sábado, setembro 23, 2023

Deve a gestão dos hospitais ser entregue a médicos ou... a gestores...?
Exemplo de algumas situações vividas na primeira pessoa

 


No post abaixo, o Leitor Américo Costa contesta a minha opinião de que a gestão das unidades de tratamento (Hospitais e nem sei se também os próprios Centros de Saúde) deve ser entregue a gestores. Segundo ele, é óbvio que não, que quem os deve gerir são médicos.

Porque acho que o tema é relevante, permito-me puxar para aqui o que ele diz e, de seguida, fundamento a minha opinião.

Cara UJM

Essa frase, "a gestão do SNS devia ser para gestores" deixa-me em polvorosa. Eis os meus conflitos de interesses: médico, Pneumologista do SNS em exclusividade há 41 anos. Desde 1983 que noto os mesmos problemas no seu funcionamento. E não foi por existir gestores que eles desapareceram. Até acho que, com a sua entrada e o facto de se equiparar a saúde como se fosse bananas ou sacos de cimento, que as coisas se deterioraram mais. A medicina é uma arte, não um negócio. O que o SNS precisa é de inteligência emocional e não de gestores. O que o SNS precisa é de elevarmos a literacia em saúde das pessoas, médicos com tempo de conversar com elas e não de cálculos matemáticos ou computadores XPTO. Voltar às origens. Estou cansado desta coisificação da doença, de sopesar os ganhos a torto e a direito, de tratar a doença como se fosse um tijolo que se partiu numa obra. Sejamos claros, cara UJM: fomos nós, médicos e enfermeiros que demos cabo do SNS. Só pensamos em dinheiro (e vejam hoje o motivos das greves : salário, aumento, dinheiro). Portanto, e desculpe a ousadia, teve azar. Não encontrou um médico, mas sim um gestor; não encontrou alguém que lhe resolve-se o problema, mas sim alguém que só espera o fim do mês para receber. E na privada, com dinheiro, vai encontrar de certeza. Vamos destruir o SNS com a nossa ganância.

Abraço

Américo Costa

E, então, agora exemplifico eu com algumas coisas que funcionam mal e que, com um gestor qualificado e competente, facilmente seriam resolvidas.

Exemplo 1

A minha mãe tinha uma consulta marcada para o hospital para um certo dia que a mim não me dava jeito pois coincidia com um compromisso meu.

Alterar o dia deveria ser coisa simples, não é?

Errado. Um calvário.

Liguei e liguei. Nada. Ninguém atendia. Tocava, tocava até que atingia o limite de tempo, deixava de tocar e a chamada era interrompida. 

Como temos um número directo para o serviço, resolvi ligar para lá.

Fui atendida por uma pessoa que, quando eu disse o que queria, me deu uma desanda, que aquele número não era para tratar de assuntos administrativos. Quando lhe disse que do outro número ninguém atendia, ela disse que sabia disso mas que eu fosse tentando. Respondi que estava a tentar há dois dias. Então, disse-me que, por uma vez sem exemplo, lhe dissesse o que queria que ela transmitiria aos serviços.

Fiquei à espera que alguém dos 'serviços' me ligasse. Nada. Fiquei sem saber se sempre iam mudar ou se mantinham. Voltei a ligar e ligar e ligar... sem que alguém me atendesse.

Até que a minha mãe recebeu uma carta com nova marcação. Felizmente não coincidiu com nenhum compromisso. Mas... e se coincidisse? O que é que eu fazia...?

Não seria mais fácil terem um serviço de atendimento em que agendassem as consultas em consenso com os interessados, sendo depois a data confirmada por sms automático como acontece nos hospitais privados?

Não senhor, escolhem eles as datas, mandam cartas, envelopam cartas, expedem correio (ou seja, gastam tempo e dinheiro) para prestar um mau serviço.

Reparem: nada disto tem a ver com temas clínicos. Isto é um mero assunto que um gestor saberia como resolver.

Exemplo 2

Outro caso. Numa das últimas vezes de consulta de acompanhamento, chegámos lá, tirámos a senha, depois fomos chamadas para a inscrição. Algum tempo depois, na nossa vez, a enfermeira chamou a minha mãe, colheram sangue, viram-lhe a tensão, etc. A seguir mandaram-na para a sala de espera, que o médico já chamava. Até aqui tudo bem. 

Nestes dias, levanto-me bastante cedo para ir buscar a minha mãe e para estarmos lá cedo pois aquilo é por ordem de chegada.

