De manhã eles ficaram no estúdio e nós dois ficámos aqui, cada um nas suas reuniões. A casa estava um sossego. Juntámo-nos um pouco antes do almoço. Acabei uma reunião e, não os tendo visto, fui dar a minha caminhada enquanto ligava à minha mãe, convencida que ia encontrá-los. Mas não. Quando regressei estavam ao pé do miradouro, já tinham vindo do passeio deles.
Passado um bocado, já o mais novo estava numa aula, isto enquanto almoçava. Para conjugar as aulas de um e de outro, as reuniões da mãe e para apanharem uns minutos de sol e esticarem as pernas, a primeira aula da tarde foi com o prato à frente. Coisa, para ele, pacífica.
A seguir, vieram os dois instalar-se perto de mim. Estava eu concentrada, ouço o mais novo a apontar para o tecto: 'Está ali uma aranha com asas...' e o irmão a dizer, como se na continuação da frase '... que se chama melga...' e o mais novo '...e parece que está a saltar...' e o irmão '...chama-se voar...'.
A seguir, vieram os dois instalar-se perto de mim. Estava eu concentrada, ouço o mais novo a apontar para o tecto: 'Está ali uma aranha com asas...' e o irmão a dizer, como se na continuação da frase '... que se chama melga...' e o mais novo '...e parece que está a saltar...' e o irmão '...chama-se voar...'.
Farto-me de rir com eles. Logo a seguir já andavam em cima do sofá, de almofadas na mão a tentar dar cabo do animal.
Também encontraram uma caracoleta. Isto no outro dia. Pediram-me uma caixa. A única que arranjei, assim de repente, foi uma caixa de ovos vazia. Pediram-me cenoura e puseram lá o caracol. Deram-lhe um nome e decretaram que iam ser amigos para todo o sempre. Não me lembro se é Budd mas, se não for, é parecido. À tarde, o caracol já era. Contudo, hoje voltaram a descobri-lo. Ficaram todos contentes. O bff estava de volta.
Já viram o gatinho banco e cor de mel. Também já viram muitas lagartixas. No outro dia, quando estávamos a passear, perguntaram-me se também haveria raposas. Contei-lhes que o vizinho da ponta da rua nos tinha dito que às vezes levava a burrinha para o pé do rebanho pois, com a burra por perto, as raposas não se aproximam. Na altura fiquei muito admirada e ainda hoje o estou. Os meninos quiseram saber se cá dentro da quinta também as há e eu disse que não sei mas que gostava que houvesse. E gostava mesmo. Não sei se fazem algum mal mas estou em crer que não. Se tivesse galinhas recearia por elas mas, não as tendo, acho que seria pura fruição. Raposas ruivas e sedutoras ao cair do dia, lobos deslizando pelo escuro, leopardos azuis a atravessarem as madrugadas. Bichos que me cativam e tentam. Rosas abstractas perfumando os sonhos. Digo eu. E eu, já me conhecem, sou assim, dada a rêveries e conversas malucas.
Agora interrompi esta escritaria pois recebi um mail e, antes de aqui regressar, espreitei as notícias e li sobre uma espanhola de 113 anos que recuperou da covid e que o sintoma que teve foi uma infecção urinária.
Voltei a pensar: será que já apanhei a bicha dos totós cor-de-rosa? Conto. Não sei quando, talvez em Fevereiro, andei a sentir-me doente. Não sou de me sentir doente (noc-noc-noc, já bati três vezes na madeira) mas andava mesmo em baixo. Comecei por uma tendinite num ombro. Dores, dores, quase sem conseguir levantar o braço. Sem fazer ideia de como aquilo tinha aparecido. Dias depois, uma constipação e a sentir-me em baixo. Os olhos chorosos e tosse, tosse, tosse. Tosse seca, mas uma tosse absurda. Não sou de me assustar nem de ir facilmente ao médico. O meu marido dizia: vai ao médico. E eu que nem pensar, uma porcaria de uma constipação. Mas uma noite, tais os ataques de tosse, sem conseguir dormir, às tantas quase me asfixiava, sem conseguir parar. Fui mesmo ao médico, já cansada, já aflita de tanta tosse. Tratei-me e fui melhorando. Três ou quatro dias depois uma infecção urinária também vinda do nada. Uma coisa mesmo estúpida e dolorosa. Tive que voltar ao médico. Antibiótico. E três ou quatro dias depois, também do nada, uma dor de garganta insuportável. Nem conseguia engolir. Espreitei. Tinha um enorme ponto branco na garganta, as amígdalas inchadas. A sentir-me doente, sem saber outra vez o que fazer e a achar esta sucessão de coisas muito bizarra, meio envergonhada, quase como se estivesse a inventar doenças, voltei ao médico. Ele também admirado. Perguntei-lhe: 'mas haverá relação entre tudo isto?'. Achou que não mas reparei que estava também um bocado admirado. Tratei-me. Acabei por ficar bem e já lá vai.
