Li uma notícia que até me fez rir. Na minha santa ingenuidade, pensava que o truque da empresa unipessoal (ou afim) apenas era usado por médicos, advogados, consultores e demais profissões que poderiam passar por liberais ou, também, por senhorios -- malta que, não querendo pagar muito IRS e, para além disso, metendo nessas pseudo-empresas tudo o que é custo (combustíveis, limpezas, estacionamentos, almoços, hotéis, etc.), também conseguem não pagar IRC ou pagar meras alcagoitas. Pensava eu.
Mas eis que fico a saber que estava muito enganada. Transcrevo um pouco:
Pois bem. Há que tempos que aqui ando a falar disto.O Fisco está a investigar indícios da prática de fraude fiscal no pagamento de indemnizações, por despedimento, e outros complementos salariais a trabalhadores. As suspeitas incidem sobre esquemas em que os beneficiários utilizaram empresas pessoais para receberem as indemnizações, os prémios e bónus salariais, com vista a pagarem menos impostos ao Estado.
Através destes esquemas de utilização de empresas no recebimento dessas verbas, os beneficiários visam alcançar dois objetivos: por um lado, reduzir o montante do imposto a pagar em sede de IRS; por outro, deduzir despesas em sede de IRC e diminuir o imposto a pagar pela empresa ao Estado.
No relatório do combate à fraude e evasão fiscais, a Autoridade Tributária descreve a situação: “As situações identificadas revelaram indícios da existência de esquemas de planeamento fiscal que têm como objetivo principal a diminuição da tributação, que seria devida na esfera pessoal dos sujeitos passivos beneficiários de indemnizações, complementos salariais e/ou rendimentos de trabalho independente em sede de IRS, e a dedução de gastos, em sede de IRC (por via da fatura emitida pela empresa interposta) sem a devida tributação autónoma por parte da empresa pagadora”.
É através deste mesmíssimo esquema que os hospitais contratam médicos (muitos deles também funcionários do hospital, ou seja a médicos que recebem em dois carrinhos: o ordenado, enquanto funcionários, e a facturação à hora, enquanto tarefeiros das suas próprias empresas que funcionam como fornecedoras dos hospitais; e quem diz hospitais, diz clínicas, diz o que quiserem). É através deste esquema que muitos senhorios (os que são 'honestos', pois passam recibo fiscal já que, como é sabido, grande parte dos contratos movimentam-se por debaixo da mesa) em que os recibos são passados pelas empresas de 'gestão imobiliária' de que são sócios. É também através deste esquema que, então, fico agora a saber, algumas empresas pagam bónus ou indemnizações ou, se calhar, parte do ordenado a alguns funcionários.
Tudo legal, tudo nas barbas do fisco. O mesmo Fisco que não acha estranho que haja tão poucos contribuintes a pagar as taxas máximas de IRS (os que não conseguem fugir e os totós que acham que devem agir by the book), mesmo vendo que há muito, muito, muito mais gente a fazer vidas milionaríssimas, enquanto pagam pouco IRS.
E, no entanto, esta rebaldaria seria muito fácil de ser interditada. Bastaria que qualquer empresa (hospital, escritório de advogados, empresa de consultoria, empresa de qualquer espécie) estivesse interditada de 'contratar serviços' a empresas unipessoais ou em que os sócios fossem os funcionários que prestam o serviço. Interditado pura e simplesmente. Nos casos mais benignos em que precisam efectivamente dos serviços das pessoas, contratem-nas. Se só precisam delas provisoriamente, contratem-nas como trabalhadores temporários. Se precisam que trabalhem para além das horas extraordinárias admissíveis face à legislação e recorrem a este esquema fraudulento (mas legal) também para isso, pois que tal seja denunciado. Ou o limite das horas extraordinárias em vigor é baixo demais e, então, aumente-se ou, se é o aconselhável, então contratem mais pessoas. E se for necessário ajustar a lei do trabalho temporário para acomodar algumas situações pois que se ajuste, com pragmatismo e bom senso.
A nível dos senhorios, tem que ser a AT a cruzar informação, vendo se os sócios das empresas registadas como senhorias são os proprietários. Nesse caso, deve ser interditado o registo. Devem registar-se directamente como contribuintes individuais e não como empresas.
Não será fácil cruzar a informação...? Talvez não seja. Mas havendo uma lei a proibir esta pouca vergonha, que se audite por amostragem e se caia em cima dos infractores a pés juntos.
Mas a Inteligência Artificial trata disto na maior. A AT que arranje algoritmos que façam o varrimento dos sócios das empresas, que valide o que é contabilizado nessas 'empresas. Não é difícil. A mim fervilham-me os dedos para os conceber.
Se houver alguém que queira, mas queira mesmo, enfrentar esta maltosa que se habituou a fugir aos impostos, acomodando-se dentro de uma legislação que acolhe carinhosamente os relapsos e os chico-espertos, em três tempos opera uma verdadeira transformação no País.
Agora há uma coisa, e aqui entra o lado moral da coisa: quantos ministros, secretários de estado e deputados não detêm empresas destas? Quem, detendo o poder e estando instalado em cima deste pântano, se dispõe a pisar uma estrada aberta, limpa, com boa visibilidade?
Mais: não é a Spinumviva uma empresa que, de certa forma, também se encosta a estes esquemas? Pergunto.
Tenho para mim muito claro -- e quanto mais me informo sobre outras realidades mais me convenço que é o caminho -- que, para o País evoluir, para se desenvolver, para atrair e reter capital humano capaz de fazer progredir o País a ritmo decente, há duas medidas que deveriam ser tomadas pelo Governo e levadas muito a sério:
- Baixar drasticamente os impostos sobre rendimentos, sejam eles de que natureza forem. Não é baixar meio ponto percentual, isso é apenas caricato. É baixar a sério. Por exemplo, no caso do IRS, reduzir os escalões a metade e reduzir fortemente as taxas. Não estou bem ao corrente de qual a última ideia da IL mas, no capítulo dos poucos escalões e das baixas taxas, devo aproximar-me deles. Por exemplo, no caso dos senhorios em que a fuga aos impostos é generalizada, reduzir a metade as taxas.
- E, ao mesmo tempo, impedir e punir fortemente a fuga ao fisco. E, quando digo fortemente, digo mesmo fortemente, à bruta. Antes de alguém ter uma ideia esperta para fugir ao fisco, deverá pensar muito bem pois os riscos devem ser tantos que deverá concluir que não valerá a pena.
Não pagar impostos tem que deixar de fazer parte da cultura portuguesa. Optimização fiscal tem que passar à história pois o sistema fiscal deveria ser tão fácil e os valores a pagar tão razoáveis, tão aceitáveis, que deveria ser ridículo e socialmente condenável fugir às obrigações.
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