Um pouco menos de dinheiro na família e tê-los-iam internado a todos
Devo dizer que as notícias da pandemia são péssimas mas não me deixam admirada. Quando a curva avança empinada -- leia-se: aos pinotes -- há que ter-lhe respeito. Facilmente a gaja fica desencabrestada, difícil de a pôr com dono. Isto é matemática mas a matemática é temperada pelas circunstâncias. Quando as circunstâncias fazem de mortas, uma pandemia é matemática pura e aí, santa paciência, qualquer previsão só traz más notícias.
Ora falou-se na 1ª onda, na 2ª e agora na 3ª como se o vírus tivesse comportamentos diferentes. Não. A menos que deixe de ser um vírus para passar a ser um vírus mais uns quantos clones não exactamente iguais, e aí a coisa piora, o pensar-se que há ondas só revela o mau entendimento que as pessoas têm disto. De cada vez que há maior exposição ao contágio, a curva sobe. Se se refrear, ela desce. Ou seja, o que muda é o comportamento das pessoas. Mas não se pode esperar grande coisa do comportamento das pessoas quando sabemos que parte da população não sabe informar-se, bebe das redes sociais e de uns e outros, e outra parte raciocina com as patas. Portanto, quem tem que conduzir o rebanho em que parte são asnos, parte são carneiros, parte são galinhas, parte são onças e apenas uma minoria é gente que sabe ler e escrever, é o governo. E, sendo o caso um caso grave, há que dirigir o rebanho com mão pesada.
Em Março e Abril conteve-se a coisa pois estava com valores baixos e pôs-se maioritariamente a malta em casa. Na prática, o Governo quebrou as cadeias de transmissão. Depois veio o pré-verão e o verão. Quando o tempo está bom, a malta junta-se mais ao ar livre, nas praias, em picnics, em caminhadas, em esplanadas, em espaços fechados as janelas estão abertas -- e aí o corona está diluído no infinito e, portanto, as probabilidades de contágios são diminutas. A partir do momento em que se manda regressar a malta às lojas e escritórios, às escolas, e à medida que se fecham as janelas porque está frio e chuva, branco é, galinha o pôs: a curva volta a subir. E à medida que escasseiam as campanhas de sensibilização, a malta convence-se que o bicho neles não pega, que só as meninas é que têm medo, que homem que é macho não quer cá saber da máscara para nada, ou malta que é amiga confia uma na outra, não quer cá a desconfiança das máscaras... e depois a malta farta-se da monotonia de sempre covid, covid, covid, e quer é voltar a curtir, e bora mas é beber um cafézinho ou um copo, e bora mas é beber uma meia de leite quentinha e pôr a conversa em dia, e bora lá almoçar uns com os outros... e, quando se dá por ela estamos como estamos: não há camas nos hospitais, não há ambulâncias, não há médicos nem enfermeiros... e doentes com mais de oitenta pois, coitados, azarinho... E os doentes não-covid que aguentem mais um bocadinho que agora a gente não tem tempo para frescuras mesmo que as frescuras sejam coisas bem graves.
Por isso, a coisa basicamente entregue à consciência e ao entendimento de cada um dá nisto. Ou seja, o aumento que se desenhou em Setembro e a ligeireza com que se encarou a coisa, só podia dar nisto. Lembro-me que, por esses dias, recebi um mail de um Leitor a dizer-me para não me preocupar tanto. Pois, pois.
Além disso, há isto de parecer não querer ver o óbvio: espaços fechados, sem ventilação regular e sem um caudal adequado de ar fresco, é uma ratoeira, é só até aparecer alguém infectado. Quem respirar esse ar, fica infectado (a menos que seja daqueles sortudos em quem a bala faz ricochete). Não haverá lar de idosos, escritório, sala de fábrica, clínica, loja sem porta aberta para a rua ou o que seja que não tenha as janelas sempre abertas ou um ar condicionado que retire ar respirado e injecte ar novo que, mais cedo ou mais tarde, não atire com a malta toda para casa (ou para o hospital; isto, claro, quando não para o lado de lá, o lado do já foste).
Solução? Travão às quatro rodas à força toda. Partir as pernas às cadeias de transmissão que estão por todo o lado, descontroladas. Fiscalização à séria. E comunicação com fartura. Formação, explicação, ilustração.
