sexta-feira, agosto 09, 2019

Confissões. Meias confissões. Algumas omissões.


No seguimento de Logo quando o cerco estava a apertar-se...
que veio a seguir a Manel contrata Clara que, por sua vez, 
vinha no seguimento de Como definir o que não pode ser dito?
que já vinha se seguia a A oradora-surpresa



Persisto. Tenho esperança de que hei-de conseguir chegar a bom porto sem ser indiscreta ou inconveniente. Tenho esperança que, ao menos, isto não seja aborrecido de ler. Mas não será?

Que história que não é história é esta? Posso falar de amigos e colegas e dos abismos que atravessaram sem ser desleal? Poderão vocês perdoar-me ao perceberem que talvez eu seja um bocadinho perigosa?

Enfim.

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O Manel sofreu um enfarte. Foi levado numa ambulância, esteve mal. Não podia receber visitas. Só a mulher, os filhos, os irmãos, mas apenas um de cada vez e por pouco tempo.

A secretária quase adoeceu, tanta a preocupação, tanto o abandono que sentia, sem saber o que seria dele e o que seria dela sem ele. Todos os dias ela falava com a mulher, ia acompanhando a evolução do seu estado de saúde e era através dela que nós todos, na empresa, íamos sabendo.

Todos, incluindo a Clara. Nesse fatídico dia, sabendo que ela ia lá, liguei-lhe logo. Ficou preocupada, como é natural. E talvez mais do que preocupada: arreliada. Sei como é: quando a equação está prestes a ser resolvida, nada como entrar areia na engrenagem fazendo atrasar a descoberta da incógnita para nos deixar na maior das frustrações.

Uns dias depois, ligou-me. Disse-me que tinha estado no hospital.
Fiquei admirada. 'Porquê? Como?' 
Disse-me que tinha os seus contactos (e sorriu, claro) e que precisava mesmo de perceber se ele estava neutralizado para todo o sempre ou se era coisa pouca. Fiquei chocada. Riu-se, fingiu que aquilo tinha sido uma piada. Humor noir. Para desanuviar, disse-me que ele ia ser operado mas isso já eu sabia e que não está grande coisa mas que vai ficar bem.
'Talvez tenha que abrandar o ritmo, voar menos, pelo menos nos próximos tempos'. Falava e depois ficava silenciosa. Parecia que estava hesitante, como se quisesse dizer alguma coisa, alguma coisa que, ao mesmo tempo, queria calar.
Deixei. Ela ficava em silêncio, e eu em silêncio ficava. Depois ela dizia outra coisa e calava-se e eu deixava-a ficar assim.
Mas pode alguém ser quem não é? Ao fim de algum tempo, faltou-me a paciência. 'Olha, desembucha. O que é?'. 
Ficou calada. Insisti: 'Como se eu não te conhecesse. Tens alguma coisa aí a fervilhar. Diz.' Mas ela continuou calada. Apenas a ouvia respirar. Tentei facilitar-lhe a vida: 'Já descobriste o que se passa e agora, com esta, estás sem saber o que fazer'. 
Ela respirou fundo: 'Sim. Mais ou menos isso. Ou melhor, também isso'. 
E eu, já a ficar impaciente: 'E não queres partilhar?'-
[Abro um parêntesis: para falarmos sobre assuntos menos badaláveis usamos um telemóvel especial, nada de smartphones, coisa mesmo da primeiríssima geração.]
Ela continuou a hesitar. Depois disse: 'Acabarias por saber. Conto-te amanhã. Vou ver uma exposição à hora de almoço, aquela de que te falei no outro dia. Mas conto-te outra coisa. Acabarias também por saber. Encontrei-me outras vezes com ele. Fora do escritório. Não muitas. Duas ou três. Talvez quatro. E falávamos. Quero dizer, falávamos para além disso. Ele ligava-me, falávamos durante muito tempo. Ultimamente, quase todos os dias.'
Foi a minha vez de ficar calada. Não era possível. O que é que ela me estava a dizer? Ridículo. Transmiti-lhe isso mesmo: 'Não estou a ouvir bem. Não é possível. Estás doida? Mas que estupidez... Nem estou a conhecer-te. Palavra de honra... É ridículo, Clara. Ridículo'.
Ela ficou em silêncio. Depois disse: 'Escuta. Não fiques a pensar que é aquilo do boy meets girl. Não. Percebe: ele é muito escorregadio. E é muito inteligente. Sabe dar a volta. Um desafio, não sei se estás a ver. Não me dar por vencida. Tentar, tentar. Para ele não desconfiar. Devagarinho, na boa. Aceitar o ritmo dele, jogar o jogo dele. Mas sabendo que, no fim, a última jogada é a minha. E ele é um conversador com piada. Acredita. Um desafio.'
E eu: 'Desculpa lá. Se sabias o que tinha acontecido, porque não reportaste, e fim de conversa? Sabes a urgência, Clara, sabes bem. E andaste a encanar... a brincar aos namorados...? Nem estou a acreditar. Porra, que estupidez, Clara.'
'Não. Escuta. Já não ia acontecer mais nada, acho que ele até se portou bem em toda a história em que se viu metido. Mas eu tinha que ter a certeza. Não ia dar o caso por encerrado sem ter a certeza. E, por acaso, até estabelecemos alguns laços. Amizade. Acontece. Nada de mais. Não faças filmes. Não empoles.' E ficou calada e eu calada fiquei. Depois concluiu: 'Que queres que te diga?'
'Olha, não quero nada. Nem digo mais nada. Amanhã falamos melhor. Caraças, Clara, caraças.'
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E talvez amanhã vos conte o que ela me contou no nosso encontro acidental na exposição.

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