sábado, maio 08, 2021

Flo, Florence M. aka Flo Kitty

 

A história verdadeira de algumas pessoas por vezes parece uma ficção. De Flo, por exemplo, pode dizer-se que tem um percurso surreal. 

Quando foi o ataque ao Bataclan foi terrível. O mundo não falou de outra coisa. Muita gente morreu, muitos ficaram feridos, muitos psicologicamente traumatizados. 

Até que quase passou à história, submerso pela fútil espuma dos dias. Pelo meio, as vítimas formaram uma associação. Uma mulher que não foi vítima juntou-se-lhes. Tinha um amigo gravemente ferido, muito mal, Greg. Foi em nome dele que se juntou

As fotografias mostram o grupo. A legenda diz o nome das vítimas e o dela que ali está em nome do amigo.

De g.à dr.: Maureen, Bertrand, Pascal, Florence (qui représente son meilleur ami, toujours hospitalisé), Samuel, Frank, Alexis, Arthur.


Integra a associação, trabalha, trabalha. Chega a integrar o conselho de administração. Pensa em grande. E ajuda a despistar impostores que se fazem passar por vítimas. 

Trabalha muito. Tanto que chega a queixar-se que é incompreendida, diz que trabalha mais que os outros, sente-se injustiçada. O amigo ainda gravemente doente. Um sofrimento que ela acompanha. Pelo meio, fala num amigo que tem em Nova Iorque e cujo apoio lhe vale nestas horas de sofrimento, Manu. O amigo fala, pela net, não apenas com ela como com colegas e amigos da Associação.

Os amigos falam também, pela net, com Greg, o amigo longamente hospitalizado. É a solidariedade entre vítimas.

Vive com a mãe, padece de uma doença que não é brincadeira. O que lhe vale é a associação, os amigos. Em especial Manu que está lá sempre para ela.

Por fim, contou que tinha estado lá, naquela noite, no Bataclan. Nunca antes o tinha revelado.

Até ao dia em que se descobre que é tudo mentira. Tudo. 

Não existe Greg, não existe Manu. Tudo inventado. Flo forjou perfis falsos para os amigos. Forjou amigos falsos para os amigos falsos. Sabia com precisão a diferença de fusos horários para poder falar com Manu, o amigo inexistente. Forjou um romance entre personagens inexistentes. Alimentava conversas entre todos, entre pessoas de verdade e pessoas inventadas. 

Nunca ninguém suspeitou da falsidade.

Até ao dia. A partir daí foi uma sucessão de surpresas e de espanto. Tantas descobriram que acabou presa. Abuso de confiança. Quando lhe fizeram um exame, acharam que era normal. Apenas num segundo exame lhe acharam traços de psicopata.

A sua história revela o que tantas vezes se esconde por detrás de gente que parece normal mas que é capaz das maiores anormalidades: abandonada pelos pais, criada pelos avós, dois abortos, uma violação, não poder ter filhos. Uma vida de frustrações e sofrimento. Os tribunais compreenderam a sua trajectória mas não a isentaram de culpa. Consideraram que não era louca, que não era delirante. Consideraram que era extremamente organizada. Um desafio para os examinadores. Uma mitómana.

O que concluiram foi que, vítima de profunda solidão, necessitava de sentir piedade e nada como juntar-se a uma associação de vítimas. Para que acreditassem na sua história, foi urdindo múltiplas pequenas histórias que serviam para dar veracidade a todo o enredo.

Já saiu da prisão e está cheia de dívidas. Continua a achar que os outros não são verdadeiros nem bons.

E eu li esta história e fiquei perturbada. De que labirintos e alçapões é feita a mente? E como detectar a falsidade numa pessoa convincente, aparentemente solidária?

Tenho um certo receio disto porque pessoas assim não se cerceiam por questões morais. Pelo contrário, auto-desculpabilizam-se. Podem cometer os maiores desvarios sem qualquer sentimento de culpa. E podem viver anos -- ou uma vida inteira -- sem serem descobertas.

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A história vem contada em Florence M., la "Mythomane du Bataclan" : histoire d’une vertigineuse escroquerie escrito a propósito da publicação do livro La Mythomane du Bataclan, do jornalista Alexandre Kauffmann

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E queiram descer para libertar a alma

2 comentários:

Maria Dolores Garrido disse...

Bom dia!
Às vezes também tenho as mesmas dúvidas/interrogações do penúltimo parágrafo, o que é inquietante. A mente humana é mesmo misteriosa, ainda que maravilhosa.
Bom fim de semana.

Estevão disse...

O texto fez-me lembrar este magnífico programa, agora condimentado com os 23 anos decorridos:

https://arquivos.rtp.pt/conteudos/a-mentira/

Bom sábado!