No outro dia fui à cabeleireira. Enquanto esperava a minha vez, estive sentada perto da bancada onde a técnica de nails, uma jovem com ar de teenager e que vim a saber, no decurso da conversa, que tem vinte e seis anos, produzia a sua arte nas unhas de uma outra, idêntica, com vinte e oito anos. Conheciam-se, não sei se apenas dali, e tratavam-se por tu e por 'amiga'.
A cliente, que vinha com umas longas unhas em rosa e azul às florzinhas, queria mudar a cor para fúcsia acentuado com ousadas variantes para ficar a condizer com a roupa que ia vestir nessa noite, na festa de anos do namorado. A técnica usada foi a do gélinho (e coloquei o acento no e para se perceber que não se diz com e fechado mas bem aberto). Relatava a cliente a propósito do namorado: 'Andava há dias a mandar bocas e eu, tipo, como não sou parva, apanhei-as todas. Um dia dizia, amor, tipo, aquela tshirt não é gira?, outro dia dizia amor, tipo aqueles ténis ali não são bué da giros? e eu, tipo tá bem, já tou a perceber tudo mas fiz-me despercebida, tá bem, tá, amor, mas esses ténis não são tipo os que a tua mãe te deu tipo o ano passado e que nunca usas? e ele, não, amor, não tás bem a ver, tipo a sola é bué de diferente. E eu, tipo a disfarçar, Ah, tá bem, para não dizer, Ok, tou a perceber, tipo não precisas dizer mais.' E a das nails: 'Eu disfarçava e dizia tipo atão porque é que não compras tu?' e a cliente desatava-se a rir, 'À segunda boca da tshirt, achas que não disse, amor, tipo não queres ir comprar a seguir ao cinema? e ele, bué d'atrapalhado, não, mor, deixa'. Concluíu a artista das nails 'Miga, são todos assim, não crescem, são bué de crianças'. A outra riu, maternal, madura. 'E isso mesmo, amiga, tipo o que vale é que a gente topa-os logo'.
A seguir passaram para o capítulo da psicologia. Contou a cliente que, quando sairam da praia, se sentaram num banco a sacudir a areia dos pés e estava lá uma outra ao telemóvel, a falar muito alto, a discutir com o ex, que queria mais dinheiro, que o que ele dava não chegava para comprar as coisas que o menino queria. 'Amiga, tipo não tás bem a ver, falava dos ténis, da playstation, das prendas para as festas de anos dos amigos, chorava, muito alto, uma discussão que se ouvia a milhas. E o meu namorado disse: amor, tipo a gaja deve ser mas é parva, está aqui a falar tipo pa toda a gente ouvir. E eu disse, amor, mas tamém ela tem razão, tipo os putos saem bué da caros. Mas ele disse, amor, nao é isso, é o estrilho que a gaja tá aqui a dar. E eu tive que lhe dar razão, não sei se tás bem a ver. A técnica das nails concluíu, toda ela sabedoria: 'Gostam muito de dar nas vistas. Tipo podia falar mas não dar nas vistas' A cliente disse: 'É isso, amiga. Tipo tive que dar razão ao meu namorado. Não sei se tás bem a ver'.
E durante o tempo que eu lá estive a conversa seguiu ininterruptamente neste registo. Falaram da irmã de uma, do gato da outra, de um amigo do namorado de uma, de uma vizinha de outra. Criticaram, opinaram, decretaram. E juro que nada do que aqui escrevi é ficção. Se pequei foi por defeito, por falta de mestria na tradução escrita daquela vivaz oralidade.
Marcelo não critica quem, apesar dos mil avisos do Governo, não tem cuidado ou civismo e, por negligência ou intencionalidade, provoca os incêndios. Marcelo também não critica "a chamada lei do eucalipto livre, aprovada pela então ministra da Agricultura Assunção Cristas em 2013, abriu portas à plantação intensiva em qualquer parte, sem autorização nem aviso prévio".
Não. Marcelo, tal como as meninas das nails que se ocupam afanosamente da espuma do que um e outro diz, critica António Costa por dizer que felizmente não se perderam vidas humanas ou que, se não se tivesse tido cuidado com as matas, os incêndios poderiam ter sido ainda piores.
Em vez de fazer coro com António Costa, Marcelo cede ao impulso de agradar às mariazinhas fúteis, às virgens esquentadas e às beatas aflitas (de ambos os sexos, note-se) que pululam nas bancas de nails, nas redes sociais e nas SICs desta vida.
Se por vezes elogio Marcelo -- e fá-lo-ei sempre que ache que ele está a trabalhar bem -- não posso deixar de lamentar a cedência ao populismo que lhe corre nas veias. Não é com remoques disparatados que ele ajuda a população a ser mais exigente ou mais informada. Querer ser um presidente próximo do povo não deve ser sinónimo de se colar à baixa argumentação das meninas das nails que falam sobre tudo e sobre nada sem pensarem nem por um segundo no que dizem.
Marcelo tem uma ânsia doentia pela omnipresença e um apelo sôfrego pelo protagonismo e, ainda por cima, continua a ser um comentador compulsivo. E às vezes os excessos fazem com que a coisa lhe corra mal. Colar-se à emoção exacerbada que resulta de uma paisagem ardida e de bens perdidos e calar-se em relação a incendiários, a práticas gananciosas, negligentes ou incúrias não é a melhor forma de ser Presidente, ainda por cima quando se põe do lado oposto ao de um Governo que faz um trabalho sério na prevenção e no combate aos incêndios.
10 comentários:
Muito bem.
Só se perdem as que cairem no chão. Adorei. Continue assim. Abraço. Luis Manuel Dias.
adorei. Crítica mais que merecida
Muito bem, UJM. Eu a princípio achava alguma graça, mas agora, desligo a televisão!
Uma espécie de...cata-vento!
Mais uma.
Muito bem! Concordo!
Discordo. O governo não agiu assim tão bem como diz. E, à parte o excesso de protagonismo que lhe corre nas veias e raramente abdica do comentário, gosto da actuação do presidente Marcelo e não o julgo comparável a essa gente que relata. Mas cada um pensa o que pensa.
Excelente texto.
Já estamos um pouco fartos do excesso de protagonismo do PR.
É cansativo e como todos os que falam demais, dizem alguns disparates dispensáveis....
Já não se aguenta....
Mas há um objetivo muito claro na atuação de Marcelo : ter aproximação à população para poder dizer em quem devem votar. Não tenho qualquer duvida. Ele , até ao considerar HERÓIS quaisquer intervenientes ganhadores em eventos desportivos,está a cumprir a estratégia.
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