segunda-feira, agosto 13, 2018

Retrato de um dia especial na vida de uma devota


Num certo dia de verão, quando nada fazia prever a borrasca, fui chamada a uma conversa. Na maior inocência, sentei-me e escutei. Sorrisos, elogios, desafios, uma proposta irrecusável.

Primeiro foi um, depois esse foi chamar outro que, pelas mesmas e outras palavras, repetiu a mensagem. Tudo envolto em apologias, em simpatias. 

Saí de lá a pensar. Com tanto sorriso e tanto reconhecimento, qualquer coisa ali parecia não bater certo.

Tendo o cardeal e o papa recomendado que fosse eu aconselhar-me com o sacristão, lá fui. Ele sorria, manhoso. Sabia de tudo. Jogadas de bastidores são com ele. Demais, acolhido como é na cúria, acha-se bispo, todo ele treme de orgulho quando os mais humildes ou os mais cobardes, temendo não lhe cair em graça, acorrem ao beija-mão. Sorriu, disse-me que era bom, que não duvidasse eu da bondade da proposta. Quase insinuou que deveria eu sentir-me agradecida.

Mas bicho desconfiado que sou continuei na minha: alguma coisa ali não batia certo. E não consegui mostrar gratidão.

E, quanto mais ia pensando, mais ia percebendo os contornos da 'proposta'. Não era prebenda, não, era uma tocaia, infame cilada.

E o sacristão a rondar. Os capangas, os jagunços são assim, mesmo quando se apresentam de sacristãos. Sondam, manipulam, ouvem, levam e trazem, fazem o trabalhinho sujo, aplainam o terreno. Alguém que bem o conhece disse-me dele: um sabujo.

Disse-lhe: já percebi tudo. E ele, fingindo-se confidente, fazendo-se de confiável: Acredite que é o melhor que lhe pode acontecer. acredite.

Saltei-lhe ao pescoço: uma vergonha, uma indignidade

Saíu de pé de mim, escorraçado, fazendo-se de ofendido, e logo o vi agarrado ao telefone. Adivinhei-o a passar a mensagem ao cardeal, ao papa. 

Nesse dia, à noite, lembrei-me de outras ocasiões em que o mesmo aconteceu a outros que, sem que nada o fizesse esperar, também apareceram tolhidos em inescapáveis armadilhas. Quando o pasmo se desenhava nos rostos, lá vinha ele: Acreditem, foi o melhor que lhes aconteceu. Muito tive que me esforçar para não ser bem pior. Ainda queria agradecimentos pelas patifarias que ajudara a concretizar. Agora comigo o mesmo.

Nesse dia escrevi ao cardeal: Percebi que o me ofereceram não é bom. É muito mau. Não aceito.

Na volta, um mail: Amanhã falamos.

No dia seguinte apresentei-me. Inteira. De frente: O que propuseram é inaceitável. E ele que não, que é muito bom, que eu sou fantástica, a melhor. E eu: Se sou, não percebo porque estão a fazer isto. Prefiro que me empurrem porta fora. Chocado, o cardeal benzeu-se, que não, que ideia, que estou a perceber mal, que ideia, alguma vez. Mas que ia transmitir, que logo viria com a decisão.

A revolta tinha tomado conta de mim mas, ao mesmo tempo, uma segurança grande na minha vontade. Não se verga facilmente quem dedicou uma vida a fazer o mais e o melhor que sabe, com ética, rigor e sentido de responsabilidade.

O sacristão não voltou a rondar. Gente assim não gosta de ser enfrentada. Gente assim tem muitos rabos de palha, tem medo de ser desmascarada, tem medo de ver maculada a imagem que tão bajulantemente cultiva, tem medo de ver diminuída a sua influência junto da cúria.

No dia aprazado, voltei a ser chamada.

Sentei-me de frente para o cardeal. Percebi que estava pouco à vontade. Lamentou a minha reacção. Voltou a dizer que sempre tiveram o maior apreço por mim. As mãos vagueavam sobre a mesa. Perguntou se tinha pensado melhor. Disse-lhe que a minha opinião não se tinha alterado. Perguntou se estava mais calma. Respondi que nunca tinha deixado de estar calma. Percebi que ganhava tempo. A minha não aceitação, trazia-lhes inesperados incómodos. Continuei a olhá-lo de frente.

Percebi que, finalmente, depois de se ajeitar na cadeira, ia avançar para a decisão final. 

Abri então, devagar, a bolsa do telemóvel que tinha pousado sobre a mesa. Com ar contido, disse: Peço desculpa mas deixe que aqui coloque o meu santinho de estimação. É o meu anjo da guarda. Se a minha vida vai ser aqui decidida, deixe que o meu santinho me proteja. 

Ele mostrou alguma estupefacção. Nunca me soubera crente, muito menos a esse ponto. Mas, dadas as circunstâncias, não quis contrariar-me. Deve ter pensado que não se nega o último pedido a um condenado.

Fui-me justificando enquanto o retirava da bolsa: Cada um é como é. Este aqui acompanha-me nos momentos decisivos da minha vida. Posso não demonstrar mas, acredite, a minha crença é tão verdadeira como a sua.

Ele olhava-me, perplexo. Está bem. Não percebo porquê isso mas, se quer, está bem.

Tirei, então, o santinho da minha bolsa e coloquei-o em cima da mesa, a meio, virado para mim. Benzi-me e, num sussurro, com a mão sobre a sua cabecinha, pedi-lhe a bênção e disse: 'Mostra-lhe o caminho'.

Ele olhava, intrigado e visivelmente nervoso, a minha súbita devoção.

Então, lentamente, virei o santinho bem de frente para ele. E, olhando-o bem nos olhos, com o  meu ar mais beato, puxei a guita com uma das mãos enquanto levantava, depois, a outra como se o benzesse do lado de cá da mesa. E disse: 'Ora tomem'.


Escusado será dizer que deu um salto, apavorado, fugindo da sala quase a correr. Levantei-me, guardei o santinho e também saí. Pela porta entreaberta da sala do Papa percebi que estavam ambos de joelhos e pareceu-me que oravam. Presumo que, a esta hora, ainda lá estejam e acho que fazem muito bem. 

Amén.

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[E que me desculpem a heresia por aqui trazer um cântico religioso mas apetece-me.
E, por acaso, até acho que o pecado é inofensivo -- e, de resto, quem sabe?, com isto não fico purificada ]

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Se tiver inspiração, continuarei na senda dos contos devóticos. 
Senão, logo vejo.

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