Estou aqui a flutuar que nem vos conto. E, de tanto flutuar, já estou quase almariada. Flutua-se-me o teclado, flutuam-se-me as coisas aqui ao meu lado. Tudo. Uma bailação em nebulado. Que coisa mais horrível.
Conto.
Sou um pouco míope, já o contei. Nada de extraordinário. Não uso óculos senão para conduzir ou estar no cinema. No primeiro caso é mais por sentido de responsabilidade e no segundo por preguiça mental, para não estar preocupada em ouvir cada palavra já que, sem óculos, se calhar não veria lá muito bem as legendas. De resto, não uso. O que não vejo, não vejo, azarinho.
Uma vez, estava a podar um loendro e, ao puxar uma pernada que estava presa, ela soltou-se de uma maneira tal que disparou na direcção da minha cara e feriu-me um olho. Tive uma dor brutal, pensei que o estupor da pernada me tinha vazado o olho. Nem conseguia tirar a mão do olho e nem conseguia abri-lo, tamanhas as dores. Fui para o hospital, fizeram-me exames, estava ferido, trataram-me e taparam-no. Tinha que voltar ao hospital uns dias depois, podendo nesse dia tirar o penso.
Moro num andar muito alto. Quando vou à janela, vejo o que há para ver mas sem grande definição. Para mim, está bem assim. Estou habituada.Contudo, nesse dia, ao ir à janela apanhei um susto. Pensei: 'Que horror, não vejo nada, querem ver que quase ceguei...?' Encostei-me à parede, desconsolada. Tapei o olho bom e espreitei pela janela. E aí fiquei estarrecida. O olho ferido via a milhas. Conseguia ver as matrículas dos carros lá em baixo, mesmo os que estavam mais longe. Nem queria acreditar. Assustei-me com aquele excesso de visão. Tapei depois o olho ferido e pus-me a ver pelo bom. Por esse via mal, como sempre tinha visto. Tinha sido o contraste entre as visões dos dois olhos que me tinha dado aquela estranha impressão de que por um olho via mal. Estava tão estranha que não me arrisquei a ir a conduzir para o hospital. O médico, quando lhe contei o que me tinha acontecido, disse: 'É natural. Mas vai voltar ao normal'. Perguntei: 'O que quer dizer com isso? Vou voltar a ver mal do olho ferido?'. Ele confirmou. Na alura ele explicou mas agora já não tenho a certeza. Tenho ideia que a pancada fez achatar o globo ocular.

Contudo, ao perto, a coisa tem vindo a perder alguma qualidade. Presumo que seja a isso que se chame vista cansada, com a agravante que o olho que vê melhor ao longe é o que vê pior ao perto. Mas, enfim, vou-me habituando a conviver com a situação e não uso óculos para ver ao perto.
Acontece que no outro dia partiu-se-me a armação dos óculos. Para mal dos meus pecados, a seguradora, para comparticipar os óculos, requer receita médica. Conclusão: fui ao oftalmologista, coisa que não fazia há mais de mil anos.
O médico admirou-se com a minha autogestão visual e recomendou que, para ver ao perto, não esforçasse a vista e usasse óculos. Para o longe pois que gerisse como até aqui já que agora a visão já é melhor ao longe que ao perto.
Lá fui ao oculista. A preocupação, claro, foi com a estética, em especial com a dos de ver ao longe que, neste caso, são escuros. Optei por uns Armani, bem ao meu gosto.

Resumindo: quando fui buscá-los e pus os desgraçados de ver ao perto, ia-me dando uma coisa. Só via alguma coisa, se olhasse para baixo e exclusivamente para o que estivesse mesmo perto. Mal levantava a cabeça nem o ecrã do computador conseguia enxergar. Ao longe, então, era para esquecer: uma mancha. Ainda tentei. Impossível. Ou usava os óculos deprimentemente na ponta do nariz ou só de levantar a cabeça dos livros para dois palmos à frente e já estava toda trocada. Uma turbulência enevoada. Muito mau. Conclusão: tive que admitir que tinha tomado a decisão errada. Tive que dar a mão à palmatória e trocar para lentes progressivas.

Estou com eles postos. Se estiver a olhar apenas para o teclado a coisa ainda vai. Se levanto a cabeça para ler no ecrã, tenho que dar um jeito até descobrir a posição em que não me aparece tudo de esguelha, tudo meio a fugir. Se olhar para a televisão, é um disparate. Péssimo. Está a dar o Miguel Esteves Cardoso com o Bruno Nogueira, dois que gosto imenso de ouvir. Mas, caraças, tenho que estar a espreitar pelo canto, a virar a cara de lado, a tentar descobrir qual o ângulo em que vejo qualquer coisa.
E depois, quando trago os olhos, de novo, para a escrita, tenho que vir de mansinho, toda esgueirada, a espreitar por cima, a espreitar por baixo. Um desatino. Tudo baço, tudo oscilante. Bolas. Coisa mais péssima.
Será que vou habituar-me a isto? Algum dia...?
Alguém consegue conviver com uma gaita destas dos óculos progressivos?
Duvido. Duvi-dê-o-dó.
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Acho que vou publicar isto sem tentar ler o que escrevi. Acho que não consigo.
Deve estar uma coisa jeitosa. A menos que tire os óculos. Acho que vou fazer isso. Raios partam a porcaria dos óculos.
Deve estar uma coisa jeitosa. A menos que tire os óculos. Acho que vou fazer isso. Raios partam a porcaria dos óculos.
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As fotografias são de Juana Gómez
A música é de Edvard Grieg - Lonely Wanderer
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As fotografias são de Juana Gómez
A música é de Edvard Grieg - Lonely Wanderer
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