Cansa-me o que é mais do mesmo. Pelo contrário, atrai-me a diferença. Seduz-me a imprevisibilidade. A multiplicidade, a mim, encanta-me. Perceber que pouco percebo, descansa-me o espírito. Andar como uma criança por entre um mundo de desconhecimento atrai-me. Se eu fosse de me exprimir através de lugares comuns (e acho que não sou) até poderia acrescentar que a diversidade é a minha praia, em especial, se for inesperada.
Que o sol se descubra, em brilho e festim, no meio de um céu cinzento, para logo desaparecer, fazendo crer que não aconteceu, é para mim um milagre que me empolga. Que uma palavra silenciosa se desprenda de um coração para vir pousar junto ao meu, parece-me coisa dos deuses. Que uma música me transporte pelos céus como se eu fosse dentro de nuvens feitas de algodão em rama, parece-me magia. Que uma flor surja, rosada e límpida, por entre um chão de folhas mortas, parece-me um presente que nada fiz para merecer. Andar pelo campo, só eu, em passos de lã, e ouvir os pássaros, cantando de árvore para árvore, místicos, seres de um outro mundo, parece-me bênção, quase predestinação.
Não sei se um dia conseguirei ordenar todas as peças por forma a fazerem sentido. Espero que não. Se isso acontecesse seria como andar na formatura, sabendo os passos a dar, todos iguais, obedecendo a uma voz de comando, sem uma gota de surpresa a perfumar os meus sentidos.
Prefiro continuar assim, feita de muitas peças coloridas colocadas à toa, como uma casa de lego feita por uma criança, e saber que amanhã a casa pode estar diferente, as peças amarelas misturadas com as verdes e com as encarnadas, as janelas no lugar das portas, a chaminé a parecer uma torre que aterrou no telhado, e que no outro dia a casa vai parecer um lago com árvores dentro e pássaros no jardim e que afinal não são pássaros, são cavalos azuis. Assim é que me sinto bem.
Ouço música enquanto escrevo. Escolho ao acaso. Agora tinha escolhido uma, uma fantasia árabe, ficou a tocar, depois passou para outra que reconheci. Maravilhada fui espreitar: quem a pôs aqui a tocar para mim? Não sei mas acredito que uma mão que me quer tocar, a pôs a tocar para mim. Já a coloquei agora aqui, lá em cima, para que a ouçam também. Já mil vezes aqui a coloquei, em diversas interpretações, mas mil outras vezes ela me aparece, tentadora, um espelho em frente de um espelho, a alma translúcida de alguém que talvez seja eu reflectida num espelho que descobre alguém que não sou eu mas que está presente em mim como eu.
Prefiro continuar assim, feita de muitas peças coloridas colocadas à toa, como uma casa de lego feita por uma criança, e saber que amanhã a casa pode estar diferente, as peças amarelas misturadas com as verdes e com as encarnadas, as janelas no lugar das portas, a chaminé a parecer uma torre que aterrou no telhado, e que no outro dia a casa vai parecer um lago com árvores dentro e pássaros no jardim e que afinal não são pássaros, são cavalos azuis. Assim é que me sinto bem.
Ouço música enquanto escrevo. Escolho ao acaso. Agora tinha escolhido uma, uma fantasia árabe, ficou a tocar, depois passou para outra que reconheci. Maravilhada fui espreitar: quem a pôs aqui a tocar para mim? Não sei mas acredito que uma mão que me quer tocar, a pôs a tocar para mim. Já a coloquei agora aqui, lá em cima, para que a ouçam também. Já mil vezes aqui a coloquei, em diversas interpretações, mas mil outras vezes ela me aparece, tentadora, um espelho em frente de um espelho, a alma translúcida de alguém que talvez seja eu reflectida num espelho que descobre alguém que não sou eu mas que está presente em mim como eu.
E se nada disto tem explicação, nem o que escrevo, nem o que penso ou faço, então está certo, é mesmo assim, sem explicação.
Fui buscar imagens para intercalar no texto sem saber o que procurava. Escolhi ao acaso, não sei se fazem sentido junto a estas palavras desordenadas. Sinto que sim, parece que trazem alguma ordem a este caos que me seduz e que me acolhe. Mas também não sei explicar porquê, nem tento.
Olho à minha volta nesta minha mesa redonda onde escrevo e onde se aninham os livros que gosto de ter por perto: um livro sobre bibliotecas, livros de poesia, aqui mesmo ao meu lado 'Amar a vida inteira' de Casimiro de Brito e 'Últimos poemas de amor' de Paul Éluard, livros sobre pintura e entrevistas a pintores, também a um arquitecto, e 'Cartas de Amor' de Pablo Neruda, e um livro vibrante sobre Havana com as suas cores quentes e alegres e gente sorridente, e também um daqueles livros loucos, que me delicia, do Beckett. E 'Seis propostas para o próximo milénio' de Italo Calvino. E outros. Uma miscelânea que parece que me procura ou que se forma, por si só, à minha volta.
