Não sei onde foi que o vi pela primeira vez. Tenho ideia que o Manhattan vi no cinema pequeno por cima do Império. Como se chamava? Satélite? Estúdio? Podia ir procurar mas não interessa. O que interessa é que achei espantoso. Eu era uma jovem que se deslumbrava com o que parecia ser um mundo novo, com grandes imagens, com vozes que destilavam inocências, com histórias que juntavam amor, humor, ironia, melancolia.
Mas acho que antes tinha visto o Annie Hall e esse não me lembro onde foi. São Jorge? Apolo 70? Uma graça. Uma doçura sorridente, uma irreverência moderna, uma graça permanente. Tenho também ideia de ter gostado imenso do Zelig. Será que foi o Zelig que vi no Apolo 70? Ah, ainda hoje o chamo à liça de cada vez que vejo gente que muda de opinião, que se metamorfoseia para ficar igual aos que acham mais poderosos, os que se descaracterizam porque, na verdade, não têm carácter. Mas o Zelig acho que nem era pelo poder, era porque era mesmo assim, um camaleão humano. A graça que ele tinha.
Adorava ver os filmes dele. Ficava a comentá-los, desatava a rir quando me lembrava de algumas cenas, era tema de conversa, repetíamos algumas coisas que ele dizia para se auto parodiar, eterno desajeitado, eterno inseguro.
E, no entanto, como tantas vezes acontece com os homens feios mas inteligentes e com domínio da arte da ironia, sempre com sorte ao amor.
Ou o Alice. O charme discreto da burguesia no feminino, a rebeldia contida e bem perfumada, a insegurança como maneira de ser, a vontade de transgressão não assumida. Pelo menos assim a lembro. Aquela que viria a fazer-lhe a vida negra. Na realidade, não nos filmes. Ou, creio que antes de Alice, o September. As crises, os dramas, os risos, os segredos. Mia, a musa.
Mesmo mais recentemente, já o escândalo tinha rebentado há tempo e os efeitos ainda se faziam sentir, outros filmes, já outras as musas. Por exemplo, gostei do Match Point ou, não há muito, do A Rainy Day in New York. Não quero saber que sejam levezinhos. Gosto de ir ao cinema e ver um flme que me deixe bem disposta. Gosto de sorrir ou rir. Ou de uma emoção mesmo que apenas ao de levezinho. Gosto de cidades bonitas, gosto de cores harmoniosas, gosto de subtilezas elegantes e suaves, sejam elas felizes ou nostálgicas.
Uma vez, a passear em Oviedo, uma estátua de um homem meio desmanchado a andar na rua. Woody Allen. Gostei de ver, parecia que estava a ver alguém conhecido.
Sobre o que se passou, nunca percebi bem. A mente humana tem cavernas e o ciúme o despeito são uma tortura para os próprios e para os que deles são vítimas. Acredito na inocência de Woody Allen mas acredito porque sim. E imagino que deve ter sofrido bastante. Ele e a que era filha adoptiva da que foi sua mulher. Não deve ter sido fácil. Um rasgão difícil de sarar.
Conheço uma pessoa de quem, em tempos, se chegou a dizer que fazia parte de uma certa lista. Falava-se à boca pequena. De concreto, nunca nada. Mas circulava pelas redacções. Por vezes, as televisões mostravam peças em que as câmaras se detinham sobre ele. Homem que sempre tive por íntegro, homem de família. Estava muitas vezes com ele ao fim do dia, dali cada um seguia para sua casa. Contava-me muito da sua vida. Corriam vivos os rumores. Nunca lhe perguntei nada nem ele me disse nada. Até que um dia, um ou dois anos depois, emocionado, quase com lágrimas nos olhos, me disse: 'Não imagina, ninguém imagina. A vergonha que sentia, o medo que tinha que acreditassem no que se dizia, que desconfiassem de mim. Um tipo morre um pouco com uma mancha destas a pairar sobre a nossa reputação.' E a verdade é que, mesmo por entre quem o conhecia tão bem, surgia a dúvida insidiosa, matreira, rasteira, silenciosa.
Não consigo malquerer ou malpensar a propósito de Woody Allen. Tem agora 85 anos e ao seu aspecto desconjuntado junta-se agora o aspecto etéreo que algumas pessoas de idade adquirem. Soon Yi tem 50 anos e, segundo dizem, é feliz ao lado de Woody.
Vi uma entrevista no Youtube que é uma graça, uma daquelas conversas a que se assiste de gosto. Contudo, não consigo aqui colocar o vídeo pois parece que foi interditado não sei bem porquê, direitos de autor de quem o publicou, qualquer coisa assim. Nem consigo que o link vá lá dar mas, just in case, deixo-o na mesma, pode ser que volte a estar disponível
Woody Allen em entrevista a Pedro Bial
6 comentários:
Bom dia e obrigada por este post maravilhoso. Também sou fã de Woody Allen pelo prazer das imagens, das histórias, das personagens, dos diálogos, da música, do humor... Vi alguns dos filmes que cita - os últimos em salas de centros comerciais, mas tenho saudades de cinemas que havia no Porto - Pedro Cem, Nun'Álvares, sala bebé do cinema Batalha, Foco e outros. Todos foram fechando as portas, ficando atrás delas muitos fins de tarde de prazer em ver bom cinema e sem pipocas.
Mas os filmes, esses, já ninguém os pode fechar. Felizmente.
Uma bela sexta-feira também.
A chavala da primeira foto é um espanto !!
Que idade terá agora?
Possivelmente será avó, com 80 anitos!
Olá Maria Dolores
Foram fechando as salas de cinema, foram abrindo as salas dos centros comerciais em que se comem pipocas e, enquanto se come, se vê cinema. Agora, com a pandemia, nem essas.
Tenho saudades de ir ao cinema e tenho saudades das salas de cinema, só cinema. Nunca fui ao cinema no Porto mas também devia haver boas salas. Havia cinemas enormes com plateia, balcão. O S. Jorge, por exemplo. O Londres. Havia aqueles em que as cadeiras baixavam. E os cinemas de culto... desconfortáveis...
Mas é como diz: as salas fecham, os filmes ficam. E as nossas memórias também.
Um bom sábado, Maria Dolores.
Olá Anónimo,
Pode ver o que tenho a dizer no post que acabei de escrever. Lá pode ver a anciã Mariel, ex chavala de espanto.
Saúde.
Não gosto muito. Creio que a marca d'água do Woody Allen não me apela aos sentidos, é como, muitas vezes, fosse um Billy Wilder a tentar fazer piadas sobre amor e sexo; nem o sentido de humor. Trata-se de um desencontro, claro.
Olá Diogo,
Talvez um desencontro, sim. Talvez uma expectativa alta da sua parte. O bom nos filmes dele é que não têm nada de transcendente. É, antes, o equilíbrio entre tudo: a luz, os cenários, o ângulo das filmagens, a representação, a escolha dos autores, a decoração, o que dizem, o que não dizem, a duração do filme. Há uma suavidade subjacente mesmo se a história inclui drama. Tem que se aceitar que se queremos intensidade e sofrimento a doer não é ali que o encontraremos.
Saio dos filmes dele com aquela leveza de quem passou um bom bocado, de quem gostou do que viu. E isso agrada-me.
Talvez um dia lhe apeteça isso, Diogo. Aí talvez o 'encontro' aconteça.
Um bom domingo, Diogo.
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