Por essa altura uma colega andou também francamente em baixo, constipada, apanhada, uma tosse de dar medo. Foi para casa. Ouvíamos falar do vírus mas era coisa longínqua. Ela com tosse imparável, febre todos os dias ao fim do dia, durante semanas. Ela própria, lendo sobre os sintomas que íamos sabendo da China ou de Itália, estava com dúvidas. Mas o médico disse que era uma bronquite em rescaldo. Mas não parecia bater certo. Não tinha expectoração, só febre e uma tosse seca, enfraquecida e doente.
Nesses dias, um outro colega apareceu doente, com febre, tosse, falta de ar. Teve que ficar em casa, tais os ataques de tosse, tal a febre. Dizia que não tinha expectoração, só tosse, tosse, tosse e febre. Semanas em casa até que o bicho veio oficialmente para cá e entrámos todos em quarentena.
Pode ser que nem eu nem eles tivéssemos estado doentes com o merdinhas. Aliás, a minha filha nem quer que eu disserte sobre isto pois receia que seja pretexto para me deixar de cuidados. E eu, quando a dúvida me assolava, dizia de mim para mim: 'nunca se ouviu falar de sintomas destes associados ao dito, não deve ter sido'. Até hoje, ao ver aquela da infecção urinária na espanhola. Por isso, deixa cá ver. Eu gostava de ter dito e só espero é que um dia que possa fazer um teste se comprove que sim. Pode querer dizer que já estou livre. Volto a confessar: estou farta destes cuidados, desta coisa de me chamarem a atenção de que mexi e não fui a correr desinfectar a mão, de que toquei e não deveria ter tocado, e eu a achar que, caraças, também não há-de ser bem assim, não está tudo contaminado, bolas, não há problema nenhum aqui, no campo, no meio do nada, e, por dentro, estou é a invectivar o mundo, que se lixe o corona, que se lixe esta porcaria, bolas, que seca.
E, pronto, calo-me já. Vou dormir a ver se, em sonhos, uma raposa vem visitar-me. Uma raposa metafísica. Abstracta, esquiva, com vontade de me contar segredos. Olha, vou contar-te um segredo. Não digas nada, ouve só. E eu toda ouvidos, arrepiada, com medo de não saber o que fazer com tamanha revelação. Gostava mesmo.
E, pronto, calo-me já. Vou dormir a ver se, em sonhos, uma raposa vem visitar-me. Uma raposa metafísica. Abstracta, esquiva, com vontade de me contar segredos. Olha, vou contar-te um segredo. Não digas nada, ouve só. E eu toda ouvidos, arrepiada, com medo de não saber o que fazer com tamanha revelação. Gostava mesmo.
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Pinturas de Noronha da Costa ao som de Sigur Rós com Ekki múkk
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Be happy. Be safe. Be cool.
2 comentários:
113 anos e deu cabo do bicho, ah espanhola valente!
Essa dos seus netos está o máximo, as graças do desenvolvimento cognitivo são mesmo aquela base.
Uma rica semana.
Vejamos, no final de Janeiro também tive um filme desses, tosse pra cacete, suores frios à noite, febril, coisa e tal. Depois, passou. Quando veio o covid, isto é a 15, 16 de Março, tive outro filme, garganta super seca, uma tosse sacana, outra vez suores à noite e pura e simplesmente não conseguia dormir. Andei ali 3 ou 4 dias sem dormir, uma beleza, é muito bom dormir 6 horas em 72, recomendo vivamente, faz um gsajo envelhecer bem rápido. Então, sozinho num apartamento, mais uma amigo que estava porreiro, decidi mandar tudo àquela parte. Nessa noite, dormi que nem um anjinho, pelo menos umas seis horas. Gradualmente, a coisa foi normalizando. Criámos rituais: todas as manhãs, ia à janela e gritava para o povo lá fora: Just another beuatiful day in the marines! (ficavam a bater mal mas mereciam, os porcos que iam de manhã para a porta da mercearia fazer sala, mamar minis e fumar cigarros, como se fosse a coisa mais natural do mundo), dia após dia. O meu companheiro, do seu quarto barra home office, replicava: Mesmo! Mesmo! Andámos nisto um mesito; começámos a aprimorar os nossos dotes culinários, sempre fui bom cozinheiro mas desde aí passei a ter categoria de chef michelin, é que é mesmo verdade, prove os meus filetes de pescada aux champignon que logo verá se estou a mentir. Com cada repasto, mais elaborado para ninguém botar defeito, lá fomos indo e rindo do paulinho das feiras na tvi, à hora do jantar. Claro que, sair à rua, para comprar alimentos, era uma chatice, e como só saíamos para isso, engordámos: meti alguns cinco quilos em cima e ele idem, Por fim, ao ver o seu exemplo (mas a UJM está a curtir no campo e eu aqui?), fiz o mesmo, dei de frosques e vim para o meu campo. De arrasto, veio a minha mais que tudo e o meu cão, perfeito. O único contra da coisa é que me descapitalizei big time mas, ao menos, não estou como tantos outros, dói ver o que se está a passar, tantos outros que se vêem na miséria, é assustador, do dia para a noite. E bem, vou ficar por aqui até ao final do mês. Só por causa das moscas. Curto de me sentir seguro. Um bom fim de tarde, vou para a cozinha e depois vou jantar ao ar livre no meu jardim. :-)
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