E tenho também aqui verniz carmim, estive a pintar as unhas, e um CD, ofereceram-me pelo natal, muito bom, e uma concha que trouxe de Lagos, adoro Lagos, parece que uma parte de mim tem sempre vontade de para lá ir, e agora acabo de descobrir um saquinho de tâmaras (como veio isto aqui parar? - é certo que gosto imenso de tâmaras mas não me lembro de as trazer para aqui). Ao centro da mesa está uma bandeja que tem uns pequenos pés. Está cheia de coisas: as rodas de um carrinho, um ramo pequeno com bolinhas encarnadas, deve ter-se desprendido de um enfeite de natal, uma caneta cor-de-laranja, uma lupa, um lápis que escreve palavras macias, e mais coisas. Na parte de baixo da bandeja mandei gravar um poema de Sophia:
És tu a Primavera que eu esperava,
A vida multiplicada e brilhante,
Em que é pleno e perfeito cada instante!
Às vezes penso que um dia vou deixar de andar por cá. Se eu estiver consciente quando isso acontecer, penso que estarei serena, como quem já conheceu e desfrutou bem esta vida e está pronto para partir para outra. Quando tive um acidente violento que destruiu o carro, tive, na fracção de segundos em que aconteceu, a consciência de que poderia estar a viver os meus últimos instantes. E não me assustei. Estava num carro sem travões, a descer por uma descida que ia ter a uma rotunda cheia de camiões, era mais que certo que me ia desfazer contra um deles, e não senti medo. Depois, não sei como tive discernimento para isso, para evitar bater nos carros que circulavam, resolvi subir para o centro da rotunda, vi o carro a avançar contra uma enorme peça metálica, pensei que a peça ia entrar pelo vidro e talvez degolar-me. E não me assustei. Teria morrido na maior das tranquilidades. Pensei que nem tinha tempo para pensar nos meus filhos. Já o contei aqui: os airbags abriram-se, encheram o carro de fumo branco, o carro ficou meio no ar, de lado, espatifado, choquei com uma árvore, que ficou destruída, e choquei com aquela enorme peça. A custo, dada a posição do carro, saí dele, admirada por estar viva. As pessoas saíram dos carros, assustadas, diziam para eu fugir porque o carro podia explodir, pensavam que o fumo era o carro a arder. Eu estava calma. Não fiquei ferida. Telefonei, vieram buscar-me, queriam levar-me ao hospital, não quis, sabia que estava bem. Fui trabalhar como se nada se tivesse passado. O seguro declarou perda total para o carro.
Penso nisto, às vezes: na minha tranquilidade perante uma situação da qual, racionalmente, pensei que talvez resultasse a minha morte. Mas não pensei assim: 'a minha morte' ou 'vou morrer'. Pensei apenas: 'se calhar estou a viver os meus últimos instantes de vida'. E pensei isso com uma paz assombrosa. Parece estranho mas foi assim que aconteceu.
Não sou católica, não sou sequer crente, pelo menos segundo os ditames da religião católica. Mas parece que sinto que vivi antes, como se trouxesse em mim memórias de vidas que não vivi. Ou que vivi. E parece que sinto que viverei mesmo depois de ter deixado esta vida. Talvez viva apenas na memória dos que me amaram. Ou viva no corpo de uma gaivota. Mas isso não me interessa.
O que me interessa é esta aventura, é este prazer em juntar palavras, em descobrir cores, em deixar-me embalar por acordes, é deixar-me amar, é amar, é ser meio louca, é dizer coisas que não fazem sentido, é sorrir, é ver o sorriso no olhar de quem me quer bem, é saber que mais logo, se calhar, vou ser o oposto disto, e depois outra vez diferente -- a vida caleidoscópica e irrepetível e eu também incompreensível, quase inexistente na minha colorida, ilógica e indescritível multiplicidade (ou unidade?).
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As pinturas, por ordem descendente são de Balthus, Guilherme Parente, Júlio Resende, Chagall, Matisse, Gauguin.
Spiegel im Spiegel de Arvo Pärt é interpretado por Leonhard Roczek no violoncelo e Herbert Schuch no piano.
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Sobre o debate Paulo de Morais e o Zelig da campanha presidencial, Marcelo de seu nome, é descer até ao post seguinte, por favor.
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