Só que nesse dia a demora foi superior ao habitual. Passou uma hora, passaram duas, e nada. O médico não chamava. Nem a minha mãe nem ninguém. Fui lá dentro espreitar. As enfermeiras zangaram-se, que eu não podia ir lá sem a minha mãe ser chamada. Entretanto, o médico estava no gabinete, sozinho. Das vezes em que o vi, estava a olhar para o computador. Numa das vezes estava a escrever ao computador. Interpelei-o. Ficou varado. Disse que estava ocupado, tinha que acabar uma coisa e que esperássemos lá fora.

Lá fora, a minha mãe desesperava, enervada, que não se admitia uma coisa assim. Creio que já passava da uma da tarde. Uma outra senhora dizia que era diabética, que não podia estar tento tempo sem comer, que já estava a sentir-se mal.

E ninguém chamava ninguém.

Às tantas a senhora diabética foi-se embora, revoltada, 'Não há direito, saí eu tão cedo de casa, a que horas vou chegar a casa? Não estou nada bem...'. E foi-se embora. Ia a andar um bocado de lado, não sei se já meio cambaleante.

Quando chegou a nossa vez, eu disse ao médico: 'São horas a mais à espera, não lhe parece...?'

Resposta dele: 'Para a próxima não venha para aqui espreitar. E se não chamei ninguém foi porque tinha outra coisa para fazer!'

Respondi-lhe: 'Mas será que o atendimento de doentes, ainda por cima o tipo de doentes que é, não será prioritário? Olhe, uma senhora até teve que se ir embora...'

Resposta dele, interrompendo-me: 'Foi-se embora? Fez bem. Melhor assim. É menos uma...'

Fiquei furiosa: 'Acha...? Se ela se foi embora depois de horas à espera é porque estava a sentir-se mal...'

Já não respondeu nada. No fim, meio entredentes, pediu desculpa pela demora.

Ora, agora digo eu: se houvesse algum controlo automatizado e realizado em permanência para ver, por serviço ou por médico, quanto tempo os doentes estão à espera para serem atendidos, talvez os médicos gerissem o seu tempo e as suas tarefas de outra maneira. Assim, estão à vontade. Pode um médico deixar os doentes três horas ou mais à espera que ninguém o chamará para se explicar.

E nós que esperemos. E se não quisermos esperar, pelos vistos, melhor para eles, sempre somos 'menos uns'.

Exemplo 3

Outro exemplo. 

Numa das vezes em que fui com a minha mãe para as urgências, no hospital, fomos ao início da tarde. Foi vista, fizeram análises, rx. E ficou à espera. Eu cá fora, ela lá dentro. Ia-lhe telefonando. Estava à espera. O tempo foi passando e ela à espera. Depois repetiu análises. E ficou à espera. Às tantas tinha anoitecido. 

Pedi informação ao chamado Gabinete do Utente. Resposta: tinha feito exames, estava à espera dos resultados. Depois estava à espera de ser vista outra vez pelo médico.

Abreviando: já era de madrugada e nada. O Gabinete do Utente fechado. Ia-me contactando com ela por telemóvel mas a bateria do telemóvel dela estava quase esgotada e ela enervada por não ter onde carregá-lo e eu enervada não fosse ela ficar incontactável e eu ainda mais às cegas.

É que, com isto, eu continuava cá fora sem saber se a mandavam para casa, se quê.

Bem de madrugada, nem sei a que horas, finalmente chamaram-me. A minha mãe ia ficar em observação. Estava eu ao pé dela, lá dentro, para ela me dar os pertences todos, quando apareceu outro médico que ficou muito admirado por eu estar ali àquela hora. Disse-lhe que só então me tinham chamado para dizer que ela ia lá ficar. Ficou ainda mais admirado. Com a idade dela e aquelas patologias e sintomatologia, desde que entrou que era óbvio que ia ficar em observação e que o mais certo era ficar internada. Não percebia porque não me tinham informado logo que a viram à tarde. 

Estive seguramente mais de 12 horas à espera.

Ora custaria muito terem respeito pelos acompanhantes e informarem-nos? Não se trata de actos clínicos mas de ter um processo que informe atempadamente os acompanhantes. Assim não. 

Não nos deixam entrar, não nos informam. Aceitam como normal que as salas de espera e as entradas das Urgências estejam pejadas de gente que espera por notícias dos que estão lá dentro.

