Tem dias que isto está assim cá para o meu lado: cansada de palavras. Parte do dia a aturar gente palavrosa. Para expressar uma ideia parva que nem devia ver a luz do dia, há gente que se enrola num palavreado sem fim, rodriguinhos fora de moda, neologismas arraçados nem sei de quê. Uma pessoa quer atalhar mas eles estão tão enlevados na sua tonitruante prosa que nem percebem que estão a cansar.
Depois outra estirpe: a dos desgraçados que, em cada pequeno contratempo, vêem um dramalhão, que chegam até nós como se estivessem a afogar-se, pedras nos bolsos, nos sapatos, na cabeça. Vai-se a ver e é caquinha de nada, coisa que se teria resolvido se, em vez de encenarem uma tragédia, tivessem falado com quem podia resolver o problema.
Chego agora aqui e há debates entre opinadores, rangélicos na sua histeria habitual, rogeiros sabichões, e mais uns e outros canastrões, gente que reconheço de outras crises, outros de que nem quero saber o nome. Toda a gente diz coisas. Palavras, ruído, poluição. Cansada. Cansada de tanta opinião.
Liguei o computador e pensei: vou ficar calada, não vou contribuir para isto. O ar que respiramos completamente saturado de palavras. Não vou contribuir. Pudesse eu e era já amanhã que me punha a caminho de alguma montanha silenciosa, casas de xisto, água cantando nas pedras, o verde das árvores, o branco da névoa, o fresco da chuva. Pudesse eu.
Infelizmente não posso.
Percorro a net. Procuro palavras límpidas como o silêncio. Rareiam. Rareiam, e tanto que delas eu agora precisava. Poemas com o mundo inteiro lá dentro mas o mundo original, antes de ser mundo. Poemas que eu lesse como se tivessem sido feitos para mim. Tanto que eu precisava deles.
Soda Scream © Gaelle Cueff |
Uma lua onde o nosso olhar pudesse dormir abraçado, uma nuvem que nos fizesse sonhar como adolescentes, uma luz ao longe brilhando como uma estrela irreal que nos fizesse desacreditar de todas as impossibilidades, um caminho perfumado por onde pudessemos passear de mão dada, um olhar receoso como quem não sabe como aventurar-se, um olhar admirado como quem reconhece que o mundo por vezes se fecha como um ninho, uma música que se intui, uma prece límpida, um alfabeto só nosso.
De coisas assim eu queria ouvir.
Segredos.
A semente de palavras assim, palavras sem propósito, palavras generosas, essas eu gostava que aparecessem no parapeito da minha janela. Ou então um pratinho de arroz doce com um coração de canela, um pequeno ramo de alfazema, um canário amarelo a cantar, uma cartinha com uma flor lá dentro. Disso eu gostava.
Eu queria ficar tímida, com vontade de esconder o meu sorriso, eu gostava de parecer um pássaro escandaloso cheio de flores, eu queria ter vontade de enxotar um bicho atrevido que viesse jogar a língua em cima de mim, eu gostava de olhar-me ao espelho e ver-me como uma invenção, uma graça, uma mulher cheia de luz. E gostava de abrir a boca e deixar sair cantos, blues, chamamentos, confissões imorais, silêncios nunca antes ouvidos, cores indecentes, murmúrios de seda, palavras transparentes, códigos secretos.
Demain nous appartient © Gaelle Cueff |
Por isso, desculpem-me mas não estou capaz de conversar.
Só isto.
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1 comentário:
Há dias assim.
Lembrei-me de Milton Nascimento "Hoje quero a rosa mais linda que houver, a primeira estrela que vier... creio que se chama A noite do meu bem.
Bom fim de semana
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