Como vejo cada vez menos televisão deixei passar a entrevista a Pedro Paixão, feita, se bem percebi, a propósito do lançamento do seu último livro. Felizmente, o algoritmo do youtube, que, como se sabe, me topa à légua, agora serviu-ma de bandeja.
Sempre gostei imenso de o ouvir. É daquelas pessoas que tem um grão daquela loucura que, quando vem com mansidão e com inteligência, se torna sedutora.
Li vários dos seus livros, alguns com alguma perplexidade, outros com curiosidade, outros com admiração. Outros nem tanto -- mas isso não tem mal pois não é suposto que alguém agrade sempre a outra pessoa.
Pedro Paixão, pelos seus excessos e pela forma articulada e, ao mesmo tempo, despojada, é uma daquelas personagens contraditórias a que pessoas como eu acham piada. Pessoas mais recticulares, menos dadas a apreciar os desvios à norma, não acham graça nenhuma, dizem que 'o tipo é maluco' e viram-se para outro lado.
Desta vez, Pedro Paixão está diferente. Ele próprio o diz: mais sensato. De facto, achei-o outro. Mas, ainda, interessante. E ainda dado a excessos.
Conta que, porque a mulher se ofereceu duas telas, uns pincéis e uns tubos de tinta, começou a pintar e já pintou para cima de 250 telas. Identifico-me muito com ele. Quando o meu filho me fez idêntica oferta aconteceu-me esse mesmo entusiasmo, uma loucura, ficava a pintar até às tantas da manhã, não conseguia parar de inventar formas, misturar cores, descobrir ousadias. Parei por já não ter onde guardar tantas, tantas, tantas telas. Tenho telas pintadas guardadas em todos os buracos que consegui descobrir. Tive que parar, claro. Mas só eu sei a vontade que volta e meia sinto, quase um formigueiro nas mãos.
Fiquei curiosa com o livro. Sendo o tema que é, um tema que nos rasga as entranhas, imagino que seja da pesada. Literalmente, até -- tem mais de 800 páginas. Mas diz ele que são anotações que não precisam de ser lidas em sequência e, portanto, assim sendo, sinto-me desobrigada de ler como 'deve ser' podendo fazê-lo apenas salteadamente, e isso é bom pois cada vez mais sou praticante dessa forma de leitura.
Nunca fui a Auschwitz nem nunca irei. E posso afirmá-lo com certeza absoluta. Não seria capaz. Nem nesta nem numa qualquer futura encarnação. Jamais.
Houve uma altura em que lia muitos livros sobre o assunto e, de cada vez que os lia, ficava transtornadíssima. Depois deixei de conseguir ler. Há em mim uma parte que parece não ser capaz de assimilar a maldade extrema, a alienação doentia, a cegueira, a estupidez qualificada. O que se passou nesses anos é, para mim, algo que o meu entendimento não atinge. E essa falta de entendimento perturba-me. Como foi uma coisa assim possível? Como?! Como é possível haver pessoas tão doentiamente más que levaram a cabo tal desumanidade? Como é possível que tanta gente tenha pactuado? Como foi possível a tanta gente ignorar? Como foi possível a tanta gente viver depois do que aconteceu? Como não ficaram esmagadas pelo peso da consciência? Não encontro resposta para nenhuma destas perguntas.
É quase a mesma perplexidade que sinto quando vejo que há tanta gente que não se indigna -- mas com uma indignação profunda, inequívoca, aquela indignação que vem das entranhas -- com o que se passa nos países em que há guerra e em que alguém decide invadir um país ou matar a sua população, destruir as suas casas, as suas vidas, os seus sonhos, o seu futuro. Ou quando vejo que há quem encare o que se passa nos Estados Unidos com bonomia, como se fosse apenas uma palhaçada, parecendo ignorar os perigos.
Diz o Pedro Paixão que depois de ter visitado Auschwitz deixou de conseguir ler ficção. Compreendo-o muito bem. Perante situações extremas, a cabeça reformata-se.
Ele foi corajoso: visitou o lugar e durante anos investigou o assunto, nomeadamente o papel da Igreja Católica em todo o processo. Deve ter-se sentido arrepiado muitas vezes. Diz que deu o livro por encerrado quando se encontrou sem forças para mais. Imagino. Anos mergulhado no horror devem deixar qualquer um esgotado.
Correndo o risco de estar a partilhar imagens que V. já conhecem, pois poderão ter visto a entrevista no dia em que foi emitida no Now, coloco o vídeo na mesma, nem que seja para aqui ficar como um pro memoria pessoal.
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