Vou dar um exemplo. A minha mãe preparava-se para ir hoje fazer dois exames de rotina. Não há qualquer suspeita de nada, é mera rotina. Quando lhe disse que me parecia opção arriscada, ficou toda incomodada. Iria e viria de táxi, estaria de máscara, disse-me ela. Respondi-lhe: uma clínica fechada com ar condicionado que sabe-se lá como funciona. Um táxi em que sabe-se lá quem lá andou antes. Disse-lhe que a opção teria que ser dela, conhecendo os riscos de cada situação mas que os dados de como isto é são públicos. Suspirou, aborrecida. Apetece-lhe cirandar, está farta de estar fechada em casa, sem programas. Ia à clínica, aproveitava para ir aqui e ali. Perguntei-lhe se não tem visto os noticiários. Ontem à noite lá me disse que ia desmarcar. Que, se calhar, ia marcar lá para o início de fevereiro. Disse-lhe que não está a ver bem. Até ao fim de janeiro vai ser uma desgraça pegada. Fevereiro é para ver se se achata a bandida da curva. Quanto muito, talvez lá para Março e é se tudo correr bem e se o tempo ajudar. Suspirou. Percebo-a. Fala-me de uma amiga que vai todos os dias passear à Baixa, buscar o almoço a um restaurante, diz que ela vai e vem de autocarro e que nada lhe acontece. Pois, não sei. Talvez seja daquelas pessoas que é geneticamente imune. Ou tem tido sorte e um dia destes terá uma má surpresa. Mas é isto. A minha mãe já quase nos noventa, a amiga com noventa e tais. A minha mãe tem medo, critica os abusos, mas depois, quando é para ela, acha que passará sempre ao lado do perigo. E acredito que o que se passa com ela e com a amiga passa-se com muito mais gente. Um misto de saturação, de vontade de aproveitar melhor o tempo, uma esperança de que com elas não aconteça nada, uma coisa já na base do 'que se lixe'.
Enfim.
Quanto ao meu dia, normal. Nada de culinárias a reportar, foi o básico: bacalhau com todos -- batata normal, batata doce, cenoura, cebola, feijão verde, ovo e grão.
Ao jantar, comi iogurte, laranja em calda, dióspiro, queijo. Uma espécie de dieta.
E durante a tarde estive um pouco ao sol. E a ler os poemas da Hélia Correia, do livro Acidentes. Alguns agradam-me bastante.
Por exemplo este excerto de Poiêtikê dedicado a Maria de Sousa e a Anabela:
E ela quer saber exactamente onde está o poema,
quer tocar
no nervo do poema, sem que exista
frieza ou impiedade,
sem que exista
golpe de bisturi.
Porque é um toque de delicadeza,
a materna leveza que há nos dedos
de quem levanta uma raiz, tremendo
com tudo o que há ali de irreparável,
de precioso, de finito, como o verso,
com tudo o que ali há de
desumano,
enquanto algo de fino,
de espantoso na sua vibração,
atinge o peito
e deixa as criaturas que nós somos
sob o encantamento do que ignoram
Está a começar mais uma semana. Passam uma a seguir à outra, sem história. É isto. Parece que vivo num compasso de espera. Tem que ser mas é uma mudança tão grande na minha vida. Nem sei se voltarei a ser capaz de viver como vivia antes.
Aliás é das grandes curiosidades: como vai ser a nossa vida quando esta treta estiver controlada?
E como vão suportar a angústia as pessoas que estão sem trabalho, sem rendimentos, sem perspectivas?
E cá estou eu, uma vez mais, em volta disto, nesta conversa chata, meio desalentada... Bem posso enfeitar o texto com flores dentro de bolas de vidro que, nem assim, a conversa vai soar animada. Ai...
O que me vale é que abro o youtube e o meu amigo algoritmo sabe o que há-de fazer para me animar. Só pode ser bicha. Já contei que alguns dos meus amigos mais dilectos são bichas ou abichanados...? São empáticos, simpáticos, cuidadosos, atentos, conversadores. Uns queridos.
Desta vez, um pequeno vídeo delicioso do Chaplin. Vejo-o e esqueço-me de agruras, sorrio.
______________________________
O título deste post não terá muito a ver com o conteúdo (mas porque haveria de ter...?): é a parte final do poema Otherwise que Hélia Correia dedica a Lucinda Canelas.
O poema termina assim:
(...)
Eva, Penélope,
mulheres com um tal excesso de beleza
que isso as tornava intransigentes e as punha
a salvo de ternuras comezinhas,
atacando o trabalho de tear
não por fidelidade, como a outra,
mas numa guerra à Belle Époque e ao século
que estava a começar.
Um pouco menos de dinheiro na família
e tê-los-iam internado a todos
___________________________________________
Uma boa semana, a começar já por esta segunda-feira
Sem comentários:
Enviar um comentário