Exemplo 4

Este não tem directamente a ver com os exemplos anteriores. Mas conto na mesma. Em 2021 enviei para os serviços da Segurança Social um relatório médico elaborado pela Médica de Família dela por a minha mãe ter tido um problema oncológico e por outros problemas para que emitam um atestado de incapacidade que lhe permitirá ter um certo abatimento no IRS. O passo seguinte seria chamarem-na para uma Junta Médica. Meses depois, nada. Enviei um mail. Responderam que as Juntas Médicas estavam atrasadas. Mais de dois anos depois, voltei a contactar dizendo que o estado clínico da minha mãe era agora mais complexo. Informaram-me que agora estão a chamar os processos que entraram em 2020. E que enviasse novo relatório. Não sei quando será chamada.

Ora, pergunto eu: para que tem um doente que se sujeitar a uma Junta Médica se o médico de família já atestou o seu grau de incapacidade? Quando foi do meu pai, que tinha uma incapacidade superior a 90%, sem andar, sem ver, sem falar, sem se alimentar sozinho, estivemos para não o sujeitar a isso. Foi uma violência. Uma violência desnecessária. Mas tinham gastos mensais tão pesados que era também disparatado não pagarem um pouco menos de IRS. Mas, pergunto: para que andam os médicos, que são tão poucos, a perder tempo para atestarem o que está no relatório do Médico de Família? Para que sujeitam à situação de quase humilharem os doentes? Não deveriam ser os médicos a demonstrarem à Segurança Social que deveriam estar a exercer medicina e não a fazerem figura de verbo de encher, sacrificando os doentes e respectivos acompanhantes?

Ou seja...

O penúltimo caso aconteceu já comigo reformada. Mas quantas noites inteiras, directas mesmo, já eu ali fiz (nomeadamente quando o meu pai tinha pneumonias), sem saber se o mandavam para casa ou se ficava lá ou se me iam chamar? Por acaso não sou de faltar ao trabalho e ia a casa tomar banho e seguia para o trabalho. Mas quantas pessoas muito justamente não traziam um papel e faltavam ao trabalho? Que impacto na produtividade e na qualidade de vida se poderia conseguir com medidas simples como informar atempada e respeitosamente os acompanhantes?

Um gestor olha para estas coisas e põe-se logo a pensar que processos e sistemas se poderiam montar para que tudo fluísse melhor, e que processos se deveriam montar para monitorizar o bom funcionamento e o grau de satisfação dos doentes e acompanhantes?

Assim, são médicos que estão na sua luta, muito justamente com motivações clínicas, descurando completamente todos estes aspectos que, a eles, lhes parecem acessórios.

E isto são pequenos exemplos, ínfimos exemplos. 

Por isso, volto a dizer: a gestão das unidades clínicas deve ser entregue a gestores. A direcção clínica, sim, claro, deve ser entregue a médicos.

E, repare-se: não falei uma única vez em lucros. Falei apenas num bom serviço.

Mas, se estou errada, queiram, por favor, pronunciar-se. Sou toda ouvidos.

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A fotografia é da autoria de Andrii Denysenko

Benjamin Clementine interpreta Atonement

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Desejo-vos um bom sábado

Saúde. Boa disposição. Paz.~

3 comentários:

Américo Costa disse...

Cara UJM:
Peço desculpa por vir à liça, mas eu não escrevi que actos de Gestão deviam ser banidos dos Centros,Hospitais ou simples consultórios médicos!Aliás, dos exemplos que deu, tirando o colega que tinha pouca aptidão para atender o doente,provavelmente pir eatar a fazer uma tarefa que o Gestor o incubiu ,referem-se a actos de gestão orientados pelos gestores que tomaram de assalto o SNS, e que não olham nem para quem trabalha,nem para os que precisam!Apenas a cumprir ordens de cima, seja lá que ordens forem por mais desadequadas para aquele serviço clinico!O que eu digo,é que neste momento,há gestão a mais por pessoas que desconhecem a arte médica como relações humanas acima de tudo, e a generalizam para tudo os actos de gestão como aprendem em qualquer Faculdade sem ser de Medicina!E olhe, até colegas meus têm um curso de um ano de Gestão hospitalar que lhes dá acesso a serem Presidentes de Hospitais e ou Centros de saúde, sendo ainda mais rígidos a cumprir ordens vindas de cima, do que os Gestores de carreira!O problema, cara UJM, não está aí!O problema é que se esquecem das pessoas, dos utentes e doentes, que lrecisam de cuidados!O SNS, não foi feito para os medicos,enfermeiris ou Gestores!Foi para dar assistência aos doentes wue não tinham nada aonde se dirigir!!A partir do momento que nós, medicos,começamos pensar que o SNS era para nós, deixou de haver medicina, e passou a haver carreiras, escalões, dinheiro!Digo medicos, como digo enfermeiros , gestores e agora a nova classe dominante, os informáticos, que a medicina agoa pratica-se com o PC!O estetoscópio já é peça de museu!!Dos exemplos que deu, tirando o médico que nunca leu nada sobre inteligência emocional ou relações humanas, todas as pessoas estavam a cumprir ordens vindas de cima de gestores ou aparentados a gestores!Não temos supervisão sobre as pessoas que atendem os telefones!Isso é gestão, e muito má!Cara UJM:permita-me um convite:venha até ao CDP de Gondomar. Sei que é longe para si Mas terá uma boa surpresa!Há muita coisa que corre mal, e por isso é noticia, mas existe maioritariamente um SNS que corre bem, mas que está a ser destruido, tal como a educação, por aqueles que enchem a boca da gestão pura e dura do serviço!!
Desculpe este desabafo!!
Américo Costa

