Música, por favor
I'm the captain of my soul - Rita Redshoes
Ana, continuava, pois, na sua incansável actividade diária. Um dia perguntou onde é que havia um carpinteiro competente. Lá foi.
Era uma pequena carpintaria, um homem alto e magro, altivo, uma bela voz grave, dedos amarelos de tabaco. Ana mostrou-lhe os desenhos de estantes, de mesas, de bancos. O homem olhava com atenção. Não estava à espera duma encomenda assim, duma mulher assim, faltavam-lhe as palavras. Mas depois fez perguntas, deu sugestões, animou-se, ficou à vontade. Ana gostou. Então, pediu-lhe para ver a carpintaria. O homem levou-a, desculpando-se, isto está assim porque não tenho muito espaço para arrumar as coisas, estou aqui com um trabalho que me obriga a ter aqui tudo, mas Ana olhava com encantamento a bancada de trabalho, a estante com as ferramentas, alguns móveis antigos que estavam a ser reparados. Perguntou-lhe quando é que os móveis começariam a estar prontos. O carpinteiro disse que logo que acabasse o que tinha em mãos pegava no trabalho, talvez dentro de um mês e tal pudesse começar a entregar algumas coisas. Ana disse que estava muito bem. Quando ia a despedir-se, o homem perguntou: 'Não quer que lhe faça um orçamento?'. Ana respondeu: 'Não é preciso, pago o material e o seu trabalho, acredito que não me vai enganar' e sorriu. O homem altivo sorriu também.
Ana ia, portanto, começar a arranjar o rés-do-chão.
Uma vez, quando Ana ia sair, apareceu-lhe o dono da residencial onde tinha ficado nas primeiras semanas acompanhado da mulher, queriam falar com ela. Ana ficou admirada. Atrapalhados, a senhora desculpe mas ouvimos dizer que pintou os móveis velhos da casa e mandou fazer umas colchas e almofadas e que a casa ficou muito bonita e andamos a pensar que devíamos também arranjar lá a residencial mas não temos ideia do que fazer, se a senhora quisesse ajudar, se desse umas ideias...
Ana riu-se, pensando: agora até decoradora...! Mas respondeu com muita afabilidade: 'Com certeza, terei todo o gosto. Venham até minha casa para verem como ficou, para verem se gostariam assim, e depois logo se pensa o que se poderá fazer lá na residencial'. Eles gostaram muito. Dali foram então até à residencial e Ana teve logo mil ideias.
No dia seguinte apareceu-lhes com esboços, com sugestões. Eles estavam entusiasmados. Combinaram encontrar-se ao fim da tarde para irem até à loja de tecidos, à loja das tintas, à modista.
Algum tempo depois, Ana sugeriu à modista, ao dono da loja de tecidos, ao dono da loja de tintas e ao carpinteiro que formassem uma empresa de remodelações de interiores. Habituados a pensarem individualmente, hesitaram mas, algum tempo depois, já todos tinham concordado que podia ser uma boa ideia. Ana ajudou-os nos aspectos burocráticos, ajudou-os na organização da nova empresa e ajudou-os na divulgação da empresa, fazendo ela própria cartazes a partir de fotografias das coisas da sua casa.
No final do ano lectivo realizou-se o apuramento das melhores ideias do concurso e Ana e os restantes jurados tiveram alguma dificuldade tal a variedade que tinha surgido. Apareceram ideias de fazer móveis com pinturas que faziam lembrar os desenhos dos bordados, de fazer estofos de cadeiras, de fazer malas de senhora, de fazer uma capa bordada para o inverno em versão feminina e em versão masculina, uma recriação arrojada dos desenhos. A festa de entrega dos prémios animou toda a vila, houve cantoria, comes e bebes e, até, no fim, bailarico. Os miúdos estavam animadíssimos e Ana tão animada quanto eles.
Os desenhos e e maquetes foram fotografados e colocados no blogue e as encomendas começaram a surgir. Toda a indústria e comércio locais estavam em efervescência e as visitas à vila a aumentar.
Em reunião na associação Ana propôs, então, que o próximo desafio a lançar à escola fosse dinamizar a exígua e anémica oferta gastronómica, nomeadamente criando também um doce regional que deveria ter qualquer coisa a ver com os bordados, nem que fosse apenas na embalagem. Propôs ainda envolver neste desafio os poucos restaurantes e pastelarias existentes. A proposta foi muito bem aceite, até porque nisto umas coisas puxam as outras.
À noite Ana não descansava. Era a limpeza e arrumação da sua casa, era a confecção das refeições (almoçava e jantava em casa, claro), era o blogue da oficina, era a revisão dos posts dos alunos para o blogue da associação, era a análise aos pedidos de informação recebidos através dos blogues, era o pôr em marcha as encomendas recebidas através da internet. No meio daquilo tudo, ainda andava a bordar uma grande tela.
