O Leitor Anónimo desata a rir com a minha inocência. Na volta é o mesmo sátiro que resolveu atentar contra o mesmo bucolismo e, onde eu imaginava passarinhos debicando as doces romãs, ele veio aqui despejar um balde de água fria na minha prosa, dizendo que era obra de ratazanas, qual passarinhos. Há pessoas que gostam de dar desgostos aos outros. Agora foi com a gaiola.
Toda sonhadora e romântica, idealizo uma gaiola branca, elegante, aberta-- e imaculada. O supremo requinte: um lugar sofisticado para os pássaros poderem recolher-se, alimentar-se, tomarem uma bebida, colherem inspiração, darem uma flirtada. Tal como aquele belo sunset na bela cidade de onde se vê o rio e todo o casario e onde se está tão bem, assim a minha open gaiola, uma espécie de hotel de cinco estrelas sempre de porta aberta. Sejam pardais, rolas, melros, picapau, cuco, todos esses pássaros que por aqui esvoaçam e cantam, todos serão muito bem acolhidos. E tal como quando a gente vai a um lugar requintado não vai pôr-se a sujar o espaço, assim imagino eu os belos e cantadores pássaros: educados, civilizados.
O meu marido é o contrário, não liga patavina aos meus devaneios e atalha cerce: Quando aquilo estiver tudo cagado, vais tu limpar?
Não respondo, não gosto da pergunta.
Ao fim da tarde, toda de mansinho, voltei à carga: Não queres vir ver onde é que a gaiola fica bem...?
E ele: Não.
Não me deixo abalar por tão pouco. Fui para o jardim avaliar qual a melhor localização. Ou no canto, lá em cima, no ponto mais alto, ou cá em baixo, mais perto do terraço, junto à chuva de hastes do jasmim amarelo.
Depois voltei para junto dele: Não queres vir à garagem ver o tamanho da gaiola e como é que a tiramos de lá...?
E ele: Não.
No problem. Fui eu. Tentei tomar-lhe o peso. Nem arredou pé: pesada, pesada. Olhei-a por baixo e vi que, afinal, tem rodas. Portanto, menos mal. Mas, tão pesada, como puxá-la? Pensei que, se calhar, tem que se amarrar uma corda e puxar.
Voltei para o pé dele: Já percebi, tem rodas. Temos que puxá-la pela rampa da garagem.
Ele: Temos...?
E eu, fazendo de conta que não percebi a nuance: Amanhã tratamos disso.
E ele: Sim, sim. Como quem diz: Vai esperando.
Portanto, está garantido. Não vai ser fácil, vai dar luta. Mas cá estamos.
À hora de almoço quis ir comprar alpista. Disse-me simplesmente: Não vou.
Respondi-lhe: É que acho um bocado disparatado alimentá-los a basmati.
Fez de conta que não ouviu. Não fui sozinha, não sei dar com aquilo, ainda não conheço bem os trajectos. Mas é outro assunto que tenho que resolver. Também ainda não vi onde são os bebedouros, se estão dentro da gaiola ou se terei que arranjar umas tacinhas. Nem sei se basta ter uma casa bonita com comidinha e bebidinhas para eles se sentirem atraídos ou se é suposto ter alguns motivos de atracção, vasinhos pendurados, por exemplo. A minha filha falou em espanta-espíritos. Sou navegadora de primeira água nisto de gaiolas, não sei.
O meu marido diz: Ocupas todo o espaço, não vais descansar enquanto não encheres o jardim de toda a espécie de coisas.
Disse-lhe: Não sei a que te referes.
Disse: Vê com as suculentas. O terraço já está cheio delas.
E eu: E então?
E ele: Então, nada. É isso.
Resumindo: a ver se esta terça-feira tiramos a gaiola da garagem e a ver se um dia destes arranjo maneira de comprar alpista.
Entretanto, uma novidade. De manhã, um misterioso gatinho preto de belos olhos verdes passeava-se pelo terraço. Não faço ideia de onde veio. Estava a trabalhar e ele a espreitar para dentro de casa. À tarde, demos com ele sobre o telhadinho do barbecue. Aproximei-me. Não fugiu. Fotografei-o. Parece-me um gatinho novinho, ainda com uma espécie de penugem misturada com o pelo. O pêlo é preto mas, ao sol do fim da tarde, parecia com laivos de ruivo. O olhar é penetrante, quase irreal, quase abstracto.
Não tem medo nem me estranhou.
Mas não sou entendida. Não sei.
Fui ter com o meu marido e disse: Vou dar-lhe leite.
Ele: Mais outra...
Quando estava a preparar o lanchinho, o meu marido chamou lá de dentro: O que é que estás a fazer?
Eu: A preparar o leite. Porquê?
Ele: Porque é que estás a mexer no microondas?
Eu: Para aquecer o leite. Não ia dar leite frio.
Ele, lá de dentro: Está tudo perdido.
Fui pôr a embalagem de plástico com leite morninho no telhadinho. Inho, inho. O gatinho afastou-se um pouco. Ficou a espreitar. Mal me afastei um pouco, foi beber.
Depois lambeu-se, enquanto os olhos brilhavam de tão verdes. Tão, tão verdes.
Agora estou a pensar: será que vai perturbar os pássaros que forem curtir o spa na gaiola? Terei que ver isso. Será que deveria arranjar uma casinha também para ele?
Só aventuras.
[Só espero que o Leitor que gosta de vir para aqui com um baldinho de água fria na mão para um just in case não venha agora dar-me mais alguma notícia desconcertante. Não é um gato? É uma pantera? Conte-me tudo]
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Um dia feliz para si que está aí desse lado.
3 comentários:
Eu: Para aquecer o leite. Não ia dar leite frio.
Ahahahahahahaha !!
E não levou uns biscoitos da Pastelaria Benard !?
Querida UJM,
Hoje só mesmo a sua companhia para me fazer rir um pouco.
A vossa relação casal é todo o santo dia uma animação. Mas lá vai levando a água ao seu moinho e ainda bem, parabéns por isso.
É curioso ver como os gatos gostam de si, devem sentir que é um deles. Contudo não os mime demais pois deixarão de cumprir a sua missão de caçadores. Há tempos uma amiga achou que tinha o jardim povoado de esquilos, vindos talvez, na lenha. Não Fiz como o seu leitor, não tive coragem de a desiludir. Por sorte a nora, veterinária, ofereceu-lhe um gato.
Fui atacada por uma estupida constipação/alergia que me deixa sem vontade e força para qualquer coisa
Ao fim da tarde, toda de mansinho, voltei à carga: Não queres vir ver onde é que a gaiola fica bem...?
Sugestão sem grande trabalho.
No terreno, em local aberto, deitar uma quantidade de arroz.trigo, milho etc...no chão e verá que a passarada depois de habituada, ficará nas árvores à espera da hora da paparoca...
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