sexta-feira, julho 26, 2019

Nota à Introdução





Dizer o quê? Que dos nomes da gramática retive o sujeito, o predicado e o complemento directo? Bem, o indirecto também. Já a voz activa e a passiva não sei se é coisa que encaixe na gramática ou se é outro ramo da matéria. Dividir em orações já nem me lembro do propósito. Lembro, sim, a charada das orações nos Lusíadas. Coisa para ser levada a sério tem que ter lógica, alguma matemática. Agora coisa que mais parece entretém de dondoca desocupada e que não dá para traduzir em teorema que se perceba, não pega. 

Escrever eu escrevia. Chegava à hora da redacção e eu via meia turma de cabeça no ar sem saber como pegar no título para com ele insuflar a página e já eu por ali fora, cheia de ideias, histórias a atropelarem-se para caberem todas na folha. Ler também. Muita leitura. Agora chegada à hora da gramática era uma contrariação. Sem o saber já era avessa a burocracia e aquilo era regrinha frouxa uma a seguir à outra. A minha mãe queria que eu prestasse atenção, não rejeitasse, tentasse dar importância. Qual quê.

Depois, quando os meninos foram para a escola e eu espreitava a matéria já aquilo tinha tudo mudado de nome. Os casos notáveis ou a forma de dar a volta às equações ainda estava tudo na mesma mas a gramática estava travestida, talvez para ver se tinha mais graça. Mas não. Inútil na mesma.

Agora, se calha ouvir os meninos dos meninos a falarem do assunto, é ainda pior: é língua estrangeira. Não se percebe nada mas, ao que me parece, permanece a inutilidade, a burocracia, um banho de desengraçamento em cima da beleza das palavras.

Dir-me-ão: é preciso ser muita bruta para escrever tamanha alarvidade. E estarão certos. Sou bruta mesmo. Primitiva. Podia viver nua nas cavernas, descer até ao rio e apanhar peixe à mão, subir às árvores para apanhar frutos e bagas, deitar-me na terra a ouvir o som dos bichos e ver os desenhos das nuvens. Ou podia viver num mosteiro, descalça, em silêncio, e, à hora da reza, à socapa, fugir para os claustros do mosteiro vizinho para ouvir os cânticos dos monges gregorianos e viris. 

Para quê a agramática? Para quê comezinhar a beleza singela da escrita, arranjar-lhe significados e subentendidos, minimizando-a? Não me entra. Atribuir segundas intenções ao texto, inventar-lhe sub-textos, espreitar as intimidades das palavras parece-me feio, falta de decoro, é não saber respeitar o pudor da frase. Não, comigo não, violão, não contem comigo para nada disso. 

E isto já para não falar do latim ou do grego. Grego nem nunca tentei. Latim aflorei mas não era a minha praia. Para mim, língua morta já era. Pode ser que seja a raiz e que conhecer a raiz, ou, sei lá, a semente ou a linhagem, seja importante. Não digo que não. Digo só que vivo bem sem isso. Podiam as palavras ser de geração espontânea, podia ser como se a fada do dentinho ainda por aqui pairasse e todos os dias me deixasse, debaixo da almofada, um papelinho com palavrinhas novas. Por mim, estava bem. E o grego, aquilo de estar tudo nos gregos, de ser essencial conhecer as tragédias gregas -- filho que mata a mãe, gentinha que esvazia os olhos, pai que se perde no mar mas que afinal se encontra, mulher que fica à espera feita freirinha bordadeira, órfãos incestuosos que se desgraçam a cada passo que dão (e se non è vero que estes são gregos, è ben trovato e honi soit qui mal y pense), ou ninfas, monstros ou bicharada aluada -- que é que isso acrescenta à minha felicidade? Nada.


Se fosse dada a cenas dessas, via as telenovelas portuguesas do horário nobre. E não quero saber que estejam de boca aberta perante tamanha ofensa à cultura matricial, à génese da civilização. Não quero mesmo saber.

Tudo o que seja obrigatório me incomoda. Não gosto de ortodoxias. Latim e grego são fundamentais? Passo.

Fundamental para mim é outra coisa: é não ter que ler documentos escritos por doutores que escrevem 'poder-mos' ou 'á um mês atráz' ou não ter que ouvir outros eloquentíssimos seres a dizer em que nunca foram fortes a matemática para se desculparem por não saberem quanto é dez por cento de quinhentos.

Portanto, é isto.

E também não sei porque é que estou com todo este converseio. Se quero ser casca bruta pois que o seja em privado, que não o alardeie em público. Mas é aquilo de a ignorância ser muito afoita. Perco a prudência e mostro ao que venho. Azarinho.

