Somos complicados, difíceis de descodificar. Eu, pelo menos, sou. Especialmente para mim. Por vezes faço coisas para as quais não tenho explicação. Algumas não tenho feito ultimamente. Outras, sim.
Aceitei. Do outro lado ouvi um suspiro. Senti que era de alívio. Depois a voz bem disposta. Quando acrescentei: 'Mas há condições...'. Um ui... e um pré-susto: 'Não...'. Sosseguei-o: 'Nada de transcendente'. Quando lhe disse quais eram as condições, tentou dissuadir-me. Dei luta. Mas a fase que se segue vai ser complicada, a fase de sair de um lado para mergulhar noutro. Isto se não houver obstáculos. O tipo de coisa para a qual não tenho grande apetência. Negociações em que sou o objecto da negociação. Mas, enfim, decidi o que queria: um salto no escuro. Um turbilhão. Podia recuar e ficar mais sossegada. Mas os turbilhões, o desconhecido e as grandes lutas atraem-me. Dizem que tenho punch. Dizem que tenho killer instinct. Talvez. Mas nada como o que já fui. Mas, volta e meia, ainda acorda em mim a vontade de. No outro dia, numa reunião, cilindrei um. Cilindrar é a palavra. Estrebuchou durante uns segundos, depois não teve hipótese. Mas não me arrependo. Se numa organização está meio mundo a querer ir em frente e a ver que o timoneiro os está a arrastar para o fundo do mar, vamos continuar a assistir passivamente? Vamos continuar a estar com paninhos quentes, a deixar que um navio inteiro vá ao fundo para não ferir a susceptibilidade de uma pessoa que, nitidamente, está ali por um absurdo erro de casting que ninguém ousa assumir? Eu acho que não. E acho que não é caso para grandes conversas, basta um sumário chega para lá.
Mas isto para dizer que sei que, daqui em diante, mil vezes me irei perguntar porque é que me fui meter em tal empreitada.
Tantas vezes isso aconteceu. É como a montanha russa. Morro de pavor. Grito feita doida. Quando estou lá em cima e parece que vou despenhar-me -- dizer adeus à vida, ser projectada a milhas -- pergunto-me porque me foi meter naquilo. E, no entanto, sabendo disso tudo, vou. Não fui muitas vezes. Mas fui. De cada vez, lá estando, arrependi-me e culpei-me e incompreendi-me. Mas, mesmo antecipadamente sabendo disso, fui.
E agora, de novo, é assim. Não é a primeira vez. Antes fosse. Mas não é. E, no entanto, a vontade, a secreta vontade que tenho, é que acelere. Que comece a subir, que suba até não se saber como será a descida.
Mas isto a nível profissional. A nível pessoal não sou assim. Sou mais de me afastar. Se alguém não me interessa, não perco tempo, não arranjo briga, não faço fofoca, não tento tirar razões. Não, dou um byezinho e fecho a porta. Ou se me apercebo que a pessoa é das tóxicas, das que se fazem amiguinhas, muito lovezinho, muito chamego, muita conversinha, mas que, na primeira curva, nos vão apunhalar pelas costas, que é gente sempre com o saquinho de veneno à espreita de ser derramado, então quero é distância, não gosto de bicho ruim, gente com costela de capeta. Ná. Fecho a porta e aqui não entra mais. E uma vez a porta fechada, para sempre permanecerá fechada, não há force majeure ou act of god que me faça abri-la.
Mas, no passado. Jovem. Coisas de que não me arrependo mas que não compreendo. Incomodam-me especialmente porque não encontro explicação.
Por exemplo, gostava muito do meu namorado. De um muito especial. Gostava muito. E ele de mim. Mas, para mim, aquilo ali era amor desproporcionado, era incondicional de mais. Não gosto que gostem de mim dessa maneira, é responsabilidade a mais. Às escondidas dele andava com vontade de um bocado de mau caminho. Queria contestação, queria luta, mano a mano, corpo a corpo. Não gosto de altar, muito menos de estar nele. Então, um dia, acabei. Acabei. Indiferente ao seu sofrimento, saturada de tanto amor, danada por me perder, acabei com ele. Não quis saber de 'dar tempo', não quis saber de dar explicações. Queria apenas acabar. E acabei.