ccastanho disse...

Cara UJM

Do ponto de vista do utente, que é o meu caso, acho o SNS como a sobremesa do quente e frio. Dá para todos os gostos, ou, para fazer juízos contraditórios melhor dizendo

Sobre o SNS que normalmente vou precisando, a opinião é satisfatória. Bom atendimento, bons cuidados "médicos- enfermagem" na minha hospitalização de aproximadamente 15 dias. Os cuidados e disponibilidade que sempre me foram prestados, leva-me a considerar, face aos testemunhos alheios que vou ouvindo, que talve, seja um privilegiado por circunstâncias que de todo me escapam. Mas não posso deixar de dizer a minha verdade sobre o SNS, e essa verdade, é de satisfação. Sem pretender branquear o que não está bem na organização ao utente. Seja nas marcações de consultas, seja nos tempos descaradamente longos entre exames e consultas de resultados dos mesmos, seja nos tempos de espera nas urgências o que não foi o meu caso quando fui há urgência que, por vias de estar todo partido e torcido, e sem me poder mexer com 9 costelas fraturadas e algumas com duplas fraturas que depois dos exames me disseram que as tinha em tal estado, então, o tempo de espera, foi muito curto devo dizer sem razão de queixas.

É verdade também, que já estive dois anos e tal á espera de fazer um RX ao tórax, para uma consulta de pneumologia num hospital do SNS . Embora verdade se diga, que caiu em cima da pandemia com todas as impossibilidades práticas que daí resultaram.

Uma coisa percebi. Uma vez entrado no SNS, seja com que doença seja, o caminho é mais fácil de percorrer ainda que com atrasos aqui ou ali, mas vamos caminhando. Quando é para entrar num diagnóstico, aí sim, o caminho0 para lá chegar... é mais acidentado, isto se, a doença não vença o paciente, o que acontece infelizmente muitas vezes.

Do alto da minha ignorância sobre o SNS, penso que é um duro osso de roer que qualquer governo tem pela frente e duvido que alguma vez encontrem solução par minimizar o que está mal.

No meu internamento de quando em vez, ia falando com os enfermeiros . E uma vez, ao fim da noite, depois de medicação feita aos pacientes nos quartos e próximo de apagar as luzes para dormir, aproveitei a disponibilidade de uma enfermeira para falar sobre o SNS a propósito do cansaço do pessoal de enfermagem. lembro-me de lhe perguntar quantos novos enfermeiros entraram para o hospital por causa do anuncio do governo com entrada de novos trabalhadores. A resposta, foi que nenhum entrou para aquele hospital de província. Intrigado, perguntei porquê? A resposta foi: como é que um enfermeiro, vem para a província com ordenados como os que auferem, conseguem manter filhos nas universidades nas grandes cidades a pagar despesas de estudos, superiores aos salários dos pais? Então, compensa mais arriscar em hospitais de grandes ou médias cidades com faculdades próximas sem grandes custos universitários dos filhos. Depois desta resposta, percebi a razão, entre muitas outras, para a impossibilidade de encontrar soluções para o SNS!, porque é uma cadeia de situações de tal forma encadeadas, que não é possível desatar o nó. Mais. Esta Senhora enfermeira, disse-me que só estava empregada no hospital, porque deve aos médicos espanhóis quererem nele trabalhar porque de contrario, o hospital fechava por falta de médicos.

Isto não está fácil, não, não está e não vejo solução para melhor.

ccastanho disse...

Caríssima UJM

Desejos de rápida recuperação da Mãe.

Um abraço,

https://www.youtube.com/watch?v=-XTAK0avUEw

https://www.youtube.com/watch?v=Qz5aWOSxfXs