Tirando isso, com vossa licença, uma 'Nota à Introdução'

Pinar só co'a cabeça
É protérrima noção
Ca Literatura começa
Ter em muita aceitação.

Entrada a tola entra tudo: taco
tórax e veio.
Se não couber no buraco
Racha-se o buraco ao meio.

-- Nem rachar será preciso:
Só rasgar um bocadinho.
Como na árvore, inciso,
O nome do passarinho.



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O poema é de Mário Cesariny in 'O Virgem Negra', as pinturas de Júlio Pomar e o Cry Baby é cantado com as vísceras de Janis Joplin
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😜
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E queiram aceitar o meu convite e apareçam no meu Ginjal para testemunharem que não é Nem no cântico dos seios nem no soluço das pernas, coisa que proveio de David Mourão-Ferreira ao som da Carmen.

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4 comentários:

Anónimo disse...

Ahah! Vero mesmo quanto aos gregos. A dada altura, decidi lê-los. A Antígona foi a primeira. O horror por que passei: tanto grito, tanto choro histérico. Telenovela, sim. Outras há que são melhores. Umas que escapam e uma que gostei mesmo muito: o Prometeu Acorrentado. Mas, quem sabe, talvez já tivesse outra predisposição Camusiana, já não me lembro. Os filósofos só mesmo por obrigação: é tudo muito valioso, é tudo alicerce de civilização, não contesto, mas é preciso levar com muitas páginas de treta sensaborona (quando não detestável) para chegar àquela dúzia de pensamentos universais que tão boas citações fazem.
A gramática pode ter o seu charme... Certas regras que vão buscar à lógica, à matemática quase, têm aquela característica agradável das coisas que fazem sentido. Mas há com cada temática que dá cabo do juízo a qualquer um - numenclaturas inúteis, que enclausuram frases que podiam ser belas se viradas do avesso.
Abraço,
JV

Um Jeito Manso disse...

Olá JV

Eu pensava: querem que eu esquarteje o texto, que horror. Não gostava, muita artificialidade, muita maçadoria a desfear a beleza da escrita. Nunca descobri o lado charmoso da gramática. Claro que tem também alguma coisa a ver com os professores que se teve a sorte de ter ou não ter. Tive uma fantástica professora que nos levava a ler para o campo, líamos belos livros em voz alta. Não me lembro dela nos maçar com a gramática.

Quanto aos gregos pode ser também pouca sorte minha mas nunca li nada que me deixasse presa à leitura, deliciada com o extraordinário da coisa. Nunca. E fico sempre na dúvida se não seria o caso do tradutor ter retirado a graça toda ao texto. Tentarei o Prometeu Acorrentado a ver se me deixo convencer.

Um abraço, JV. E já pode andar por aí aos pontapés ? O tornozelo já bem curado...? Tomara que sim.

Um belo sábado!

Anónimo disse...

O tornozelo está melhor, UJM, obrigada por perguntar. Piorou um pouco há umas semanas, porque recomecei as aulas de condução de forma intensa para poder fazer o exame e arrumar esse assunto, o que felizmente aconteceu. O pé ressentiu-se do uso da embraiagem, mas tudo deu certo: já tenho a carta e já mal me incomoda agora o pé.
Por outro lado, acho que tem muita razão quanto às traduções. Tenho aquele edição de capa azul que se vende por aí da Ética a Nicómaco é o português é tão mau, tão mau que nem dá para apreciar quaisquer pensamentos que possam estar subjacentes a tal atentado linguístico. Mais valia os tradutores portugueses fazerem como antigamente: em vez de tentarem traduzir diretamente da fonte, agarrava em boas traduções francesas ou inglesas e traduziam essas. Já tenho lido alguns gregos em inglês e é como ler Sthendal depois d'A Rosa do Adro.
Abraço
JV
PS: Sim, por curiosidade masoquista, li A Rosa do Adro, primeiro best-seller português e valioso (e hilariante) documento histórico. Li-a aos saltitanços, da mesma forma que se vêem as telenovelas, em que não faz diferença perder uns episódios.

Um Jeito Manso disse...

Olá JV,

Ainda bem que avisa... Quando agora vir uma condutora aventureira a fazer manobras de bradar aos céus vou ter cuidado não vá ser a JV, recém encartada, a fazer das suas... Só lhe digo: calma aí no spedais nem que seja só para não desafinar o tornozelo.

E ainda bem que concorda que parte do desconsolo que senti ao ler algumas das 'grandes obras' da humanidade pode ter a ver com a artolice de maus tradutores.

E só espero que aproveite o querido mês de Agosto com boas leituras, mesmo que divertidamente inesperadas... :)

Abraço, bravíssima JV!