aí estão desse lado a fazer-me companhia. 

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E talvez queiram ainda descer um pouco mais para verem o presidente de um Parlamento civilizado, em plena sessão, a dar biberão ao bebé de um deputado. Imagens Ímpares.

4 comentários:

Anónimo disse...

Uma palavra de gratidão ao Abraham pelo testemunho. 30 meses nessa guerra maldita... Comovi-me quando li "Difícil não ter uma firme posição tomada." Como é óbvio. Mas dito assim, bate mais forte.
Um abraço,
JV

Anónimo disse...

Convém lembrar e registar que a intenção de criar um Museu dedicado ao Ditador Fascista Salazar é apadrinhado pelo Presidente da Câmara de Santa Comba Dão, que é do...Partido Socialista.
O que, até ao momento, não obteve qualquer comentário do PM António Costa, que prefere assobiar para o lado.
Que a Direita nada diga sobre o assunto, não nos deve surpreender. Que o PS se comporte como tal já é lamentável! Faz falta Mário Soares que seguramente erguria a sua voz contra semelhante e sinistra iniciativa. O que não é o caso de António Costa e do seu camarada de Santa Comba Dão.
a) Tiago Avelar

Pôr do Sol disse...

Sou CONTRA a construção de um museu onde se enalteça a figura de Salazar e com o nosso dinheiro.

Quanto ao C.I.do Estado Novo, são boas intenções de que o Inferno está cheio.

Contudo não se deve apagar 48 anos de má historia. Os nossos jovens nada sabem sobre esse período e a escola também não ensina.

Deverá existir sim uma casa onde se conte com fotos, filmes, depoimentos os horrores porque passaram tantos dos que queriam pão e não tinham, dos que trabalhavam de sol a sol nas piores condições, dos que foram mandados de cabeça feita para guerras que não entendiam para matar sem dó nem piedade.Onde se explique o que são ditaduras.

Nesta fase em que muitos tudo fazem para acabar com a liberdade que tanto custou a conquistar, é importante mostrar o que foram os anos do "orgulhosamente sós", da censura à informação, ao avanço ao sonho.

O exemplo dos trump, bolsonaros e outros loucos não lhes chega é necessário mostrar-lhes aqui que hitlers tambem surgiram de mansinho.

Desculpe sei que não me fiz entender como gostaria mas a desilusão deste mundo, tolhe-me o vocabulario e os nossos jovens preocupam-me muito.

Um beijinho e que tenha um bom fim de semana.

Paulo Batista disse...

Sinceramente nem sei se precisamos de mais museus (talvez o de Peniche, pelo simbolismo do espaço, seja preferível transformá-lo num núcleo museológico).
De resto até temos bons museus sobre o tema: o museu do aljube (Lisboa)e o do neorealismo (corrente literária indissociável da denúncia das condições sociais miseráveis impostas pela ditadura). Mais do que museus, é preciso investir num programa museológico e educativo contínuo, nas estruturas já existentes (incluindo nos múltiplos museus, centros culturais e afins que polvilham o país).
A nossa política museológica é muito pobre. Temos de abandonar está lógica do museu de pedra, para o museu vivo. Infelizmente, quando se fala nisto é na perspectiva de colocar os museus ao serviço da casa da moeda. E vale tudo para fazer dinheiro mesmo na mente dos democratas progressistas ditos "de esquerda".