Um dia esse bordado ficou pronto. Esticou o tecido, gostou, era mesmo aquilo. Resolveu levá-lo ao carpinteiro. Queria uma moldura larga que valorizasse o bordado. Desdobrou o tecido. O carpinteiro ficou muito admirado, era um bordado com palavras, disse que era bonito. Ana ficou contente. Então, inesperadamente, pediu-lhe que lesse em voz alta. O homem, atrapalhado, tentou furtar-se ao pedido, não sei ler bem essas coisas, não leve a mal, mas não fico à vontade a ler em voz alta e logo isto. Ana insistiu, gosto de ouvir ler poesia e a sua voz é muito bonita. O homem engoliu em seco, tímido.
Ana então encostou-se a umas madeiras que ele lá tinha e, encantada, levemente emocionada, ouviu:
Todos os homens que me amaram
amaram-me sempre demais
Todos os homens que me amaram
escolheram sempre as palavras erradas para
a hora da partida
embora soubessem
que seria por minhas mãos que havia de chegar a hora
das escolhas definitivas que eram
como sempre são impossíveis
e na manhã seguinte eu apanhava
o comboio mais rápido para onde
ninguém me esperasse e depois
escrevia cartas a explicar o que não tinha explicação
e a pedir que rasgassem
fotografias bilhetes velhos programas de teatro
e que deitassem fora as flores e abrissem
todas as portas e janelas da casa para que
o perfume passasse e com ele
o nome que era meu
- coisa que eu espero que eles não façam porque como já disse
todos me amaram sempre demais
Enquanto o carpinteiro lia, por vezes tropeçando nas palavras, Ana ouvia-o com alguma ternura, sorrindo. No fim, ele esfregou as mãos nas calças, não tenho jeito para isto...
Ana sorriu, não, foi muito bem, gostei, mas agora vai cá ficar com a tela, vai ter tempo para treinar. Quando estiver pronto, já o deve saber de cor.
O carpinteiro olhava-a, intrigado, que quereria aquilo dizer?
Mas já Ana saía a rir, muito bem disposta.
Mas já Ana saía a rir, muito bem disposta.
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O poema que o carpinteiro leu é parte de um poema de Alice Vieira que pertence ao livro 'O que dói às aves'.
No original o penúltimo verso não é tal e qual Ana o escreveu mas sim: ' - coisa que eles nunca fizeram porque como já disse'.
(Se quiserem ler a história de Ana desde o princípio, poderão ir aí ao lado direito, mais para baixo, e nas etiquetas procurar 'Ana muda de vida'.)
E, por falar em poesia: hoje no meu Ginjal e Lisboa as minhas palavras voam em volta de um poema de Inês Fonseca Santos e ao som de Pavarotti que abre a semana que vou dedicar a Donizetti. Se vos apetecer, gostaria de vos ter por lá.
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E tenham, meus Caros, uma grande semana a começar já por esta segunda feira. Divirtam-se, está bem?
4 comentários:
Cara UJM:
Ana, mulher que sente o cansaço da satisfação de ser sempre amada demais!
Ana, mulher determinada e doce!
Aos poucos parece estar a fazer uma revolução naquela localidade.
Ela distribui harmonia, semeia poesia e faz soltar o que de melhor há em cada um.
Gostaria de viver naquele lugar.
E tenha uma semana feliz
Abrço amigo da
Leanor formosa e segura
Olá Leanor formosa e segura,
Eu também gostava de viver num sítio em que as pessoas se unem para construir um futuro melhor. Eu também gostava de ser com Ana, uma mulher determinada que mete mãos à obra, forma equipas, arranca com ideias e celebra resultados.
Mas eu não sou capaz de me portar bem durante muito tempo Leanor... Estou aqui a ferver para ir fazer uma má acção...
Um abraço com amizade, Leanor, e dias felizes!
De facto está tudo a correr demasiadamente bem... e a vida não é tão perfeita.
Bonita, bom gosto, inteligente, empreendedora, com sucesso, admirada, que lhe guarda o "destino".? Um encontro de 3º.grau?
Aconteça o que lhe acontecer saberá dar a volta.
Contudo não lhe faça muito mal, almas assim são urgentes.
Um beijinho
Pôr do Sol, olá!
Acabei de escrever um novo 'episódio' e a coisa já 'descambou'...
Eu sabia que não me aguentava muito tempo sem pôr as coisas a saírem dos carris.
Fazer o quê? A vida tem graça se toda a gente for tremendamente ajuizadinha...? Eu acho que tem mais graça com alguma emoção, mau comportamento, uma pitada de pecado, coisas assim. Mas coisas inofensivas, claro.
Enfim.
Acabei de escrever o que lerá e mal acabo já fico a pensar: 'E agora? Como vou sair desta...?' mas alguma coisa me haverá de ocorrer.
Um beijinho, Sol Nascente, e obrigada pelo incentivo.
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