Ninguém percebeu: namoro tão bonito. Quem é que vira costas a um tamanho amor? Censurada. Incapaz de explicar. Parecia futilidade, leviandade. Paciência: que parecesse. E senti-me livre, feliz da vida. Dias depois, caí em mim: 'O que é que fui fazer?'. E parecia-me uma estupidez. Pensava: 'Onde é que alguma vez na vida vou arranjar quem goste tanto de mim assim?. E pensava nele, certamente triste. Então, fiz uma coisa completamente absurda, inexplicável. Nessa altura não havia telemóveis. Sou do século passado, já devem ter percebido. E havia, nesses idos, uma coisa que, certamente, já acabou há vários séculos: o telegrama. Ou seja, deu-me um ataque de arrependimento e romantismo -- e enviei-lhe um telegrama, dizendo que o amava e a marcar encontro com ele num certo jardim. Mal o telegrama seguiu, arrependi-me logo: 'Caraças, que é que fui fazer...?'. Mas no dia aprazado lá estava. Quando ele me viu, avançou a rir, feliz, e eu para ele, atormentada com a minha incoerência, mas ele abraçou-me feliz, beijou-me, e eu deixei-me abraçar, deixei-me beijar. E, certamente, retribuí. E, no entanto, desde sempre eu soube que ele não era o que iria tirar-me o chão, impedir-me de estar em qualquer pedestal, desorientar-me, desarmar-me. Lembro-me bem da felicidade dele nesse dia. E eu não é que não estivesse feliz. Se calhar até estava. Mas sabia que, no fundo, no fundo, tudo aquilo era um equívoco e que chegaria o dia em que o faria sofrer a sério, de forma irremediável.
Se recordo isto é porque, na minha cabeça, ficou registado como uma coisa que eu preferia que não tivesse acontecido. E, no entanto, vivi dias bem passados e sei que ele, nesse tempo, foi muito feliz. E depois como saberemos nós o que vai acontecer-nos no futuro? Como saberemos se viremos a lamentar fazê-lo? Quem nos diz que não lamentaríamos mais se não o tivéssemos feito? Como saberemos que o que, para nós, no nosso íntimo, é uma situação dúbia, não é um momento de inesquecível felicidade para outra pessoa? E não será isso mais importante do que a dúvida para sempre a ferroar-nos a consciência? Não sei.
E agora acho que isto são coisas que não interessam para nada. A sinceridade extrema é boa para nós próprios, para a guardarmos para nós. Por vezes podemos partilhá-la. Outras vezes é melhor para toda a gente que guardemos as verdades profundas -- e isso apenas para um dia mais tarde, se quisermos, podermos avaliar, em consciência, se fizemos ou não a melhor escolha.
Amar pode ser, por vezes, à falta de melhor opção, o prazer de nos sentirmos amados, a vontade de que dê certo. E depois pode acontecer que, um dia, surja a oportunidade de darmos um pontapé nisso tudo e irmos à aventura, correr todos os riscos, experimentar o sabor único da sensação de nos estarmos a apaixonar. Mais uma vez. Como se fosse a primeira.
Amar pode ser, por vezes, à falta de melhor opção, o prazer de nos sentirmos amados, a vontade de que dê certo. E depois pode acontecer que, um dia, surja a oportunidade de darmos um pontapé nisso tudo e irmos à aventura, correr todos os riscos, experimentar o sabor único da sensação de nos estarmos a apaixonar. Mais uma vez. Como se fosse a primeira.
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Deliberadamente evito falar do que me sufoca. Alieno-me deixando que os dedos me afastem da asfixia que sinto, que a maioria de nós sente, ao ver os riscos que a democracia corre, ao ver o pouco que os humanos evoluíram, ao ver o que se passa à nossa volta. Deixei que a música e as imagens que a acompanham me levassem pelos caminhos da memória. É um lugar mais seguro que as ruas da realidade.
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As fotografias são de Doan Ly e acho que vão bem com Till Brönner -- que me foi dado a conhecer por uma pessoa a quem muito agradeço -- que aqui interpreta When I Fall in Love do album Chattin With Chet
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A todos desejo uma boa quarta-feira.
2 comentários:
… pois, pois,
fico sempre arrepiado quando vejo pessoas que roçam as pernas uma na outra ao caminhar.
Chego a sentir a ferida nas minhas coxas. E depois, vá se lá saber porquê, só me vem à memória casais muito agarradinhos, sempre encostadinhos. Impossível não se estorvarem de tão enganchados.
Abençoados calções de licra, sois um verdadeiro preservativo ..
E mais … pernas ociosas, acomodadas, varizes anunciadas. Deve ser por isso que se diz “andor violeta”, “move your ass”, “vai à luta” … ou como diz o Pessoa que já enjoa, “Deus ao mar o perigo e o abismo deu, mas nele é que espelhou o céu”.
Bem, eu diria que é de ir... "Ao som do vento e do mar" (...) Porque tudo são folias, pandeiros e zombarias!
https://youtu.be/DL1wRvmJIAk
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