terça-feira, maio 11, 2021

Quando a invasão de privacidade nos surge pelas nossas próprias mãos

 


O meu telemóvel novo agora sugere-me que passe  colocar despertador para não me esquecer da hora de ir para a cama. Sugere-me, até, qual a melhor hora para me deitar e levantar. Vejo isto e sinto-me invadida. A moral e os bons costumes agora aparecem pela 'boca' de um aparelho que, em tempos, apenas servia para fazer telefonemas.

Acho isto de um quase ridículo. Mas o quase aqui faz toda a diferença. É que é um quase em evolução. E, pior, não é apenas quase ridículo: é quase absurdo, é quase assustador. Talvez dentro de algum tempo tenhamos que deixar cair os quases. O quase está a tender para totalmente.

A minha conta de mail recebe um mail da aplicação a sugerir-me formas de ser mais eficiente. Diz-me o tempo que passei a ler e a escrever mails, contabiliza o tempo de reuniões, faz-me sugestões. Claro que já nem abro esses mails. Dentro de algum tempo, talvez me impeça de fazer o que quero.

Vou marcar uma reunião, pergunta-me se não quero acabar quinze minutos antes para não ter reuniões contíguas. Estou na reunião, aparece-me uma mensagem a avisar-me que faltam cinco minutos para acabar. Estou cada vez mais controlada. É para me ajudar. Dir-me-ão que é para isso, para me alertar. 

Mas eu pedi alguma ajuda? 

Recebo uma chamada e, ao atender, recebo um aviso de que, se não der acesso às minhas fotografias e mais não sei o quê, não poderei atendê-la. Não dou. Portanto, não posso atender. Perco a chamada. Tenho eu que fazê-la por outra via. Como se meteu outra coisa, não a fiz. À noite recebi uma chamada: eu não tinha ajudado quem precisava de ajuda. E tudo porque não quis que a aplicação tivesse acesso às minhas fotografias e mais não sei o quê.

E já não recebo mensagens da aplicação dos passos, quando estou a dormir, a dizer que está na hora de começar a andar porque lhe bloqueei as notificações. 

Mas há pouco, ao ir ver quantos passos tinha feito, apareceu-me um anúncio a ver se queria instalar outra app. Não quis. Mas não consegui sair dali. Desliguei tudo. Que se marimbem. Estou farta destes abusos.

Tenho andado a ver cómodas claras. Comecei por ver como se pintam e depois andei à procura delas à venda. Para conseguir ver, ou aceitava os cookies ou tinha que ler trapalhadas para as quais não tive pachorra. Aceitei tudo. Mea culpa. Agora, esteja a ler o que for, seja onde for, a que hora for, aparecem-me cómodas de todas as cores. Sou bombardeada com cómodas. 

Tem graça? 

Por acaso, acho que não. Pode parecer inócuo. E, se calhar, é. Ainda é.

Até ao dia em que nos sentirmos severamente manipulados, invadidos, incapazes de resistir. Até ao dia em que, se não capitularmos, nos veremos impedidos de comunicar, definitivamente reféns.

E assim, aos poucos, os algoritmos e a inteligência artificial e todos essas cenas de machine learning vão tomando conta de nós.

Bem sei que fazem muita coisa boa mas a forma desregulada como tudo vai avançando só pode significar que há riscos enormes que estão a ser subestimados.

É o modelo de negócio destas plataformas, destas apps, destas coisas todas. Bem sei que sim. Mas sei também que é a invasão consentida.

Não nos podemos queixar: somos nós que aceitamos tudo. É bem verdade: o nosso mundo é cada vez mais o nosso telemóvel ou o nosso tablet ou pc. O nosso pequeno mundo. Um pequeno mundo que, aos poucos, vai cerceando cada vez mais a nossa pequena liberdade.


____________________________________

Pinturas de Wiliam Blake ao som de Tom Waits em "Strange Weather"

_____________________________________

Uma boa terça-feira

3 comentários:

Paulo B disse...

Olá UJM,

Como é costume nestas coisas: o problema aparenta ser individual, mas é bem mais do que isso. É coletivo. E como é costume duas forças em colisão: a da atomização do indivíduo em todas as suas dimensões da vida e o desejo de liberdade, de derrotar a opressão.
O jogo do costume. Mas num novo tabuleiro.
https://www.wired.com/story/against-peeping-tom-theory-of-privacy/

Boa semana!

Um Jeito Manso disse...

Olá Paulo,

Obrigada pelo artigo e pelas observações. Muito interessante.

Mas diga-me, Paulo, será que não deveríamos simular como será o mundo daqui por uma ou duas décadas? Penso que talvez fosse bom pois talvez só assim repensássemos aquilo em que estamos, colectivamente, a transformar-nos: uma sociedade de alienados, de manipulados, de gente aparvalhada, ultrapassada por algoritmos e por objectos mais inteligentes.

Pelo menos, talvez, então, reduzidos a pouca coisa, deixemos de poluir o planeta e novas e mais inteligentes espécies se desenvolvam.

Um sempre admirável mundo novo, este.

Abraço, Paulo.

Dias felizes para si.

Paulo B disse...

Olá UJM,

Numa simulação se calhar já andamos nós. Andam para aí uns quantos a advogar essa ideia.. hihihi. Estou a brincar.
Percebo o que diz. Mas não estou certo. Somos bichos resilientes e estas coisas são estados em mutação. Na linha do que disse acima, muda o tabuleiro mas muitas das questões fundamentais são praticamente as mesmas: o equilíbrio... Na distribuição de recursos - naturais, poder, dinheiro. E a moderação do consumo de recursos (o que talvez coloque desafios a essa crença bem enraizada da estruturação da sociedade em torno do crescimento económico perpétuo). Não sei.

Abraço e dias felizes também para si!

PS: essa ideia da permacultura é muito interessante! Mas dá uma grande trabalheira. É preciso mergulhar um bocado para ter algum sucesso, porque implica ver a produção de alimentos num grau de simbiose muito grande com todo o (micro) ecossistema! Sugiro pequenos passos simples: uma hortinha mais orgânica.