quarta-feira, agosto 08, 2018

Cenas fora da caixa




Por alguma estranha forma de distopia -- e é se distopia for a palavra adequada para isto -- tudo o que é muito bonitinho e perfeitinho me desagrada. Uma paisagem muito feita ao boneco, uma carinha demasiado laroca, uma pessoa muito boazinha, um livrinho cheio de lindos pensamentos -- tudo isso me parece prova de mau gosto.
E agora, por livro com lindos pensamentos, lembrei-me do que uma vez um sujeito que eu tinha por inteligente e de pensamento escorreito me perguntou com o ar iluminado de quem tinha tido uma epifania: 'Já leu O Alquimista?'. Eu não tinha lido. Ele, superior, feliz por me aconselhar: 'Leia. É a sua cara.'. Nestas ocasiões tento apôr a minha melhor poker face a ver se não deixo transparecer que a minha consideração cai a pique de forma irreparável. Nunca mais fui capaz de olhar aquela cara ou conversar como o fazia antes. Impossível. Não é apenas por ele gostar de Paulo Coelho ou achar que aquela filosofia é coisa que se aproveite. É também pela dificuldade demonstrada na avaliação: o que é que eu fiz ou disse que o tenha levado a crer que o alquimista do paulo coelho era a minha cara? Não disse que se fosse catar porque sei conviver elegantemente com desaforos mas nunca mais a convivência foi a mesma, isso não. 

Para mim, tem que haver nas pessoas um grão de mau comportamento, o gosto indisfarçado por pisar o risco, a capacidade de me fazer ver as coisas de outra maneira, e o livro tem que ser capaz de me levar pela mão e, de quando em vez, trocar-me as voltas, e as palavras têm que ter uma vida nova, e a música tem que ser surpreendente, tem que me transportar para outras paragens, tem que me fazer ter vontade de fechar os olhos para melhor a ver e a pintura tem que ser quase louca, imprevista, nunca vista. E tudo assim. Naquele caso do alquimista a coisa podia ter corrido bem se, depois de me ver com ar de quem comeu e não gostou, ele tivesse gozado comigo por eu ter caído na esparrela, por eu ser tão burra que tivesse achado possível que ele tivesse gostado daquilo. aí eu teria desatado a rir e alguns pontos teriam sido somados na consideração que tinha por ele.

Enfim.

Os meus dias não têm andado muito fáceis. Quando a coisa parece sair dos eixos, eu gosto de ir ver o meu horóscopo. Podia rezar, fazer promessa, fazer jura, acender vela. Mas dá-me para ver o horóscopo. E cá está, confirmado com todas as letras: o Julho viria feito besta, alarve, pulha.

E foi. Quase me deixei abalar. Quase deixei que a onda me passasse por cima. Dormi mal. Pensei: é do calor. Mas de noite ficava a pensar no que me tinham proposto, no que estava a ser quase intimada a aceitar. Como sempre faço, tento dar a volta: comecei a tentar descobrir uma forma de melhor me habituar, de melhor aceitar, de minimizar, de fazer com que até me fosse agradável. 


Mas, sei lá eu como, uma noite dormi bem. Pela primeira vez desde há dias, foi sono de pedra. E, mal acordei, era dia 1 deste mês, como se o sono me tivesse dado a volta ao miolo, pensei: vão dar banho ao cão, comigo não, violão. Fui todo o caminho a pensar que ia partir a louça. Mas á bruta. Na base do rais ta parta. E assim foi. Logo nesse dia. A mesa virada, coice que até ferveu. Não que me tivesse armado em mula. De mula não tenho nada. Égua talvez. Coice de égua selvagem. E, de aí para cá, uma força brava parece ter tomado conta de mim. Virei a mesa e, desse modo, virei o jogo. Inteira onde os outros se dividem. Viraram-se para mim, espantados: Não?! Não...?! Cuidado... está a entrar por caminhos muito complicados...

-- Ai é? Explique lá bem isso. O que é que está a dizer-me? Está a ameaçar-me? - devolvi.

Esta segunda-feira nova conversa muito complicada. Decisiva. Um não redondo. De frente. Sem vacilar: não.

Agora não sei qual o caminho à minha frente. Nem sei se, à frente, ainda há caminho. Ou se há mas são caminhos muito perigosos. Não sei. Não sei mesmo. E, curiosamente, não quero saber.

O que for soará.

Mas continuo inteira. Mal comportada, fora da caixa, incontrolável, desalinhada. Mas inteira.


Já agora: o horóscopo diz que em Agosto viro a mesa, que o Agosto vem em meu socorro e abre-me as portas do futuro e que, a seguir, vêm as férias e que o regresso será radioso.

Tomara. Como gosto de acreditar no que me convém, vou acreditar -- até porque isso me dá ainda mais força para enfrentar o pelotão de fuzilamento que ousou encostrar-me à parede.


Eis aquela que parou em frente
Das altas noites puras e suspensas.

Eis aquela que soube na paisagem
Adivinhar a unidade prometida:
Coração atento ao rosto das imagens,
Face erguida,
Vontade transparente
Inteira onde os outros se dividem.

[Sophia]
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Reparei agora que comecei o post com uma em mente e que, a meio, quando fui buscar imagens para aqui intercalar e quando fui escolher uma música, regressei ao post e, como se não tivesse escrito nada antes, comecei a escrever num registo que nada tinha a ver com o anterior. Claro que agora poderia apagar a primeira ou a última metade para a coisa não ficar incoerente. Mas fica como está. Desculpar-me-ão. É como se estivessemos a conversar e, depois de eu interromper para ir buscar um copo de água, voltasse com outra conversa. Acontece.

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As fotografias são de Michael Goldrei e têm a ver com essa coisa boa que é a serendipidade. Andreas Scholl interpreta de Antonio Vivaldi: Cantata "Cessate, omai cessate" - " Ah, ch'infelice sempre"

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